Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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No. 82 (2003: 2)
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POSICIONAMENTOS E RE-ORIENTAÇÕES NA MUSICOLOGIA E NAS CIÊNCIAS
DA CULTURA
- Discurso de abertura do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros
2002 -
Gramado, Rio Grande do Sul
Antonio Alexandre Bispo
Excelentíssimas autoridades
Prezados Senhores e Senhoras,
é com grande satisfação que vejo hoje um projeto há muito acalentado
tornar-se realidade: o da efetivação de um congresso de estudos
euro-brasileiros na região e na cidade do Brasil que talvez mais
justifiquem um evento dessa natureza. Sou-lhes assim profundamente
grato por esta oportunidade e este acolhimento. Sem naturalmente
o extraordinário empenho da Profa. Dra. Helena de Souza Nunes
à frente da ACDG não estaríamos aqui. A ela e a seus colaboradores
expresso assim o meu muito obrigado.
Gostaria de expor, em poucas palavras, o histórico de uma das
instituições promotoras desse evento e cujos fins estão intimamente
relacionados com o próprio escopo do Congresso. Antes de mais
nada, porém, peço-lhes a permissão para dizer algo a respeito
da minha pessoa. Quando se estuda publicações mais antigas sobre
a imigração centro-européia, em particular da alemã ao Brasil,
sempre se encontra a menção ao confronto entre o mundo cultural
teuto-brasileiro dos imigrantes com a sociedade envolvente, geralmente
denominada de luso-brasileira. Pois bem, eu sou um luso-brasileiro
no sentido mais justo do termo, que porém fêz uma experiência
similar àquela dos muitos imigrantes alemães no Brasil. Há 28
anos já que vivo na Alemanha, sinto-me lá profundamente integrado,
criei sentimentos e laços de lealdade para aquele país e seu povo,
sem, porém, de forma alguma, perder ou sentir diminuído o meu
amor e a minha fidelidade ao Brasil. Creio, assim, com base na
própria experiência de vida, poder ter empatia para a situação
dos muitos imigrados no Brasil, que procuraram conservar a sua
língua, os seus costumes e tradições, o seu elo íntimo com o país
natal, ao mesmo tempo criando raízes e vínculos de corpo e alma
com a nova terra.
Um casal excepcional que teve experiência semelhante está às origens
da Akademie Brasil-Europa: Tatiana e Martin Braunwieser. Tatiana,
nascida Kipmann, pertencia a uma família de origem alemã que vivia
no Império Russo, mais exatamente na Ucrânia de fins do século
XIX. A atmosfera intelectual e espiritual que reinava nos círculos
teuto-russos, as tendências místicas características da época
faziam com que as atenções se concentrassem em questões relativas
aos fundamentos do Europeu e do Não-Europeu, do Ocidental e do
Oriental. Uma profunda fascinação pela espiritualidade do Oriente,
na qual se via o caminho para a renovação cultural do Ocidente,
unia-se à consciência dos valores e dos fundamentos da cultura
ocidental na Antiguidade Clássica. Pretendia-se reaprender o esquecido
e enriquecer a cultura européia através de uma re-orientação da
formação humana.
Com a Revolução de 1917, iniciou-se o longo, difícil mas fascinante
caminho que conduziria por fim membros dessa família ao Brasil.
Após estadia na Criméia, em Istambul e nos Países Balcânicos,
a jovem Tatiana Kipman alcançou Salzburg, onde entrou em contacto
com professores e estudantes da Academia Mozarteum, então em profunda
transformação pedagógica sob a direção de Bernhard Paumgartner.
Era a época do redescobrimento de Mozart, do desenvolvimento de
novas linguagens musicais, de renovação do repertório, de métodos
e conteúdos de ensino, e do início dos famosos festivais de Salzburg.
Nesse ambiente veio ela conhecer Martin Braunwieser, compositor,
flautista e violista, um dos melhores alunos do Mozarteum da época.
Os antigos ideais do círculo do Oriente dos imigrantes teuto-russos
levou ali à formação de uma Academia livre de estudos espirituais,
da qual tomavam parte músicos eslavos, artistas e intelectuais
vinculados com a então nascente Antroposofia de Rudolf Steiner
e os ideais pedagógicos que levariam às Escolas Waldorf. Foi em
congresso da Sociedade Antroposófica que pela primeira vez na
Alemanha se ouviu as Saudades do Brasil de Darius Milhaud, um
compositor frances que estivera no Rio de Janeiro como adido do
embaixador Paul Claudel e que se deixou encantar pela música de
salão e popular carioca da época, em particular Ernesto Nazareth.
Em 1924 , os componentes dessa Academia de estudos espirituais
foram chamados a Atenas, com o objetivo de renovar o ensino e
a vida musical do tradicional Odeon, onde introduziram novos currículos
e criaram métodos. Imbuidos de idealismo, os músicos sonhavam
em levar o espírito clássico de Salzburg, terra de Mozart, aos
fundamentos históricos dos ideais clássicos. Realizaram assim
pela primeira vez o Requiem de Mozart no Estádio de Olimpia, não
deixaram, porém, de executar as Saudades do Brasil em Atenas.
Em 1927, então, o casal Braunwieser emigrou para o Brasil, para
a região no interior do Estado de S. Paulo onde hoje temos o nosso
centro de estudos. Teve início, então um verdadeiro apostolado
renovador da vida musical e da formação musical em cidades do
interior e da capital de S. Paulo. Esse movimento procurava atualizar
os programas de concertos com a inclusão de obras contemporâneas
centro-européias da época, incentivar a prática da música de câmara,
difundir obras de Mozart, Haydn, Bach e compositores mais antigos,
e, sobretudo, renovar o ensino, tendo sido eles os primeiros a
introduzir obras de Bela Bártok e Hindemith na formação musical
das crianças do Brasil. renovar o cultivo da música nas sociedades
de imigrantes russos, alemães, austríacos e italianos em S. Paulo.
Enquanto Tatiana se dedicava à difusão de obras instrumentais
e ao cultivo do Lied em alemão, M. Braunwieser procurava adaptar
hinos religiosos alemães para o português, tanto católicos como
evangélicos. A principal atenção era também aqui dirigida às crianças.
Juntamente com a então Rádio Educadora Paulista, criou ele já
em 1930, com texto de um dos mais renomados escritores de S. Paulo,
uma peça de teatro radiofônico infantil, o Logro do Surrão.
Sob a sua direção, o Coro da Colonia Alemã de S. Paulo, o Coro
Schubert, um dos melhores conjuntos corais do Brasil na época,
desenvolveu um extraordinário trabalho de incentivo da criação
do canto coral em português no Brasil. Acostumado com o movimento
coral popular na Alemanha, M. Braunwieser estranhou, no Brasil,
ver os nossos cantores e coros entoarem obras escritas em italiano.
Assim, singularmente, foram justamente círculos de imigrados de
idioma alemão os que mais contribuiram para a valorização do canto
coral em português em S. Paulo. Juntamente com M. de Andrade,
seu amigo e admirador, realizou o I° Congresso da Lingua Nacional
Cantada, em 1937, onde atuou à frente do Coral Popular, criado
aos moldes dos corais populares alemães. Em 1938, M. Braunwieser
foi enviado como assessor técnico para questões de musicologia
na famosa Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura
do Município de S. Paulo ao Nordeste do Brasil. As impressões
que teve dessa viagem, os materiais coletados e os trabalhos que
dela resultaram iriam marcar profundamente a sua vida futura.
Nas tradições que observou no Nordeste, M. Braunwieser sentiu
penetrar em esferas profundas da cultura, não nacional, mas universais,
ainda vigentes no Brasil. Reconheceu nas imagens simbólicas dos
autos e festejos do Brasil valores espirituais de um patrimônio
geral da humanidade que deveriam ser cultivados no ensino, na
formação do homem de outras regiões do país, também nas grandes
metrópoles.
A oportunidade para a aplicação desses conhecimentos na prática
educacional deu-se com a criação dos Parques Infantís de S. Paulo,
uma rede modelar e, na sua qualidade, pioneira no gênero na América
Latina. Já para as primeiras apresentações das crianças - provenientes
dos mais diversos grupos de imigrantes e das mais diversas classes
sociais - criou ele teatros musicados com temática referente à
floresta e aos índios, baseada na tradição denominada de Praiá,
estudada no Nordeste do Brasil. O paradigma por excelência do
trabalho pedagógico foi porém o auto da Nau Catarineta, a Barca,
também conhecida como Chegança ou Marujada.
Essa representação foi imediatamente aplicada ao ensino dos Parques
Infantís, com texto original e elaboração de renomados folcloristas
e escritores de S. Paulo. No enredo desses autos vinculados ao
símbolo do navio, Martin Braunwieser via o conteúdo central de
muitas das aspirações filosóficas, espirituais e de formação integral
do ser humano que tinham caracterizado as reflexões em Salzburg
e em Atenas. Esses festejos transmitiam para ele valores mentais
e de vida de forma lúdica, alegre, divertida, através da música,
da dança e do teatro, o que os faziam ideais para a aplicação
no ensino infantil dos Parques de S. Paulo. Tratava-se, nada menos,
de transmitir à crianças a idéia de que a vida pode ser comparada
a uma viagem marítima, sujeita a tormentas, a perigossa intempéries
e a lutas entre aqueles que conosco viajam, o que pode nos impedir
de alcançar com felicidade o porto, o objetivo, o término de nossa
viagem. O essencial nessa aventura é o vento que assopra as velas,
pois ele pode fazer com que a nave se desloque veloz e serenamente,
mas pode trazer tempestades, redemoinhos e agitar a águas em vagas
que colocam em perigo o navio, ou paragens que impedem o prosseguimento
da viagem. Nessas ocasiões é que se manifesta a sabedoria do capitão,
a orientação correta de direção pelo gajeiro no alto do mastro
e o trabalho conjunto da tripulação.
O vento, no sentido figurado, é o espírito, por assim dizer a
música da sociedade que nos envolve, do mundo externo na nossa
caminhada na vida. O sentido pedagógico dessa imagem seria o de
mostrar às crianças, formando o seu caráter, que não nos devemos
entregar a esse vento que vem de baixo e que levanta ondas, mas
sim manter a orientação e o rumo pelas estrelas fixas, norteando-nos
sempre por valores espirituais e éticos mais elevados. Com isso
garantimos a paz e a harmonia da tripulação do nosso barco e,
quase que em milagre, assim nos conta o auto, de repente as ondas
se acalmam, a nossa viagem e o próprio mar se tranquiliza. Figurativamente,
contribuimos assim para a paz no mundo que nos envolve.
Na interpretação mitológica, essa barca é o navio dos argonautas,
na interpretação bíblica é a arca de Noé, utilizada pelos jesuitas,
sobretudo alemães, na catequese por imagens do período barroco,
identificando-a com a constelação do navio Argo. Esta imagem é
um dos principais objetos de reflexão do simpósio de música sacra
e cultura b rasileira que acontecerá no âmbito do nosso Congresso,
pois o seu lema é: "música na procura de uma terra sem males",
uma narrativa de tradição indígena que corresponde à história
bíblica do dilúvio."
Como os Srs. percebem, portanto, o nosso congresso de estudos
euro-brasileiros tem dimensões músico-pedagógicas, filosófico-culturais
e até mesmo de pesquisa da ciência, pois nos ocuparemos com questões
de orientação, de correntes de pensamento e de relacionamento
humano na pesquisa e na prática musical.
Estes são os objetivos da Akademie Brasil-europa de Pesquisa da
Cultura e da Ciência, entidade que procura manter viva e atualizada
a tradição de pensamento que expus. É por essa razão que somos
gratos a todos os Senhores e, em particular, à ACDG por esta oportunidade
de convívio e de reflexões. O que mais desejamos é que o nosso
encontro se desenvolva em clima de serenidade, alegria, profunda
compreensão humana, solidariedade, harmonia, ou seja, que se guie
por valores propícios para a criação e fortalecimento de elos
duradouros de amizade, para que nós, como que marinheiros de uma
nave que se norteie pela estrela polar, possamos prosseguir a
nossa viagem na certeza de bem alcançar o termo final.
Da publicação:/Aus der Veröffentlichung:
Musik, Projekte und Perspektiven. A.A. Bispo u. H. Hülskath (Hgg.).
In: Anais de Ciência Musical - Akademie Brasil-Europa für Kultur-
und Wissenschaftswissenschaft. Köln: I.S.M.P.S. e.V., 2003.
(376 páginas/Seiten, só em alemão/nur auf deutsch)
ISBN 3-934520-03-0
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