Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 18 (1992: 4)
Na história do movimento orfeônico de Portugal do início do século
XX assume particular significado uma conferência realizada por
ocasião do primeiro concerto do Orfeon de Condeixa em Lisboa,
no dia 9 de fevereiro de 1916. Essa palestra, de Affonso Lopes
Vieira, de título "O Canto Coral e o Orfeon de Condeixa", foi
publicada em caderno vendido com o objetivo de angariar fundos
a favor da Escola do Orfeon. A publicação também foi difundida
no Brasil, sobretudo em círculos portugueses. (ver exemplar no
Real Gabinete de Leitura de Recife)
"As sociedades orpheonicas foram já tentadas em Portugal. O sr.
João Arroyo, uma robustissima organisação musical, creou o Orpheon
academico em 1880, em Coimbra, que tanto brilho deu ás festas
do centenario de Camões. Impressionado com o exito colossal que
tiveram os orpheons scandinavos na exposição de 1878, em Paris,
o eminente compositor organisou o Orpheon academico, que, excepção
feita do côro do Freyschütz de Weber e uma ou outra peça, só cantava
cantos portuguezes, uns populares, outros da lavra do sr. João
Arroyo, sobre lettra dos nossos melhores poetas. Todos os que
assistiram ás festas se lembram do exito enorme da Morena, de
Guerra Junqueiro, e da barcarolla popular coimbrã Maria a canôa
virou, que o maestro instrumentou maravilhosamente para vozes.
João Arroyo não teve successor e o orpheon morreu. A outra tentativa
é a do Orpheon portuense, de Moreira de Sá, que já referimos.
Brilhantemente iniciado, teve a breve trecho de se desviar do
fim para que foi creado, taes foram as difficuldades que a tenacissima
energia de Moreira de Sá não pôde vencer.
Porque morreram, quase ao nascer, os dois mais brilhantes, senão
unicos orpheons portuguezes? Por falta de alicerce. O alicerce
do orpheon é a escola e serão baldadas todas as tentativas que
não comecem pelo orpheon escolar." (Manuel Ramos, A Musica Portugueza,
op.cit. XXIX-XXX)
O autor, ligado por laços de amizade ao diretor do Orfeon da Condeixa, Dr. João Antunes, inicia a sua conferência confessando representar esse coro, constituído por 80 cantores, o mais belo e mais nobre fenomeno de construção que há longos anos se produzia em Portugal. Dada a vinculação com a Igreja - o seu diretor era sacerdote - o espírito do trabalho orientava-se por valores definidos pela vivência comunitária, passando intuitos nacionalistas para segundo plano:
"O Orfeon de Condeixa, cuja organização é anterior à brilhante
iniciativa de Antonio Joyce em Coimbra, - que ahi acaba de renascer
num orfeon cheio de belas intenções, vem a Lisboa cantar em beneficio
da piquena escola industrial que criou e mantem na sua terra;
e vem sobretudo evidenciar-nos como as qualidades do nosso povo
prestes se revelam e florescem sempre que aparecem os verdadeiros
educadores, - dando-se a esta palavra educador o alto e verdadeiro
sentido que ela tem e não aquele sobre que entre nós se faz confusão
lamentavel. Num momento tam temeroso e incerto como este que atravessamos,
chega-nos de uma vila nossa um exemplo eloquente e consolador,
lição de esperança e de harmonia. Portugal é feito de Condeixas,
e quando em cada uma delas se houver desenvolvido o espirito de
respeito, de solidariedade, de educação que este orfeon representa,
o problema nacional estará com simplicidade resolvido. Se eu atribuo
uma tam grande importancia ao facto moral que este orfeon significa,
é porque considero realmente os orfeons como o mais belo e mais
seguro meio de criar e espalhar o espirito de civilização. Já
o tenho afirmado e repito-o agora com a sinceridade de um homem
que adora o seu país: - não me assusta demasiadamente que tantos
portugueses não saibam ler; penaliza-me mais que não saibam cantar.
É que se todos soubessem ler, quem sabe o uso que eles fariam
de esse utensilio que a leitura representa, e tanto póde servir
para nos enfeitarmos por dentro, conforme o lindo dizer do classico,
como para diariamente nos envenenarmos. Mas se soubessem cantar,
reunindo-se em orfeons, é que forçosamente existia espirito de
educação e o sentimento de unidade moral que na velha linguagem
portuguesa se continha nesta palavra querida de D. João II - a
grey, e era o sentimento que unia os cidadãos da mesma patria,
aos quais irmanavam as tradições da nação e a comunhão da raça,
da terra e da linguagem.
[...]
Desenvolver em Portugal o espirito de educação por meio do canto
coral, eis uma das necessidades mais urgentes. É necessário sobretudo
que as nossas pobres crianças aprendam a cantar em côro, que nas
escolas primarias e nos liceus se constituam orfeons, e que os
homens que, como Antonio Joyce, demonstraram o seu talento de
organizadores de canto coral, não sejam desperdiçados em certas
coisas que toda a gente póde ser, como governador civil, mas aproveitados
no sentido que eu acabo de indicar.
Desenvolver em Portugal o espirito de unidade criando orfeons,
eis um dos remedios mais seguros. Eu sei que se póde sorrir de
estas opiniões e que póde haver quem as tenha por poesia, taxando-as
por este modo de cousa quimerica, a que os homens praticos não
devem ligar atenção. Será então ensejo de preguntar a esses inimigos
da poesia, - da poesia que é o sentimento da Beleza e tem forçosamente
de entrar em toda a obra social para a tornar viva e fecunda,
- de preguntar o que tem eles conseguido com os seus sistemas,
emfim com tudo aquilo que não é infelizmente a grande poesia que
o canto coral encerra, sendo, como é, uma escola de higiene espiritual,
de solidariedade, de disciplina, onde todos concorrem para um
conjunto harmonico unidos pela verdadeira fraternidade, que é
aquela que o poder da arte estabelece, onde todos cumprem a regra
porque todos a amam, podendo-se assim apenas constituir esse orgão
cujos tubos sonorosos são a mesma ideal realização, e podendo-se
só assim tambem criar o côro - suprema flor da arte e da concordia.
[...]
Mas se os orfeons são magnificos agentes de educação, são tambem,
independentemente da função educadora que desempenham, um maravilhoso
instrumento musical, que nós infelizmente estamos pouco habituados
a ouvir.
[...]
[...] a primeira vez que se pensou em apartar o grupo coral das
cerimonias solenes, religiosas como na Idade Media, ou civis como
nos grandes Jogos da Grecia, - a primeira vez que se imaginou
a criação do verdadeiro orfeon, cantando pela beleza, pelo prazer,
pela gloria de cantar, sem que os cantores se abrigassem sob as
abobadas dos templos, mas comunicassem com os ouvintes em pleno
campo ou em plena rua, - foi o mais poeta dos santos e o mais
artista dos homens quem o quis fazer, - foi S. Francisco de Assis,
que imaginou reunir os seus primeiros companheiros, esses belos
cavaleiros de uma nova Tavola Redonda, e cantar com eles pelas
provincias da Italia adiante o seu Hino ao sol ou Cantico das
Criaturas, cujas estrofes celebram Deus na natureza; e tendo previamente
combinado com os ouvintes que estes se comprometeriam a pagar
o preço da canção, no fim de a haverem cantado apenas exigiriam
do seu publico que este prometesse ser bom, amando-se cristanmente.
Se me refiro a esta encantadora passagem, cheia da mais alta poesia,
da vida do Santo, é porque ela exprime melhor que nenhuma outra
cousa o fundo de sociabilidade, de simpatia que o canto coral
encerra, podendo-se dizer que um orfeon é a melhor maneira de
os homens se sentirem irmãos. Aonde existe o espírito de unidade
moral, produzido pela comoção religiosa ou pela comoção patriotica,
o canto coral surge, o côro ergue e alarga as suas asas, subindo
num vôo ou pairando, vindo do mais recondito das almas, sendo
a propria alma expressa nos sons.
Em Portugal o canto coral não póde por isso ser popular como o
ficou sendo nos paises do norte, onde se perpetuou o espirito
de confraria, de corporação de artes-e-oficios, espirito que lhes
ficou da Idade Media, por tanto tempo acoimada de barbara, e de
que a alma moderna, tendo-lhe descoberto a beleza, acabou por
se sentir tam nostalgica; paises onde as crianças se acostumam
a cantar em côro desde a escola infantil, do mesmo modo que as
nossas se acostumam a conjugar com disolação, os verbos.
[...]
O Orfeon de Condeixa é um orfeon popular, na mais nobre acepção
de esta palavra. É um verdadeiro orfeon, não um grupo de salão,
mas uma associação de que fazem parte operarios do campo e das
oficinas, proprietarios, empregados do comercio e do Estado, velhos
de setenta anos e crianças de onze. O professor de instrução primaria
de Condeixa encontra-se no Orfeon, e canta com alguns dos seus
discipulos. Dentro de esta confraria desapareceram as castas,
as diferenças de fortuna, as opiniões individuais; só o grupo
vive, apenas o côro existe. É este o espírito dos orfeons, e é
esta, que eu saiba, a primeira tentativa que no genero se faz
em Portugal.
[...]
Chegaremos depois ao grupo das canções tradicionais, flores que
rescendem ao perfume dos nossos campos, das nossas serras e das
nossas praias, e nos trazem os ritmos das provincias aonde desabrocharam
e de que elas são a alma expressiva e alada. Todas essas canções
são velhas e autenticas, anteriores à influencia das revistas
e isentas de outras influencias que tanto prejudicam o folklore
musical.
Algumas delas provêm da região de Coimbra até ao mar, terra admiravel
de ritmos onde as mulheres tem tam lindas vozes e sabem usar delas
com tanta graça, como em Buarcos, onde existem talvez as mais
belas cantadeiras de Portugal; são muito anteriores á influencia
que um pobre rapaz chamado Adelino Veiga, operario e poeta, exerceu
nessa região com a grande autoridade que tinha entre o povo, e
que chegou a fazer dansar e cantar, nas fogueiras do San João,
a Marselhesa. Desde essa encantadora bailada Senhora da Encarnação,
em cujo ritmo longo e balançado se adivinha logo a vizinhança
do mar, até á canção de ciganos, que indica no seu ritmo de marcha
uma bela e estranha canção de caminho, todas elas nos vem falar
de Portugal, do seu lirismo e da sua paisagem, do seu solo e da
sua tradição. Eu considero uma fortuna para nós podermos ouvir
todas estas cantigas nossas, que vem trazer á aridez da cidade
onde o povo arranca com raiva os vegetais, - segundo a frase cruel
de Baudelaire, - a frescura dos seus ritmos longos, vivos ou melancolicos;
considero que as nossas almas hão de mergulhar com delicia no
portuguesismo de esta evocação da patria, no que ela tem de mais
sentido - a canção religiosa e lirica popular."