Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 18 (1992: 4)
Se o grande movimento educador de meados do século XIX, vinculado
à personalidade de Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875),
nascera no seio das tradições caritativas açorianas, fora imbuído
de espírito religioso-humanitário e defendera valores de solidariedade
comunitária de cunho cristão, na procura do progresso social,
outras são as tendências que se acentuam nas últimas décadas do
século.
A justificativa da importância a ser dada às tradições e ao valor educativo e social da música passou a assumir um tom etnicista-racial e nacionalista. O conceito de tradição passou a ser definido como temperamento da raça exemplificado na história :
"Parece comprehender-se hoje que a differenciação das raças é
uma condição de progresso e que o regionalismo não é incompativel
com a solidariedade humana e antes a promove efficazmente.
N'este movimento é justo que não fiquemos um paiz cosmopolita,
isto é, neutro, e procuremos dar á nossa nacionalidade uma base
organica pela tradição, que não é mais do que o temperamento da
raça exemplificado na historia.
E no tocante á musica é necessario que façamos tudo, porque infelizmente
está quasi tudo por fazer.
A reforma n'este ponto é a creação - creação do gosto, creação
do ensino popular baseado sobre o canto choral e nacional, creação
da musica portugueza moldada sobre as canções do povo." (Manuel
Ramos, op.cit. XI-XII)
O nacionalismo de Manuel Ramos se manifesta na sua interpretação
anacrônica do desenvolvimento histórico português e na crítica
populista de compositores mais antigos. Segundo tal perspectiva,
arte do povo seria idêntica a arte nacional e o internacionalismo
seria próprio da aristocracia:
"Ao lado da arte popular, nacional, vinha formar-se uma arte aristocratica
e extrangeira, propria para alimentar o espirito de desnacionalisação
que ha seculos nos vem avassallando em tudo e de que só agora,
parece, tentamos emancipar-nos.
(...)
O desprezo pelo elemento artistico nativo vem sempre das implantações
eruditas, verdadeiros enxertos que nunca attingem a exhuberancia
das vegetações espontaneas.
(...)
Sobre esta base [o folclore musical] se ha de construir a arte
nacional - e se ella um dia chegar a constituir-se, será então
azado o momento para a critica levantar da obscuridade os quasi
desconhecidos mineiros que arrancaram á ganga do sub-solo tradiccional
as inspirações das modinhas, e reduzir ás suas proporções de eruditos
e theorisadores os que foram, em arte, estrangeiros na própria
terra natal, como lá diz o poeta.
O nosso folk-lore musical, dissemos nós, está por fazer.
A poesia mereceu, e era isso natural, a predilecção dos folk-loristas.
Em Portugal essa fórma de arte tem sido quasi o objecto exclusivo
das investigações dos demophilos: embora as superstições, os proverbios,
os contos, o direito consuetudinario, as lendas religiosas, as
instituições familiares tenham sido tambem exploradas com dedicação.
As artes plasticas, as industrias populares começaram a ser estudadas:
a musica não foi lançada á margem, mas a propria natureza d'esta
arte é já um obstaculo grande ao trabalho de compilação do nosso
cancioneiro.
O sr. Neves e Mello publicou em 1872 as 'Musicas e canções populares
colligidas da tradicção', onde principalmente avulta o cancioneiro
das cercanias de Coimbra e depois d'isso apenas se tem publicado
algumas canções avulsas e colecções de fados, o genero mais conhecido
(casas editoras Miguel Angelo e Costa Mesquita). N'esta insufficiencia
poderia ver-se ou suspeitar-se uma fraqueza da inspiração popular.
Nós temos conhecimento de muitas musicas populares nacionaes e
a sua incontestavel belleza é a melhor garantia do exito de qualquer
empreza fundada com o intuito de colher as toadas e os cantos
do povo portuguez." (op.cit. IX-X)
Enquanto A. F. de Castilho orientara-se pela função modelar da
soberana como primeira educadora da nação e solicitara o apoio
do parlamento ao movimento nascido de uma sociedade particular,
Manuel Ramos, em atitude caracteristicamente nacionalista, clamava
diretamente pela iniciativa estatal no trabalho de coleta folclórico-musical
e na educação musical:
"Esta empreza é mesmo das que pertencem á iniciativa governamental,
e assim se tem pensado em alguns paizes onde a cultura musical
e orpheonica é com justa razão tida como uma attribuição do Estado,
pela estreita connexão que tem com a formação do caracter collectivo.
A iniciativa particular de mãos dadas com o auxilio dos governos,
ou estes, mesmo independentemente d'aquelle concurso, conseguiram
organisar as magnificas e riquissimas collecções que forneceram
aos musicos contemporaneos a materia prima das suas inspirações.
Grieg, Borinsk, Alseben, Trint e outros, nos paizes scandinavos,
Dvorak na Bohemia, Brahms, Liszt na Allemanha, Lalo, Ducoudray
em França, Chapi, Arrieta, Sarasate, Barbieri em Hespanha, Peter
Benoit na Belgica, Napravnik, Tschaikowsky, Borodin, Serbatcheff,
Rimsky-Korsakoff, Glinka na Russia, são os chefes d'este movimento,
que se liga ao impulso nacionalista manifestado sob todas as formas
sociaes, desde a actividade economica até á artistica e especulativa.
Dizendo que quasi tudo estava por fazer, corre-nos a obrigação
de dar conta dos esforços que entre nós tem feito a iniciativa
governamental e a particular, e mencionar as tentativas cuja raridade
as impõe á homenagem dos cultores da boa arte.
(...)
O Orpheon portuense, fundado em 1878 pelo eminente violinista
e distinctissimo pedagogo (Moreira de Sá), é das instituições
que mais serviços teem prestado á causa periclitante do bom gosto.
(...)
Dada a situação musical entre nós, estando por compilar o cancioneiro
nacional e ainda por fazer uma arte portugueza, é evidente que
falta ao ensino popular a sua unica base.
(...)
Repetimos: é uma obra nacional, que se prende intimamente com
o levantamento do genio collectivo e com uma das imprescindiveis
exigencias affectivas da multidão e da cultura esthetica do povo."
(op.cit. X-XI)
Como todos os idealistas da educação musical popular, também Manuel
Ramos refere-se ao alto nível do ensino nos outros países europeus,
sobretudo na França e na Europa Central e do Norte, citando-os
como modêlos para Portugal:
"O ensino popular da musica, isto é, a musica na escola primaria,
está de ha muito organisado nos paizes germanicos e scandinavos
na sua fórma definitiva - o orpheon.
A França, comprehendendo depois dos seus desastres a immensa vantagem
de introduzir o ensino da musica na escola primaria e de impulsionar
o movimento orpheonico dando-lhe por base o orpheon escolar, é
o paiz que melhor nos póde servir de modelo, a nós que não acabamos
de sair d'uma campanha infeliz, que não fomos derrotados pelo
extrangeiro, mas o somos todos os dias por nós mesmos, pela nossa
apathia e pela nossa indifferença.
O sentimento d'uma inferioridade real despertou o espirito francez
e um dos grandes senão o maior estadista da terceira republica,
Julio Ferry, consultou sobre a fórma e vantagens do ensino musical
primario homens como Saint-Saens, Bourgault-Ducoudray, Chouquet,
Mercadier, Danhauser, Vervoitte, Dupaigne e Chevé.
D'estas consultas nasceu o decreto de 23 de janeiro de 1883, assignado
por Paulo Bert mandando constituir junto do ministerio de instrucção
publica uma grande commissão encarregada de elaborar um projecto
de organisação do ensino do canto nas escolas normaes e primarias
e apresentar um relatorio sobre esta questão.
A 18 de junho do mesmo anno mandava Julio Ferry, então ministro,
aggregar á commissão os grandes pedagogos Duruy, Gréard, Bréal
e Pécaut.
Georges Guéroult, pouco depois, apresentava, em nome da commissão
do canto, o Relatorio sobre o projecto de programma de estudos
musicaes nas escolas primarias e escolas normaes de professores,
e os programmas respectivos, que o conselho superior adoptou nas
suas linhas geraes, simplificando-os quanto era possivel.
A creação do ensino musical popular obedecia mais ao pensamento
de desenvolver e educar o gosto, do que a ideias de virtuosismo
ou preoccupações technicas, que foram inexoravelmente proscriptas.
É instructivo para nós seguir de perto os episodios e phases por
que passou esta questão em França e veem consignados n'uma publicação
official do ministerio de instrucção publica e bellas artes -
'Enseignement du chant, travaux de la commission, rapports et
programmes, 1884.'
Por ali se vê a importancia capital que a França, pela cabeça
dos seus grandes homens, deu a este problema, ella que ouviu dentro
dos muros de Paris os cantos patrioticos do soldado allemão, feitos
pelos poetas e pelos musicos que levantaram a Allemanha das ruinas
de Iena.
O sentimento patriotico fez ver á França que se desfez em Sedan,
a importancia da musica, o seu poder communicativo sempre que
se tracta de exprimir o sentimento das multidões, o élan que faz
da grande arte de Beethoven uma disciplina affectiva, irresistivel
e poderosa.
A nossa escola primaria, sob este ponto de vista, ainda espera
o seu Messias." (op.cit. XX-XXII)
O livro de Manuel Ramos tem particular interesse para o estudo
específico da legislação do ensino musical em Portugal no século
XIX. Embora o seu relato tenha escrito com sentido crítico de
indicar as deficiências de tal legislação e da sua pouca repercussão
prática, demonstra um alto grau de preocupação de órgãos oficiais
a respeito:
"A lei de 2 de maio de 1878 estabelece o ensino do canto choral
para a instrucção primaria complementar (artigo 3°, n° 12).
Emquanto ao ensino primario elementar, estabelece a mesma lei
que tres annos depois de fundadas as escolas normaes, elle será
ampliado com o canto choral, a gymnastica e noções elementares
de agricultura (artigo 4°).
Os programmas de instrucção primaria elementar, auctorisados provisoriamente
a 8 de abril de 1882, isto é, mais de tres annos depois da lei
citada, nada dizem ácerca do canto choral.
A lei não foi tão dura com o ensino complementar.
Os programmas d'este ensino, apenas indicados no artigo 3° da
lei de 2 de maio de 1878 e nos capitulos IV e V do regulamento
de 28 de julho de 1881, só foram publicados na portaria de 25
de julho de 1887 em execução da lei de 23 de maio de 1884 que
creou o conselho superior de instrucção publica e collocou entre
as suas attribuições a de elaborar aquelles programmas.
Ora estes programmas, na parte que se refere ao canto choral,
são verdadeiras prescripções e conselhos ao professor, accnetuando
o caracter do ensino, que não visa a formar cantores ou musicos,
mas a melhorar as condições physicas das creanças, robustecer
os pulmões e os orgãos da phonação, cultivar e aperfeiçoar o ouvido.
O professor, sem profundar as theorias da arte, deve, depois dos
exercicios necessarios para a formação da voz, ensinar cantos
de facil melodia e que estejam dentro da tessitura infantil.
Aconselha-se um grande escrupulo na escolha da lettra, preferindo-se
a que a par do sentimento esthetico, incute noções elevadas, e
inspira os affectos de familia, o amor da patria, do trabalho
e do dever sob todas as fórmas.
'Convem ensinar ás creanças cantos nacionaes quando estes se recommendem
pelo assumpto e perfeição, cantos escolares para o principio e
fim da escola, córos que os discipulos entoem na mudança de classes,
durante os recreios, cantos combinados com os exercicios de gymnastica
elementar, etc., cantos unisonos ou a duas ou tres vozes.' (Legislação
da instruccão primaria, excellente compilação do sr. Guilherme
Augusto de Macedo Alves, tomo I°, pagina 705 - Lisboa, 1889).
Manda que se explique ás creanças o sentido da lettra, accentuando
as palavras segundo a intenção do poeta.
E por fim prescreve a par da pratica a theoria reduzida ao indispensavel,
aos elementos da grammatica musical, o conhecimento da pauta,
systema de notação, nome, fórma e valor das figuras de musica
e pausas correspondentes, explicacão das claves, signaes com que
se indicam os sons intermedios aos da escla diatonica, compassos,
tons, modos, etc. (Obra citada, pagina 706).
Do exposto se infere que a lei, em vez de programma, dá uma série
de indicacões geraes que não destoam dos bons principios e antes
se inspiram n'elles.
Dados, porém, os nossos habitos regulamentares até á ultima das
minuciosidades, occorre explicar o caracter latitudinario d'este
programma não pelo respeito da iniciativa e liberdade do mestre
na escolha dos meios, mas pelo pouco interesse que este ponto
offereceu á attenção do legislador.
Onde estão os cantos populares que o reformador aconselha? Todos
os paizes os organisaram para as suas escolas - em França a collecção
Canhauser, nos Estados- Unidos a collecção Mason, e assim nos
outros paizes.
Entre nós seria necessario que os bons compositores fizessem musica
para as poesias que os nossos poetas escreveram para a infancia
ou não transcendem a sua comprehensão; que os poetas, pela sua
parte, adaptassem ás canções populares lettra condizente, fortemente
rythmada, ou finalmente se emparelhassem musicas e poesias já
conhecidas, cuja indole se prestasse á fusão perfeita da palavra
com a melodia.
Ora o legislador não ignora que tudo isto está por fazer e o caracter
vago do programma n'esta parte torna-o apenas uma fórmula platonica
sem alcance.
Os factos corresponderam á indifferença da lei. O ensino musical,
não existindo nas escolas elementares, e tendo apenas existencia
legal e não de facto nas escolas complementares, póde considerar-se
como nullo e inaccessivel para o povo.
Ainda mesmo que o ensino da musica existisse de facto na escola
complementar, e na hypothese favoravel (e infelizmente falsa)
de se observar integralmente a obrigação escolar, teriamos 407
escolas com ensino musical e 4:932 sem elle, isto é, a diffusão
d'aquelle ensino effectuar-se-ia n'uma insignificante minoria.
Raciocinamos sobre os dados da estatistica de 1889 que dá 4:932
escolas elementares em todo o paiz (officiaes e particulares)
e 407 complementares, pondo mesmo de parte a circumstancia de
serem as primeiras mais numerosamente frequentadas do que as segundas.
D'aqui se infere que o ensino musical do povo é ainda um mytho.
O legislador tendo introduzido o canto choral no ensino complementar
e tendo em mente, ainda que só na mente (artigo 4° da lei de 22
de maio de 1878), introduzil-o tres annos depois da publicação
da lei no ensino elementar, não podia deixar de o incluir nos
programmas das escolas normaes, para os cursos do I° e do 2° grau.
O regulamento de 28 de julho de 1881, no artigo 127, capitulo
n, inscreve o canto choral no seu n° 17 como fazendo parte do
ensino normal. Na tabella annexa são destinadas tres horas por
semana áquelle ensino.
O programma (vide Legislação citada, pagina 180, 1° volume) exige
que o alumno chegue a praticar o solfejo á primeira vista, que
escreva n'um dado tom melodias conhecidas ou as que o professor
entoar, e tenha o conhecimento elementar do piano.
Tal como é, este programma é sufficiente desde que não exista
apenas no papel.
Ignoramos como elle se cumpre na escola normal de Lisboa. Na do
Porto está este ensino entregue a um dos primeiros professores
e musicos portuguezes, o sr. Moreira de Sá, que é de uma competencia
apenas comparavel á sollicitude com que se desempenha do seu cargo
- estando o mesmo ensino a cargo de madame Aussenac, uma professora
intelligentissima, na escola do sexo feminino.
Não podemos terminar esta parte do nosso rapido estudo sem referir
os louvaveis esforços que a camara municipal de Lisboa empregou
no sentido de remediar as deficiencias da lei, introduzindo o
ensino do canto nas escolas do municipio e fazendo-o ministrar
em algumas por professores especiaes.
A ultima lei centralisadora do ensino primario inutilisou por
completo aquella magnifica iniciativa.
Sobre a base que pretendemos dar ao ensino popular da musica poderá
objectar-se que não seguimos a tradição. Com effeito o orpheon
não existe na tradição portugueza.
Mas se nos é licito a comparação, nós julgamos que a tradição
deve alimentar-se como todo o organismo vivo. Nós assimilamos
dia a dia grande cópia de elementos novos, que veem substituir
os elementos gastos que vamos eliminando, sem perda da individualidade
que persiste." (op.cit. XXIII-XXVIII)
(A.A.B.)