Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 08 (1990: 6)
(Excertos)
O mundo tem vivenciado nos últimos meses profundas modificações no quadro dos relacionamentos internacionais. Uma verdadeira revolução atingiu inúmeros países e superou situações e conceitos considerados, eles próprios, até então como revolucionários. A derrubada do muro de Berlim foi o ato que marcou como símbolo o fim de uma época. Com a mudança no relacionamento entre as duas grandes potências mundiais e com a nova organização da Europa alastra-se um movimento transformador pelos países do assim chamado Terceiro Mundo. Alguns deles perdem os esteios econômicos até então proporcionados pela solidariedade ideológica.
A historiografia da África durante a década de 60 e parte da década
de 70 foi dominada por estudos da resistência africana ao imperialismo
europeu e ao domínio colonial. O despertar de um nacionalismo
de massas na África do pós-guerra levou os historiadores a esquadrinhar
o passado em busca de antigos líderes que pudessem ter sentido
de arquétipos para a luta anticolonial, e a resistência tornou-se
a dimensão histórica do nacionalismo.(...) Mais ou menos na mesma
altura em que os historiadores nacionalistas demonstravam a importância
dos movimentos de resistência, também os estudiosos do imperialismo
reconheciam o papel de resistência à formalização da expansão
imperial. (...) Leroy Vail e Landeg White, "Formas de resistência: canções e noções
de poder na colónia de Moçambique", Revista Internacional de Estudos
Africanos 2 (1984), 9-62
Esse processo renovador é de suma relevância para o mundo de língua
portuguesa. Portugal teve suas experiências revolucionárias no
período posterior a 1974, experiências que marcaram profundamente
a vida intelectual do país. Também o campo da investigação musical
não deixou de ser influenciado por esses acontecimentos.
Uma terceira possibilidade, e esta mais explicitamente 'subjectiva'
do que as duas primeiras, estuda as criações das próprias pessoas,
as formas pelas quais se exprimem as preocupações fundamentais
dessas pessoas. Destas, as mais acessíveis são as canções e as
narrativas orais, que muitas vezes, directa ou implicitamente,
fazem referências simbólicas a experiências e preocupações colectivas.
(...) Para ilustrar esta forma de escrever a história social 'a
partir de baixo' iremos analisar o conteúdo de cerca de 200 canções
africanas gravadas em 3 regiões diferentes de Moçambique.
A formação obtida marca também e caracteriza a literatura específica conhecida e usada, o intercâmbio de idéias dentre de uma determina rêde de contactos, a compreensão do fenômeno musical sob uma certa perspectiva, os critérios de julgamento de publicações e uma visão particular do desenvolvimento da matéria e do seu objeto de estudo. Ela condiciona também os fatores subjetivos que influenciam profundamente as relações humanas entre os especialistas, o que leva ao apoio mútuo e à conseqüente formação de grupos.
Essa situação pode ser observada até mesmo e principalmente - ironia da História - nos Estados Unidos da América. E também em grupos de especialistas do "Terceiro Mundo" formados na grande nação do Norte em determinadas áreas da ciência e que ainda não conseguiram libertar-se de certos elos de dependência. Como se explicaria tal estranha situação, que vincula a ciência de determinados círculos dos Estados Unidos - e de organizações internacionais - com um repertório conceitual próprio dos sistemas totalitários em via de serem ultrapassados na Europa? Naturalmente não se pode aqui considerar as razões desse fato. Talvez seja um dos principais esteios desse sistema um singular culto celebrado por ex-alunos de determinados estudiosos.
É obrigação de toda a ciência tentar superar-se continuamente, mantendo perenemente a atenção dirigida aos próprios fundamentos epistemológicos. Tudo leva a crer que está ocorrendo e que ocorrerá cada vez mais intensamente uma mudança paradigmática na Musicologia. Essa mudança deverá caracterizar-se pela superação da superficialidade de intenções sócio-políticas sob o manto de aparente cientificidade que marcaram e marcam tantos trabalhos. Uma superficialidade que se escondeu e se esconde muitas vezes sob o pretexto da necessidade de escrever também para leitores não especialistas, de evitar termos técnicos e complexas construções de frase, embora mantendo-se escrupulosidade em "scholarship". O que abre muitas vezes as portas da ciência à propaganda.
Trata-se sobretudo da responsabilidade necessária para não se permitir, metaforicamente, que se levantem novos muros. Ou seja, que os países do assim chamado Terceiro Mundo não se transformem em refúgios de autores e correntes que aí pensem em sedimentar oficialmente nos meios acadêmicos uma determinada musicologia - especialmente Etnomusicologia - de conteúdo particularista. Estabelecimento esse através da formação pós-graduada de especialistas, de influência na organização de currículo de cursos e na oficialização de áreas da matéria a nível universitário.
Esse cenário internacional é de importância primordial para os países africanos de língua portuguesa. Recorde-se que a vitória de certos movimentos em Angola, Guinea-Bissau e Moçambique deu-se em estreito relacionamento com os acontecimentos ocorridos em Portugal. Em 16 de novembro de 1974, assinou-se o tratado de independência de São Tomé e Príncipe. Portugal renunciou também no mesmo ano a seus direitos relativos aos territórios de Goa, Damão e Diu ocupados pela Índia e, em 1975, viu a revolta rebentar em Timor. Os países africanos de língua portuguesa encontram-se atualmente às vésperas de profundas modificações. Mudanças que atingem também a intelectualidade.
A nova 'produção científica' foi decididamente estimulada por
uma intercomunicação intensa entre os autores, cujo interesse
teve, por sinal, em muitos casos, a sua origem numa solidariedade
com as lutas de libertação e os subsequentes esforços de 'reconstrução
nacional'. O Arbeitskreis Portugiesischsprachiges Afrika (APSA),
constituído em 1977, passou a ser o instrumento principal desta
intercomunicação, promovendo encontros anuais que, sobretudo,
forneceram ocasiões para um intercâmbio sistemático de abordagens
e resultados de pesquisas, incentivando assim a investigação individual
e de grupos. Franz-Wilhelm Heimer, "Obras em língua alemã sobre a África de
expressão oficial portuguesa: a 'colheita' dos primeiros anos
oitenta". Revista Internacional de Estudos Africanos 2(1984),
177-199
Qual a posição que se deve tomar perante autores e obras representantes
dessa época histórica que parece chegar a seu fim? Essa é uma
questão muito discutida na Alemanha, país particularmente atingido
pela reviravolta que levou à reunificação de suas duas partes
até agora submetidas a sistemas antagônicos. Particularmente delicada
é a situação dos historiadores e professores de história, que
durante décadas transmitiram conceitos baseados numa visão ideológica
do desenvolvimento e que agora modificam os seus ensinamentos.
Ensinamentos esses até então considerados básicos mesmo para a
aprovação de estudantes e para a carreira acadêmica. Como explicar
a leitores e alunos o procedimento anterior e a mudança súbita
de convicções? Inúmeras são as entrevistas na rádio e televisão
e os artigos em jornais e revistas que tratam desse atual dilema.
Tal problema diz também respeito à História da Música. Autores e obras até agora citados e reconhecidos passam a ser evitados. Livros desaparecem da circulação. O que fazer com as publicação até agora realizadas sob incentivo e patrocínio do serviço editorial ligado ao Estado e ao Partido? Partituras, discos, livros de arte, biografias de compositores ou reproduções em fac-símile continuam e continuarão naturalmente a ser usados. Mas o que fazer com a imensa literatura de cunho ideológico?
Esse é o problema que atinge muitos títulos de história da música, etnomusicologia e, principalmente, de sociologia e estética da música. Livros que foram produzidos em massa e exportados em grande quantidade para países do "Terceiro Mundo". Um problema que também se coloca, ou se colocará, se bem que em menor escala, no caso de publicações em língua portuguesa.