Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 05 (1990: 3)
Antonio Alexandre Bispo
Com a região do descobrimento do Brasil e da celebração da primeira
missa na Terra de Santa Cruz relaciona-se a primeira notícia documental
da História da Música no Brasil. Porto Seguro situa-se no início
do processo, quer espontâneo quer dirigido, do confronto de culturas
musicais. Dessa região tem-se também alguns dados de décadas posteriores
do próprio século XVI. Apesar do significado quase que simbólico
de Porto Seguro para a História da Música no Brasil, a região
dominada por essa cidade não foi ainda objeto de pesquisa histórico-musical
aprofundada. Sabe-se, porém, que desde a segunda metade do século
XIX a cidade alcançou certo renome regional pelas suas bandas
de música.
Foto oferecida por ocasião da viagem de pesquisas de 1970
A pesquisa do passado musical de Porto Seguro é dificultada pela lamentável deterioração de fontes musicais ocorrida na sala do acervo da banda de música local nos anos 60. Restos desse acervo foram vistoriados pelo editor em 1970, época em que Alício Borges da Silva era mestre da Filarmônica "2 de julho" (2 de julho de 1949) e professor de 16 aprendizes (cf. artigo publicado no órgão da Sociedade Internacional de Pesquisa de Música para Sopros, "Blasmusikforschung und -förderung in Brasilien", Johann Joseph Fux und die barocke Bläsertradition, Kongreßbericht Graz 1985, ed. B. Habla, Alta Musica 9, Tutzing 1987, 253-262).
Dos mestres de música da primeira metade do século XX lembrados pelos músicos mais idosos de Porto Seguro e da região costeira até Belmonte destaca-se o já falecido Antonio Adueno da Silva. A respeito desse músico e compositor, cujos dados biográficos ainda precisam ser levantados, contam-se legendários acontecimentos que denotam a rivalidade musical que no passado existiu entre Porto Seguro e Belmonte.
Segundo Josephino Bento Santos, ex-Presidente da Filarmônica "2
de Julho", a vinda de Antonio Adueno da Silva para essa cidade
foi causada por um fato ocorrido em Belmonte, indicador da personalidade
e da capacidade do músico. No tempo em que este regia a Filarmônica
"XV de Setembro" de Belmonte, conta o relato, houve uma falta
de novos dobrados. Nessa época, a banda rival, a "Lira Bonfim",
recebeu uma novidade, o dobrado "Escovado". Enquando a Lira ensaiava
a peça, Antonio Adueno, do lado de fora da sede, "tirou" o dobrado
de ouvido. No dia da apresentação, a Filarmônica "XV de Setembro"
executou o "Escovado" antes da "Lira", com grande surprêsa de
todos. Em conseqüência do desentendimento resultante, Antonio
Adueno da Silva, que passou a ser conhecido pelo cognome "Caneta",
foi obrigado a se retirar para Porto Seguro. Nessa cidade, atuou
na Filarmônica "Lira dos Artistas", antecessora da "22 de Abril"
e da atual "2 de Julho". De suas composições, a Filarmônica de
Porto Seguro possuia no seu repertório, em 1970, o dobrado "O
Rei do Mar". Obras suas foram também encontradas no repertório
de outras bandas do litoral baiano. Assim, tocava-se em Caravelas
a "Valsa Estelita" do compositor. Das peças mais antigas do repertório
da banda local executadas no tempo de A. Adueno, uma "Ouverture
São Sebastião", de autor desconhecido, ainda hoje é lebrada pela
parte solista do fagote (substituido por outros instrumentos).
A parte mais antiga encontrada dessa composição traz a indicação:
"Porto Seguro, 10 de janeiro de 1909".
A caligrafia desse manuscrito permite a identificação do copista.
Trata-se de Pedro Sérgio Morais, mestre da banda de Porto Seguro
dos fins do século XIX e início do século XX. Conhecido pelo cognome
"Pedro Inhac", Pedro S. Morais foi afamado clarinetista na região
e formou vários músicos. Ainda em 1970 vivia um de seus alunos,
Manoel Dias da Silva (*1908). Da produção musical de Pedro S.
Morais, a banda de Porto Seguro mantinha ainda no seu repertório
o dobrado "Porto Seguro" e a "Polaka Estephania". Desse compositor
é também o dobrado "Jacintho", uma das tradicionais e mais antigas
peças do repertório da banda.
Músicos e amantes de música de Caravelas (Mtro. José Salamin de
Souza) e Prado também se orgulham do passado musical das respectivas
localidades. Principalmente o antecessor de Eduardo Bonfim, último
mestre da "Lira Pradense", Oswaldo B. Sant'Anna, é guardado na
memória dos mais idosos como exímio instrumentista e autor de
composições de grande popularidade, entre elas, o dobrado "Fazenda
Pau Brasil". Obras de Cláudio Hortênsio da Silva foram encontradas
no repertório de diversas bandas do litoral sul da Bahia. Segundo
Pedro Rodrigues, contra-mestre da "Lira Pradense", Cláudio Hortênsio
da Silva foi funcionário da Estrada de Ferro; com a extinção do
ramal de Caravelas, foi removido, não se tendo notícias de seu
paradeiro. Composições de C. H. da Silva existentes em Prado:
marchas "Nossa Senhora da Ajuda", "Nossa Senhora de Lourdes",
"Senhor do Bonfim", "São Jorge", valsa "Esperança", dobrados "Wanderley
Borges", "Antonio de Pádua", "Bonança", "13 de junho", "João Celestino"
(Caravelas, 1960) e "Antenor G. de Assis".A "Lira Santo Antonio"
de Caravelas conservava, na época, três dobrados do compositor:
"Lira Santo Antonio", "Sonhos de Outono" e "Netuno".
A julgar pelo teor dos relatos de velhos músicos e pelo conteúdo dos acervos musicais, Belmonte contou com vida musical mais intensa do que Porto Seguro, sendo a sua principal corporação a "Sociedade Filarmônica Lira Popular", fundada em 8 de dezembro de 1914 (primeiro regente: Esmério Coriolano Martins; regente à época da pesquisa: Ricardo Gomes da Silva). Entre os mestres dessa cidade lembrados pelos músicos mais idosos (Julião São Pedro e Faustiniano Henrique do Carmo) destaca-se Ricardo Gomes da Silva. Embora pessoalmente "não gostasse de suas próprias composições", esse mestre deixou obras que alcançaram popularidade local, por exemplo a valsa "Professora Idil Lemos Silva" e a marcha "Maria".
Um dos destacados compositores de música de banda de Belmonte,
na época da investigação, foi Silvino Santos. Esse músico se orgulhava
de ter recebido aulas de Estevão Moura, Antonio Braga, Antenor
Bastos e João Azevedo em Feira de Sant'Ana (Filarmônica "25 de
março"), continuando o seu aprendizado em Nazaré das Farinhas
e Santo Antonio de Jesus. Esses vínculos de Silvino Santos com
músicos de Feira de Sant'Ana demonstram o relacionamento de Belmonte
comum dos maiores centros de cultivo musical da Bahia. Também
o regente da tradicional Filarmônica "25 de março", fundada em
1868, Claudemiro Dalto Barreto (dobras "Claudemiro Filho", "Verde
Amarelo", "Recordação", "Estevão Moura", marchas "Vem amor", "Vou
brincar na Micareta", frevos "Parece mas não é", "Pisa macio",
"Sururu", "Os bodes", "Frevo na lua"", "Amigo da onça", "Museu
de cêra", "Agachando", etc.) foi aluno dos professores de Silvino
Santos.
Entre os compositores que fizeram dessa região uma das mais significativas para o estudo da música de banda no Brasil citam-se J. Camelieu (dobrados "Sociedade 25 de março", marcha "Sons de Minerva"), Armando Nobre (fantasia "Alma redentora", marcha-concertante "Lydia Borges", marcha "Leda Silva", dobrados "Antonio Vasconcelos", "Recordação de Nilbela") e Antonio Tertuliano Santos (valsas "Regina Santos" e "Anna Fernandes", polca "Adélia Victoria", dobrados "José Froes", "Gociosinho", "Assis Govaza", "Alfredo Cardoso", "Maneca Ferreira", "João Martins") de Feira, Eduardo Melo "("Tantum ergo" da novena de Nossa Senhora da Guia) e sobretudo Heráclito Guerreiro (dobrados "Albino de Souza", "Filoca Santa Ana", "2x0", "Marco Bahia", "Kaiser", "Aurino Filho", marcha "Maria Angélica) de Maragogipe, Domingos Machado ("Novena de Nossa Senhora da Purificação"), Antonio Luz (dobrado "3 Irmãos", valsa "Isaura Borges", paso doble "José Pires de Carvalho Albuquerque", Miguel Rodrigues (dobrado "Amaro Falcão") e Oswaldo Assis da "Lira dos Artistas" de Santo Amaro da Purificação, Irineu Sacramento ("Hino a Cachoeira") da "Sociedade Orpheica Lira Ceciliana" de Cachoeira de São Félix.
Nesta vasta rede de contactos músico-profissionais herdada do passado e em fase de desintegração no presente seria necessário também considerar músicos de Salvador, como, por exemplo, Agtapito Catarino da França, aluno de Estevão Moura e mestre já falecido da "Filarmônica Carlos Gomes" do Bonfim (dobrados, marchinhas, sambas, maxixes). Durante a última visita a essa banda, na festa de Nosso Senhor do Bonfim de 1989, pôde-se registrar a lamentável decadência da corporação desde a morte de A. Catarino da França. Também essa banda do Bonfim tinha em seu repertório obras de mestres de Belmonte, como Antonio França (dobrados "Roxo", "19 de abril (a Getúlio Vargas)", marchas "Euterpe Nazarena", "Dona Enedina", etc.).
Principalmente Estevão Moura, antigo mestre da Filarmônica "25 de março" (1932 a 1951) e mestre-capela da Igreja de Sant'Ana é conhecido como profícuo compositor (Grande fantasia de concerto "Conto de Fadas"; música sacra (novenas para coro e orquestra), hinos, marchas, marcha para procissão "Núbia", dobrados "Tusca", "Ouro Prêto", "Pedro Matos Barbosa", "Verde e Branco", etc.). Sua fama nas cidades do Recôncavo foi constatada nos últimos anos por outros pesquisadores (cf. Horst Schwebel, "Blasmusik in Brasilien", Bericht über die zweite internationale Fachtagung zur Erforschung der Blasmusik, Uster/Schweiz 1977, ed. W. Suppan, Alta Musica 4, Tutzing, 1979, 175-181, 181). Em inúmeras cidades da Bahia e Sergipe encontram-se discípulos de Estevão Moura.
Silvino Santos, sapateiro de profissão, exercia semi-profissionalmente
a atividade de compositor, pois compunha peças sob encomenda para
personalidades civís e eclesiásticas de cidades do interior da
Bahia que visitava periodicamente em longas viagens. Em entrevista
a respeito de sua técnica de composição e da feitura da "grade"
(espécie de tabula compositoria), Silvino Santos demonstrou possuir
conceitos peculiares que podem ser exemplificados na análise por
ele feita do seu dobrado "Roberto Silva": "(...) após a Intrada,
com 13 casas, vem o cantochão. O primeiro motivo tem 8, o segundo
tem 16 casas. Na segunda parte vem o canto coletivo, a trovoada,
com pistão, trombone, que é em meia força, com o contracanto das
clarinetas. Depois, vem a preparação, 4, 8 casas, trio e cantochão.
Cada parte tem 32, 34 ou 36 casas. Se sair ímpar, 31, por exemplo,
é o pé quebrado; pode ser tirado, porque não faz falta". Segundo
a curiosa definição desse mestre de Belmonte, "Cantochão ou Canto
Gregoriano é o canto que os clarinetos e os bombardinos (tenor,
barítono em si b) tocam juntos. Quando não canta a requinta, é
o soprano ou flautim. No Cantochão, o pistão faaz tercinas ou
enfeites".
Espera-se que os contactos que estão sendo mantidos desde o início da década de setenta com músicos dessas localidades possam vir a contribuir para futuros trabalhos no sentido de valorizar a vida e a obra dos músicos dessa vasta região baiana.