Timbre ABE

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
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No. 92 (2004: 6)


 

Ciclo Economia, História Colonial

 

Kilia: Holstein, Alegoria e Brasil
Marinha de Guerra e interesses econômicos na história colonial
Príncipe Henrique da Prússia no Brasil (1883)

 

KielComo exposto em outros relatos desta edição, a Academia Brasil-Europa desenvolveu, em abril de 2004, um ciclo de estudos dedicado ao tema Economia, História Cultural e Alegoria. Em sessões realizadas no Norte da Alemanha, deu-se particular atenção à cultura hanseática.

Demonstrou-se que os estudos culturais hamburgueses e estudos das relações entre Hamburgo e o Brasil não podem ser desenvolvidos sem a consideração privilegiada da navegação. A história da navegação e das relações marítimas foi salientado como aspecto importante, senão núcleo de estudos culturais em relações internacionais.

Marinha de Guerra

Entre os vários aspectos e fases da história da navegação nas relações internacionais há porém aqueles relacionados com marinhas de guerra. Essa história tem sido considerada no âmbito da história militar, pode e deve, porém, ser tratada sob a perspectiva histórico-cultural das relações entre os povos.

Esses estudos permitem a consideração de outros contextos daqueles oferecidos pelos estudos da navegação mercante e, apesar de todos os pontos em comum, abrem outros caminhos para a elucidação de questões da história do colonialismo, do imperialismo e de representações nacionais. Oferecem possibilidades para o tratamento da formas oficiais de expressão de poder e de criação de imagens.

A linguagem visual, em forma de insígnias, bandeiras, uniformes e outros atributos e símbolos de poder exerce aqui importante papel. Similarmente, a música militar de marinhas foi relevante elemento no contacto entre as nações. O mesmo diz respeito a encenações: demonstrações e paradas de navios, de marinheiros, esportes náuticos e outras manifestações da vida militar marítima marcaram a história de encontros entre povos em tempo de paz.

Os estudos relativos às marinhas de guerra nacionais relacionam-se estreitamente com aqueles da navegação mercantil e com os interesses econômicos de migrantes e colonos. As marinhas nacionais serviram para a proteção de interesses comerciais e de cidadãos residentes e atuantes no Exterior, abriram caminhos e possibilitaram a instauração de Protetorados e desempenharam, assim, importante fator na história colonial.

A presença dessas forças em terras de imigrantes serviram ao fortalecimento de elos com os países de origem. Representação e imagem nacionais relacionaram-se com a identidade de grupos de europeus no Exterior e repercutiram na auto-consideração das próprias nações européias. Fatores culturais não apenas foram o resultado de decisões e medidas políticas e econômicas, mas também agentes de desenvolvimentos. Nesse sentido, a história cultural de políticas de desenvolvimento marítimo-militar pode revelar contextos de natureza cultural que elucidam acontecimentos bélicos posteriores.

No caso da Alemanha e do Brasil, o estudo histórico-cultural das marinhas de guerra assume papel especial para o século XIX, considerando-se o papel privilegiado dessa esfera militar nos dois impérios.

O tratamento desse complexo temático, ainda que de significado inquestionável, não é isento de dificuldades quanto à diferenciação de enfoques e na análise de fatos. Por serem as fontes em grande parte provenientes de contextos nacionalistas, militares e mesmo militaristas, o seu estudo oferece obstáculos para análises imparciais.

Para uma aproximação euro-brasileira ao tema, escolheu-se a cidade de Kiel.

Kiel

O comércio no contexto hanseático não marcou de forma tão profunda a história de Kiel como aquela de Hamburgo e de outras cidades da Hans. Embora pertencendo à organização hanseática partir de 1283, ou seja poucas décadas após a sua fundação pelo Conde Adolfo IV de Holstein (1233/1242), não se distinguiu de forma especial nas atividades mercantís conjuntas no Exterior. Uma das razões tem sido vista no poder maior dos detentores de poder sobre o comércio, ou seja, uma menor liberdade burguesa. A partir de 1518, a cidade foi até mesmo excluída da rêde hanseática. Os laços com o poder ducal e a redução de privilégios ainda mais se intensivaram no século XVI. Isso não significou, porém, que as transações econômicas não tenham sido de importância para a história da cidade. Assim, um mercado financeiro anual, o Kieler Umschlag, transformou-se em grande acontecimento popular dessa região da Alemanha através dos séculos.

O significado militar que Kiel possuiria posteriormente tem os seus fundamentos na posição estratégica da cidade. Como limite do território saxão no Mar do Leste surgia como porto predestinado a atividades de defesa. É sob esse aspecto estratégico que os estudos culturais relacionados com Kiel apresentam maior interesse sob a perspectiva das relações internacionais. Mesmo a história religiosa não surge neste contexto como tão relevante como em outros casos. Significativo para uma mentalidade fundamentada em realismo parece ser o fato de que ali haja surgido, no início da Reformação, uma doutrina que negava a real presença na eucaristia, ou seja, que a via como ato meramente simbólico: a de Marquard Schuldorp.

Poder-se-ia, é verdade, salientar a fundação de sua universidade, em 1665, pelo Duque Christian Albrecht von Gottdorf e analisar as relações de seus estudantes e docentes com a sociedade local. Também aqui, porém, o interesse histórico-cultural é sobretudo despertado por uma instituição que supera as dimensões propriamente científicas, ou seja a das organizações estudantís das Buchas (Burschenschaften) do século XIX, um fenômeno alemão que também teria a sua repercussão no Brasil.

A atenção, assim, é constantemente dirigida a contextos patrióticos, nacionais ou a ocorrências político-militares. Entre elas, cumpre salientar que alí nasceu, em 1728, como filho do Duque Karl Friedrich von Schleswig-Holstein-Gottorf, aquele que viria ser o Czar Pedro III da Rússia.

O campo de tensões criado pela situação limítrofe entre a esfera alemã e a Dinamarca marcou a história regional dos séculos XVIII e XIX. Em 1771, com a perda das propriedades em Schleswig, Kiel tornou-se residência dos duques. Sob Catarina a Grande, viúva do Czar Pedro III, o restante do Ducado passou à Dinamarca. No fim do período napoleônico, em 1813, foi ocupado pelos suecos. Com a paz de Kiel, em 1814, o ducado de Holstein continuou a ser governado pelo rei dinamarquês, passando porém já em 1814 a membro da federação alemã.

Kiel como Porto da Marinha de Guerra Alemã

No decorrer do século XIX, o desenvolvimento portuário de Kiel procedeu-se paralelamente ao industrial. Em 1838, ali se fundou a fábrica de máquinas Schweffel e Howaldt, da qual se originaria mais tarde o estaleiro HDW. Afirma-se que em Kiel foi construído, já em 1850, o primeiro submarino do mundo.

Logo após a tomada de Schleswig-Holstein pela Prússia e pela Áustria durante a Guerra Alemã-Dinamarquesa, em 1864, o seu porto e a cidade viveram uma época de considerável progresso. Principal causa dessa evolução foi a transferência para ali da base da marinha do Mar do Leste de Danzig, efetuada por ordem do rei da Prússia, em 1865. No ano seguinte, a cidade tornou-se prussiana. Instalaram-se em Kiel também os estaleiros alemães do norte, mais tarde denominados Germania-Werft. Em 1867, passou a ser Porto de Guerra da União Norte-Alemã. O depósito da Marinha, existente desde 1865, transformou-se em 1878 nos Estaleiros Imperiais de Kiel (Kaiserlich Werft Kiel). Em 1883, Kiel transformou-se em Porto de Guerra do Império (Reichskriegshafen) e em cidade independente do distrito do mesmo nome.

A história cultural de Kiel de medos do século XIX relaciona-se estreitamente com esse desenvolvimento da marinha. Em 1882, iniciou-se o evento que se tornaria um dos grandes acontecimentos da vida alemã, as Semanas de Kiel (Kieler Woche), com parada marítima, regatas à vela e festa popular, transformar-se ia numa das maiores e mais conhecidas festas nacionais da Alemanha.

O Príncipe Henrique e a corveta Olga no Brasil

Foi nessa época de acontecimentos decisivos para Kiel e para a história cultural da Alemanha em geral que o Príncipe Henrique esteve no Brasil, a bordo da Corveta Olga.

Albert Wilhelm Heinrich von Preussen (Potsdam 1929 - Hemmelmark 1929), filho daquele que seria o imperador Friedrich III e neto do Imperador Guilherme I, era o irmão mais novo do imperador Guilherme II. A sua mãe, a imperatriz Vitória, era uma filha da Rainha Vitória da Inglaterra. Pertencendo assim aos mais altos círculos da Alemanha, estava destinado a desempenhar considerável papel na história da marinha alemã, da história diplomática e da história de uma cultura do mar, dos esportes e da técnica. Casar-se-ia em 1888 com a sua prima, Princesa Irene de Hessen-Darmstadt, uma irmã da czarina Alexandra de Rússia.

Após estudos no ginásio de Kassel, terminados em 1877, o Príncipe entrou com apenas 15 anos na Marinha. Devido à sua carreira, a vida do Príncipe Henrique uniu-se à cidade de Kiel como Porto de Guerra do Império. Entre 1877 e 1878, estudou na Escola da Marinha naquela cidade. Durante a sua formação, realizou uma viagem ao redor do mundo, de 1878 e 1880. Nessa viagem, visitou por um ano o Japão, tendo várias audiências com o imperador japonês. Em 1880, retornou a Kiel, prestando os seus exames na Marinha.

Três anos depois, como tenente, esteve no Brasil. É, portanto, nesse contexto de sua formação e sob o pano de fundo de suas experiências no resto do mundo e do desenvolvimento de Kiel como Porto de Guerra Alemão que deve ser analisada a sua presença no país. Somente após essa viagem é que estudaria na Academia da Marinha de Kiel, um estudo que desenvolveu em época de inverno, ao lado de seu serviço regular.

Qual a imagem que se tinha de Kiel no Brasil? Certamente foi uma imagem marcada pelas informações fornecidas pela obra-modêlo de geografia da época, recentemente publicada, a de Reclus:

"Kiel, a capital do Holstein, é uma cidade industrial e populosa. Situada na extremidade meridional de um golfo do Báltico, é cercada de locais dos mais agradáveis, onde se sucedem bosques e florestas, pequenos lagos, dominando ao longo o mar. (...) a cidade possui uma escola de marinha e várias sociedades eruditas, das quais uma tem como objeto principal de estudo a geografia e as ciências naturais. O observatório de Altona foi transferido há algum tempo para Kiel. (...) O golfo de Kiel apresenta grandes vantagens, mais apreciadas pelo fato de serem raros os bons portos nas costas alemãs do Báltico. A baia, ou melhor, o fiorde de Kiel, penetra ca. de 15 km no interior das terras, com uma largura média de 3 a 4 quilômetros. Todavia, a profundidade é suficiente para que os navios possam se aproximar de uma a outra margem (...) Essas boas condições hidrográficas, juntas às facilidades da defesa, fizeram com que o govêrno prussiano decidisse estabelecer na baía de Kiel o seu grande porto militar do Báltico; vastas bacias e vias, com uma profundidade normal de mais de 10 metros foras cruzadas em Ellerbeck, na margem oriental da baía, precisamente em face de Kiel; um arsenal de mais de um quilômetro de comprimento margeia a costa; fortes e baterias se elevam sobre todos os pontos favoráveis à defesa; Friedrichsort, sobre um promont´rio da baía, tornou-se uma fortaleza poderosa. Mas, comparado ao porto de Wilhelmshafen, sobre o mar do Norte, o de Kiel tem uma desvantagem: ele gela no inverno." (Élisée Reclus, Nouvelle Géographie Universelle...III, Paris: Hachette 1878, 897-899)

Em documentos do Arquivo Nacional, constata-se que o Imperador foi avisado da visita por carta de 15 daquele mês pelo representante dos Negócios da Alemanha, Mutzenbecher:

"a Mons. Mutzembesher, acusando o recebimento de sua carta de 15 do corrente, comunica, por ordem de S.M. o Imperador, que o Mesmo Augusto Senhor irá receber o Príncipe a borda da corveta, desembarcando no Arsenal da Marinha e se dirigindo para o Palácio de São Cristóvão afim de ser apresentado a S.M. a Imperatriz. Para tanto as viaturas lembradas se acharão no cais do mesmo arsenal par conduzir S.A. e seu séquito". (Dom Pedro II e a Cultura, Rio de Janeiro: Ministério da Justiça/Arquivo Nacional, 1977, 252, Nr.1499 )

Ao mesmo tempo, Pedro II designou um de seus conselheiros com especial conhecimento de assuntos náuticos, ­ ex-Ministro da Marinha ­, para acompanhar o Príncipe:

Porto de Kiel"ao Veador [José Caetano de] Andrade Pinto, dando cumprimento a ordem recebida, avisa que S.M. o Imperador designou-o para acompanhar e dirigir S.A. o Príncipe Henrique da Prússia em suas excursões durante a sua estada nesta capital. Informa que o Príncipe viaja pela corveta Olga que entrará às 15 horas, indo S.M. recebê-lo a bordo, desembarcando ambos, no Arsenal de Marinha, onde os encontrará para acompanhá-los ao Paço de São Cristóvão." (loc.cit. Nr. 1498).

O navio fez escalas em vários portos brasileiros. No Recife, os marinheiros teriam exercido quase que diariamente em uma das praças da cidade; ali e em Santos a corveta foi aberta à visitação pública.

Chegou ao Rio de Janeiro no dia 16 de agosto de 1883. Dessa sua estadia no Brasil possui-se a pormenorizada descrição de Carl von Koseritz (Imagens do Brasil, São Paulo: Martins 1941, 139 ss.).

"Logo que o navio deu sinal avisou-se pelo telégrafo a São Cristóvão e S.M. o Imperador dirigiu-se para o cais a-fim-de receber o Príncipe. A esbelta corveta ofereceu uma linda vista ao entrar no nosso porto. Todos os cais estavam cobertos de gente; na cidade as legações e os consulados, assim como as casas alemãs se embandeiraram, todos os navios de guerra, brasileiros e estrangeiros qu se encontravam no porto, assim como a maior parte dos navios mercantes tambem levantaram as suas belas bandeirolas. O orgulhoso navio alemão, em cujo mastro ondulava a bandeira de guerra, cumprimentou na entrada da barra e os tiros de honra dos seus canhões saudaram a capital brasileira. De todas as fortalezas do porto, assim como dos navios de guerra, (inclusive os estrangeiros e entre estes um francês), responderam à saudação e durante um quarto de hora só se ouviram os ribombos da artilharia pesada dos fortes e dos navios. A corveta lançou âncora em Icaraí (...)." (op.cit. pág. 139-140)

A descrição de von Koseritz, que toma várias páginas de sua obra, transmite de maneira expressiva, quase que pictórica, informações sobre recepção do Príncipe e as circunstâncias do encontro com as autoridades brasileiras. O autor, com os pormenores que registra, salienta constantemente o significado extraordinário dessa visita para o Govêrno e para a colonia alemã no Rio de Janeiro.

O Diário Oficial justificou o significado da visita do Príncipe:

"O jovem descendente de grandes príncipes e do Grande Frederico serve como oficial de marinha a bordo do Olga, pois ele está destinado a ser o Grande Almirante da frota alemã, que cresce sempre em proporções, de forma a corresponder à situação que cabe à Alemanha como potência de primeira grandeza. É um velho e honroso hábito da gloriosa família dos Hohenzollerns que os seus filhos comecem a servir à pátria nos mais baixos postos do exército e da marinha, a fim-de aprenderem o serviço militar prática e teóricamente, e igualmente aprenderem a obediência e disciplina, que são tão severas naquele país (...).

E assim vemos, hoje, nesta capital o neto dos dois mais poderosos soberanos (o Kaiser da Alemanha e a Rainha da Inglaterra e Imperatriz das Índias), que, metido no uniforme de um simples tenente, presta o seu serviço como todos os seus camaradas da mesma graduação. Como antigamente o seu tio Adalberto que visitou uma grande parte do Império, chega agora o Príncipe Henrique ao Brasil, que lhe oferece a vantagem, para sua profissãoo de marinheiro, de lhe dar a conhecer uma das mais belas regiões do globo e um dos seus países mais esperançosos, o qual ele não vira ainda, nas viagens anteriores."
(op. cit. pág. 143)

Como von Koseritz salienta, não poderia haver maior expressão de consideração do que o fato de o próprio imperador ter-se dirigido à corveta, acompanhado por conselheiros e militares. Enquanto para ela ia no galeão imperial, o Conde d'Eu, em uniforme de Marechal, saía do Arsenal de Guerra. Ao encostar no Olga, o galeão foi saudado pela corveta e os marinheiros deram hurras. Os fuzileiros apresentaram as armas. O Príncipe Henrique e comandante da corveta, o Barão de Seckendorff, receberam Pedro II e o Conde d'Eu, acompanhando-os na inspeção do navio. A seguir, tomou lugar ao lado do imperador no galeão que os levaram ao Arsenal da Marinha para a apresentação de armas do Batalhão Naval. No galeão encontravam-se também representantes da colonia alemã no Rio de Janeiro, entre êles o encarregado de Negócios da Alemanha, von Mutzenbecher, o Consul Dr. Koser, e o Vice-Consul Weber. Percebe-se, aqui, a importância que deve ser atribuída a motivos relacionados com os interesses econômicos dos alemães nessa visita.

Do Arsenal foram levados para o Paço Imperial da cidade, onde tinham sido preparados aposentos para os hóspedes. No primeiro dos coches, sentaram-se Pedro II e o Príncipe Henrique, ao fundo, e à frente o Conde d'Eu e o Conselheiro Andrade Pinto. No segundo coche, iam o Encarregado dos Negócios, Mutzenbecher, o comandante do Olga e dois camareiros de Pedro II. Após uma pequena parada no Paço, os carros seguiram para São Cristóvão, onde já eram aguardados pela família imperial para apresentações e almoço. Às 18 horas, o Príncipe dirigiu-se em carro imperial para a legação alemã, onde recebeu o corpo diplomático. Às 19 horas, voltou ao Paço, onde recebeu a visita do Ministro do Interior e da Casa Imperial, Conselheiro Maciel, voltando então a bordo.

Von Koseritz salienta o aparato da recepção e dos uniformes brasileiros, expressão da importância que se dava à visita.

"Como vêem os leitores a recepção aqui feita ao Príncipe Henrique foi excepcionalmente brilhante (...). O sr. von Seckendorff deve ter ficado em palpos de aranha, pois as instruções que trazia não previam nada disto; isto é, o Príncipe devia viajar como um simples tenete de marinha e aparecer o menos possivel, mas ele deve ter feito das tripas coração, porque era impossivel recusar a grande amabilidade do Imperador. E o que é notável é que há anos esteve aquí um príncipe português e mais tarde um inglês e a recepção foi muito menor." (pág. 141)

No seu relato do dia 17 de agosto, von Koseritz menciona a repercussão na imprensa e analisa a diferença entre a recepção por parte das autoridades de Estado e o interesse da população. Enquanto o Imperador e o govêrno teriam feito todo o possível para honrar o Príncipe, o povo teria ficado indiferente. Essa seria uma prova, para von Koseritz, que os alemães não seriam estimados no Rio de Janeiro, apenas considerados e respeitados.

Pedro II conferiu ao Príncipe a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro, tendo ido pessoalmente à corveta para o ato. Foi recebido com um almoço festivo.

Um aspecto que merece particular consideração é aquele que manifesta o intuito do Brasil em demonstrar o seu desenvolvimento na construção naval. Acompanhado por Pedro II, o Príncipe e oficiais dirigiram-se ao Arsenal da Marinha para a visita de uma corveta equipada com máquina de construção brasileira, tendo o Príncipe permanecido na casa das máquinas para bem observá-la. Assim, teria tido a oportunidade de constatar que também no Brasil se construiam grandes navios e até mesmo as máquinas necessárias, utilizando-se de ferro próprio, aquele de Ipanema.

Príncipe Henrique e a colonia alemã

No dia 18 de agosto, pela manhã, o Príncipe recebeu uma deputação das sociedades alemãs, encabeçadas pelo presidente do Germânia e pelo diretor da Sociedade Beneficente (Weber, Repsold, Peckold, Fischer, Stieher, Gauland e Diedrichsen).

Em piquenique organizado no Jardim Botânico, ao qual o Príncipe não compareceu, parece que tomaram parte oficiais e a banda de música da corveta Olga. A descrição de von Koseritz indica que esse convescote assumiu grandes dimensões, manifestando a auto-consciência dos alemães residentes na capital do Brasil. Os bondes para o Jardim Botânico, enfeitados com bandeirolas nas cores alemãs, partiram às 9 horas da manhã do Largo da Carioca, levando os músicos das bandas alemãs da cidade, a do Germânia, a da Sociedade Beneficiente, a da Escola Alemã, esta com 140 alunos, a da Sociedade Ginástica Alemã, da União, da Sociedade 1970-71 e das sociedades de canto Schubert, Frohsinn e Liedertafel. Durante o almoço houve discursos e brindes.Após o almoço, servido em 18 grandes mesas, com ca. de 2000 pessoas, a Sociedade Ginástica alemã realizou exercícios e os clubes de canto Schubert e Frohsinn entoaram cantos populares alemães. À tarde, houve baile, com quadrilhas e polcas.

O jantar de gala no Germânia, no dia 21 de agosto, organizado por J. Georg Repsold, presidente da Sociedade Beneficiente Alemã, tinha também o objetivo de festejar o 61° aniversário de fundação da sociedade, a mais antiga do gênero no Brasil, fundada a 20 de agosto de 1821. O papel relevante desempenhado por J. Georg Repsold na organização dos festejos por parte dos alemães no Rio indica o significado que nela se via para a proteção dos seus interesses econômicos. J. G. Repsold era nada menos do que o representante da Krupp na cidade.

"O local estava admiravelmente ornamentado com palmeiras, flores e bandeiras alemãs. Uma gigantesca mesa em forma de ferradura, brilhante de pratas e cristais, estava arrumada no grande salão de banquetes, tendo o lugar de honra para o Príncipe. Atrás da cadeira deste se achava um escudo de bandeiras alemãs com a insígnia do clube, ladeado pelos retratos a óleo do Kaiser Guilherme e do Kronprinz. Diante de cada talher estava um menu, ornado na parte externa com o monograma do Príncipe, encimado pela coroa em relevo dourado (...)" (pág. 149).

Os brindes foram acompanhados por uma fanfarra da banda de música do Olga. O Príncipe proferiu um longo discurso, salientando o espírito de sacrifício da colônia alemã do Brasil à época das guerras de 1866 e 1870-71. Exprimiu a sua satisfação por constatar que os alemães no Brasil mantinham o uso da língua e dos costumes da antiga pátria, assim como a prática de exercícios físicos e das canções tradicionais alemães.

Além do jantar do Germânia houve um encontro na Guarda Velha, com cantos da sociedade Schubert.

No dia 23, houve um jantar de gala em São Cristóvão, com o ministério reunido e, depois do banquete, uma soirée no palácio Isabel, com a participação de mais de 400 pessoas.

O relato de von Koseritz representa a voz patriótica de um imigrante que, apesar de tantos anos no Brasil, continuava unido emocional e culturalmente com a sua antiga terra. Representa, portanto, não apenas uma fonte de dados, mas sim e sobretudo um documento significativo para estudos da história das relações Alemanha-Brasil a partir da perspectiva de um imigrado. Assim, significativamente, publica um discurso que gostaria de ter lido e no qual fala em representação de colonos do Sul:

"Alteza Real! Eu represento os alemães do Rio-Grande há mais de um quarto de século na imprensa, e os represento tambem como deputado na Assembléia Provincial (...)
Alteza Real! A maior parte dos homens em cujo nome eu falo está separada da pátria há 30, 40, 50 e mais anos: muitos, muitíssimos dentre eles pertencem à nação alemã somente pela língua e os costumes, pois são nascidos no Brasil em primeira, segunda ou terceira geração;muitos outros, como eu próprio, alcançaram a cidadania brasileira a-fim-de participarem da vida pública da nova pátria, e contribuirem para o futuro desta soberba terra, tão ricamente aquinhoada pela natureza, na qual os seus filhos viram a luz; - mas todos conservam, no coração, amor fiel pela velha pátria, falam a linda língua da Alemanha, vivem em constante intercâmbio mental com ela e conservam, ainda, as virtudes alemãs do sentimento do dever, da vontade de trabalhar, dos costumes austeros!"
(pág. 153-154)

Sentidos da recepção: imagem do Brasil na Alemanha

O Diário Oficial salientou os laços que uniam o Brasil à Alemanha, os interesses econômicos comuns e o significado da visita para o fomento da imigração:

"A visita que Sua Alteza faz ao Império será fertil em bons resultados para o nosso país, porque é bastante que a Alemanha conheça a verdade sobre o Brasil para que nos envie a sua emigração de preferência a todos os outros países que fazem dificuldades para atrair os europeus, cuja atividade, inteligência e capital utilizamos com tanta necessidade, Ninguem melhor que o querido filho do herdeiro do trono alemão poderá relatar as vantagens que o Brasil oferece aos europeus trabalhadores, pois ele hoje conhece parte da riqueza e do bem-estar que os seus patrícios aquí desfrutam, os quais encontram no Brasil, para vantagem deles e nossa, uma segunda pátria (...)" (op.cit. pág. 144)

Navio-escola e de artilharia Olga

O relato de von Koseritz inclui várias menções sobre a corveta Olga e o interesse que despertou no Rio de Janeiro. Essa corveta desempenharia importante papel na história colonial alemã até a sua retirada de serviço, em 1908. Tinha sido denominada de Olga em homenagem à grã-princesa Olga Nikolajewna Romanowa (11.10.1822 - 30.10.1892), filha do czar Nicolau I e que se casara com o príncipe alemão que se tornaria o rei Karl I de Württemberg. Pertencia a um conjunto de naves denominadas em homenagem a vultos femininos: Carola, Marie, Sophie. Fora construída em Stettin pela A.G. Vulcan, e a sua viagem inaugural dera-se em 1880. Era, portanto, uma nave nova, uma das mais recentes obras da engenharia naval quando da sua visita ao Brasil. Tinha 69 metros de comprimento, 13 metros de largura e 5,4 m de fundo. Possuía 2 canhões de fogo rápido de 8,8 cm de calibre, 12 canhões-máquina de calibre 3,7 cm.

Proteção de interesses alemães e o "despertar colonial"

Considerando a história colonial alemã dos anos seguintes, a estadia no Brasil da Olga surge sob nova perspectiva: representou já uma expressão dessa política de proteção aos alemães que atuavam e viviam no Brasil e um preparativo para a fase ativa de ação alemã no Exterior.

Já no ano seguinte, em 1884, formou-se uma Esquadra da África Ocidental (Westafrikanischer Kreuzer-Geschwader), na qual, ao lado da Olga, tomaram parte, encabeçado pelo Bismarck, como porta-bandeira, as naves Möwe, Gneisenau e Ariadne. O Chanceler Otto von Bismarck ordenara ao Consul Geral em Tunis a ir para a África Ocidental para colocar os alemães que viviam entre o delta do Niger e o Gabão sob a proteção alemã. Esses alemães viviam sobretudo na área entre a Ilha Fernando Po e o rio dos Camarões até o Cabo S. João. Já em 1884 assinou-se o primeiro contrato de proteção. Também conseguiram que alguns soberanos assinassem tais contratos, apesar da influência britânica.

Significativamente, a viagem do comissário imperial foi preparada por agentes de firmas comerciais, as Firmas Woermann e Jantzen & Thormählen. Em pouco tempo a bandeira alemã já podia ser hasteada em algumas aldeias sob a presença do navio de guerra Möwe.

Nas ilhas Samoa, o estabelecimento de um sistema de proteção dos interesses econômicos alemães foi mais difícil. Ainda mais do que os territórios sob protetorado em Nova Guinea e das Ilhas Bismarck, esse foi o caso de Samoa. Em 1888, estourou ali uma revolta contra os imigrantes e comerciantes. Para isso, a nave Olga foi para lá enviada, juntamente com a canhoneira Eber, seguindo-se posteriormente o Adler. As tropas do Olga e do Eber foram atacadas na região de Apia sob a direção de um americano e na presença de um navio de guerra norteamericano. Em 1889, a nave Olga foi havariada no porto de Apia quando, juntamente com outros navios alemães, americanos e inglêses ali ancorados, um vendaval assolou a ilha. Em situações dramáticas, o Olga, um dos últimos navios que resistiram no porto, foi encalhado propositalmente na praia de Matautu, o que o salvou e a sua tripulação.

A corveta Olga e questões de imagens

Um testemunho do cunho emblemático que assumiu o Olga na história da marinha de guerra alemã nas suas relações com o Exterior é a sua representação em desenhos e gravuras em revistas. Uma delas mostra o Príncipe Henrique após o seu retorno em Kiel, na Ponte Barbarossa do porto local, desenhada por C. Saltzmann (1884). Além de cartões postais, deve-se considerar um texto de um canto militar também conhecido no Brasil que conservou a lembrança da nave. Trata-se do canto alemão da bandeira (Deutsches Flaggenlied), de Robert Linderer, com melodia de Richard Thiele. O texto, no seu quinto verso, refere-se às ocorrências na África Ocidental: "Na África, no Camarão, mostrando-se o inimigo selvagem, combate o marujo alemão com coragem, êle não recua tão facilmente. O Bismarck e a Olga também, mantiveram-se corajosamente, onde o sangue alemão corre em país selvagem distante. Mesmo que algum companheiro de luta tenha morrido a verdadeira morte de herói, tremula na África ao alto a bandeira Negra-Branca e Vermelha!: Hurra!"

O Príncipe Henrique e questões de imagens

Previsto para ser Grande Admiral, o Príncipe Henrique, nos anos posteriores à sua visita ao Brasil, comandou vários navios de guerra, entre eles, em 1887, um torpedeiro e a primeira divisão de torpedeiros.

A partir de sua estadia no Japão, o Príncipe tornou-se um grande conhecedor do Extremo Oriente. A partir de 1897, conduziu várias esquadras, entre elas uma que agiu no sufoco de revoltas na região Kiautschou na China, tomando o porto Tsingtau para a Alemanha (1897).Em 1899, tornou-se chefe da Esquadra do Extremo Oriente. Visitaria posteriormente mais duas vezes o Japão, em 1900 e 1912, quando lá esteve para o enterro do imperador. Foi o primeiro príncipe europeu de uma casa governante recebido na corte imperial chinesa.

Principe Henrique em Hamburgo

Príncipe Henrique da Prússia durante uma regata a velas em Hamburgo, 1906.

Foto: O Reich

Até o término da monarquia alemã desempenhou importante papel na marinha. Em 1903, assumiu a Estação Marítima do Mar do Leste. De 1906 a 1909. comandou a frota de alto mar e, em 1909, tornou-se Grande-Admiral. Durante a primeira Guerra Mundial teve a responsabilidade pelo Mar do Leste.

A imagem do Príncipe Henrique, embora tendo sofrido com circunstâncias de sua saída de Kiel em fins da Primeira Guerra, ficou marcada positivamente por qualidades pessoais que fundamentaram a sua popularidade no mundo náutico e entre alemães no Exterior. Assim, foi estimado em círculos de migrantes, tanto no Brasil quando nos Estados Unidos. A sua imagem positiva deve-se porém em grande parte aos esportes e ao seu interesse pelo progresso técnico. Foi um dos primeiros pilotos de avião e praticante e fomentador de polo, golfo, de corridas automobilísticas, esportes náuticos a velas, atuando no Imperial Yacht Club Kiel. Marcou a moda na Alemanha através do boné denominado segundo o seu nome: Prinz-Heinrich-Mütze. Em sua homenagem organizar-se-ia a Prinz-Heinrich-Fahrt. Em 1909, introduziu a plaqueta alemã como prêmio para o time de futebol da Frota de Alto Mar Alemã. Afirma-se que chegou a patentear um lavador de parabrisas e diz-se que inventou a buzina.

Em Kiel, residia no Palácio local. Após a queda da monarquia, no Hemmelmark, perto de Eckernförde.

Alegoria de Kiel

Tendo-se considerado a função da alegoria da Hammonia no contexto das cidades hanseáticas e sua repercussão no Brasil (veja relato nesta edição), cumpre, no caso de Kiel, considerar a alegoria da Kilia.

Esse nome, relacionado com o da cidade, traz problemas de elucidação terminológica similares ao de Hammona. Talvez possa ser derivado do nome da própria cidade. Esse nome foi originalmente o de Holstenstadt tom Kyle, ou seja, a Cidade Holsten na Förde. Na linguagem coloquial, o nome teria passado a ser tom Kyle e, depois, Kiel. No baixo-alemão, Kiel significa cunha, talvez aqui no sentido da Förde, ou da baía do mar que entra pela terra firme.

Essa alegoria tornou-se concretizada numa estátua que ornamentou um chafariz monumental oferecido pela cidade ao Príncipe Henrique e a Irene de Hesse por ocasião de seu matrimônio. Nessa época, parte do palácio foi restaurada, e o chafariz, no palácio de Kiel, deveria retomar uma tradição do século XVIII, quando ali já existira um chafariz ornamentado de delfins. Os trabalhos ficaram a cargo de um escultor nascido na cidade, Eduard Lürssen, então professor de plástica decorativa na Academia de Arquitetura de Berlim.

O chafariz, em bronze, era decorado com anjos e repuxos, com o retrato do casal e as armas, tendo uma placa dedicatória. A estátua, em trajes antigos e armadura peitoral, com as armas da cidade no busto, apresentava uma coroa em forma de muralha, trazendo, na mão esquerda, uma coroa de louros. Na mão direita segurava uma roda de direção.

O sentido alegórico da estátua representativa da cidade evidenciava-se nesses atributos, tanto no antigo uso da coroa em forma de muralha, já conhecido da Antiguidade, o da vitória e o da roda, no caso símbolo da administração inteligente. Ao mesmo tempo, porém, a roda vinculava essa administração inteligente ao símbolo da nave. A comunidade surge na metáfora do navio e, em conseqüência, unida ao mar, ou melhor, ao mar da vida.
A inauguração solene do chafariz apenas pode ser feita em 1890. Após a Revolução de 1918, a Kilia foi afastada do pátio. Em 1923, levada para a alameda de Hemmelmark, domínio do Príncipe. Durante a Segunda Guerra Mundial, o chafariz foi destruído por bombas, juntamente com o palácio. A Kilia, porém, em Hemmelmark, conservou-se. Em 1977, foi trazida de novo para Kiel, sendo restaurada.

G.R.

 

Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).

 

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