Timbre ABE

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

No. 92 (2004: 6)


 

Ciclo Economia e História Colonial

 

O QUE É EUROPA
Exposição no Museu de Etnologia de Hamburgo

Hamburgo. Trabalhos da A.B.E. 2004

 

Exposição Museum für Völkerkunde HamburgNo âmbito do ciclo de estudos Economia - História Colonial - Alegoria, levado a efeito pela Academia Brasil-Europa na cidade de Hamburgo, Alemanha, em abril de 2004, visitou-se a exposição "O que é Europa" no Museu de Etnologia da Universidade de Hamburgo (Museum für Völkerkunde).

Esse Museu, uma das mais tradicionais e renomadas instituições da Etnologia alemã, dedicando-se a esse tema, testemunha a mudança de visões e conceitos que se processa já há anos nos ramos disciplinares da Völkerkunde e da Volkskunde, ou seja, da Etnologia e do Folclore.

A tendência, de muitas partes, é compreender a Volkskunde como Etnologia européia. Essa concepção explica-se, em parte, pelos anseios de atualização epistemológica da Volkskunde, um ramo de estudos que foi atingido por uma perda de prestígio devido à sua instrumentalização político-cultural nacionalista no passado e pela sua vinculação conceitual com determinadas tradições de pensamento e visões culturais.

Procura-se, assim, superar uma divisão de disciplinas baseadas no posicionamento do observador e sua própria inserção cultural, ou seja segundo complexos culturais aos quais não pertence - conhecimento de "povos" (Völkerkunde) -, e o estudo de esferas populares de sua própria cultura - conhecimento "do povo" (Volkskunde).

A justificativa renovadora - entre outros aspectos - ainda que compreensível e refletindo o anseio de uma necessária atualização teórica, não é suficiente para fundamentar a supressão de uma área de estudos, integrando-a numa Etnologia Européia.

Trabalho interdisciplinar e até mesmo transdisciplinar é necessário e deve ser fomentado, assim como cooperações de estudiosos de diversas áreas; o que não pode ser aceito, porém, é a perda de diferenciações, ainda que sutís e aptas a serem repensadas, e que significaria um retrocesso na acuidade das reflexões.

A questionabilidade desse procedimento torna-se evidente quando é observado a partir de um país como o Brasil. Sob a intenção positiva de se superar visões limitadas do passado, corre-se aqui o perigo de que se implantem ou solidifiquem novas formas de eurocentrismo.

O objetivo da exposição foi o de mostrar, no exemplo de objetos e fotos escolhidas, a grande diversidade cultural do continente europeu. Ao mesmo tempo, deveria deixar clara a existência de numerosos traços comuns das culturas da Europa.

Através da delimitação da mostra a um número razoável de elementos representativos, o modêlo fundamental de uma "Europa como um espaço cultural" deveria ficar reconhecível mesmo para os não-especialistas.

Embora cada nação na Europa tivesse a sua própria noção do que é em última instância a Europa, e de quem é europeu, a exposição procurava, assim, mostrar a unidade na diversidade de expressões culturais.

Essas palavras, apresentando o objetivo da exposição, não deixam de indicar fraquezas da argumentação por detrás de uma justificativa que surge como ampla e atual à primeira vista.

O texto deixa claro que o prisma teórico é dirigido em primeiro lugar à Diversidade, ou seja, à diversidade cultural do continente europeu. Logo a seguir, porém, salienta que a demonstração dessa diversidade permite que sejam percebidos os traços comuns entre as várias culturas da Europa.
Tem-se aqui, portanto, o campo de tensões Diversidade/Unidade, já tantas vezes debatido, por exemplo como tema principal do Simpósio Internacional realizado em São Paulo, em 1981.

Ao invés porém de se pelo menos insinuar a existência de diferentes aspectos, dimensões ou perspectivas do complexo Diversidade na Unidade ou Unidade na Diversidade, nos seus múltiplos relacionamentos, o texto deixa entrever a real motivação da amostra, ou seja a da afirmação de um "modêlo básico": o da Europa como espaço cultural.

Tornando essa intenção ainda mais explícita, o texto diz que, embora havendo diferentes concepções do que seja Europa e de quem é Europeu nas várias nações, esse modêlo fundamental, esse paradigma continuaria vigente.

Os idealizadores da exposição, portanto, partem claramente de uma orientação segundo a Unidade no campo de tensões Diversidade/Unidade, apesar da declaração inicial a favor da Diversidade.

O mais questionável, porém, é a menção ao "continente europeu" na argumentação. A demonstração dos traços comuns das culturas da Europa dizem respeito, nessa linha de pensamento, a uma Europa compreendida nas suas delimitações geográficas.

Assim, também o modêlo-base a ser reconhecido de uma "Europa como espaço cultural" surge preso a uma concepção de área cultural definida segundo critérios geográfico-espaciais.

Não se trata aqui tanto das dificuldades teóricas e práticas de definição das fronteiras dessa área ou do "continente europeu", por exemplo na direção do Leste, onde não há o Oceano ou o Mar Mediterrâneo que facilite tal demarcação. Trata-se, na verdade, de problemas muito mais complexos, ou seja de uma compreensão por demais orientada segundo regiões, nações e continentes, ou melhor, de uma concepção sem suficiente e necessária consideração de processos.

Essa visão é justamente aquela que divide o mundo entre "europeu" e "extra-europeu". Tal divisão, se não suficientemente diferenciada, é inaceitável para países que surgiram do processo de expansão européia da época dos Descobrimentos e que se formaram histórico-culturalmente no contexto do colonialismo europeu e do Cristianismo ocidental.

Se a Europa, expandindo-se, colocou em vigência mecanismos que deram início a processos histórico-culturais e que, na sua dinâmica, ainda que auto-transformadora, se encontram até hoje atuantes, então ela não pode, hoje, abandonar a sua responsabilidade decorrente da sua inserção no complexo processual por ela desencadeado. Ela não pode fechar-se em supostas fronteiras geográficas de uma área cultural.

Para países como o Brasil, a consideração suficiente da processualidade da cultura, que subentende também a da historicidade na geografia cultural é uma exigência para os estudos culturais refletidos. O oposto necessitaria ser criticado como mais uma expressão de eurocentrismo.

A questão levantada explícitamente pela exposição - o que é Europa - pode ser, sob muitos aspectos, muito melhor respondida a partir do Brasil, do México ou de outros países latinoamericanos do que de muitas regiões da própria Europa. Bastaria aqui lembrar das múltiplas tradições culturais de proveniência européia que se conservam na América Latina e que já desapareceram na Europa, possibilitando análises de sistemas simbólicos e de mecanismos processuais.

Economia, consumo, lixo e cultura

Deve-se salientar, porém, que a infeliz imprecisão do texto introdutório da exposição não impediu que a mesma se mostrasse sensível para desenvolvimentos "extra-europeus". A própria inserção da exposição no conjunto pluricultural de um museu de etnologia impunha tal consideração.
Assim, o visitante pode confrontar-se com vitrines que apresentaram efeitos de encontros culturais e econômicos na África Ocidental, onde resíduos de produtos de consumo foram expostos em proximidade com símbolos religiosos de sincretismo. Embora percebendo-se aqui intuitos de crítica cultural no sentido de auto-crítica européia, não se pode deixar de salientar que tal aproximação traz em si o perigo de ser entendida como uma afronta e manifestação de arrogância. Se símbolos religiosos sincretísticos ou aparentemente sincretísticos utilizam-se de objetos de menos valor obtidos da cultura de consumo, bonecas e brinquedos de plástico, por exemplo, fato em grande parte devido a razões econômicas, isso não quer dizer que as concepções a eles intrínsecas correspondam à trivialidade aparente do objeto.

Justamente o objetivo do estudioso cultural deveria ser o de possuir a acuidade de percepção para reconhecer dimensões mais profundas e valores por detrás de aparências muitas vezes banais e materialmente sem valor econômico.

A concepção teórica orientada antes por regiões, espaços e unidades étnicas, sem a necessária consideração da processualidade e da historicidade traz em si o perigo de interpretar errôneamente formas de manifestação cultural. Na amostra referente à África Ocidental pode-se perceber que os seus responsáveis ainda se prendem ao sistema simplista de ver, no sincretismo, apresentado na proximidade de lixo cultural, expressões de uma cultura autóctone deturpada pelo contacto com o Ocidente. Não percebem que, nessas expressões, os europeus confrontam-se muitas vezes com a cultura européia que êles próprios já desconhecem.
Dois exemplos mereceriam ser salientados pela sua relevância para o sistema de imagens culturais e cujo desconhecimento deveria ser considerado como indesculpável para um etnólogo europeu.

O primeiro diz respeito à imagem tripartida do homem, ou a representação de um homem com três cabeças. Essa imagem não é expressão de uma cultura autóctone da África Ocidental que teria permanecido residual no complexo cultural resultante do encontro com o Ocidente: ela corresponde às mais profundas e básicas concepções do sistema antropológico transmitido pela tradição cristã, uma imagem que está às bases da simbologia bíblica, seja a dos filhos de Adão, de Noé, ou, na anti-tipologia cristã, a dos três Reis Magos. Tal representação tripartida do homem, já discutida em vários eventos da A.B.E., diz respeito a concepções básicas de uma antropologia e de uma etnologia simbólica que esteve nos fundamentos de um processo de expansão européia e do Cristianismo, e que não pode ser ignorada pelos etnólogos. Somente com o conhecimento dessa imagologia é que se pode então analisar diferenciadamente possíveis congruências e afinidades em sistemas de concepções de diferentes proveniências.

Outra imagem apresentada na exposição e errôneamente interpretada é a da figura feminina com rabo de peixe. Não se trata aqui apenas da sereia européia no sentido mais superficial dos conhecimentos mitológicos. Trata-se de uma representação de fundamental importância no edifício das concepções filosófico-naturais que se encontram à base de interpretações religiosas, conhecido desde a mais remota Antiguidade. É inadmissível que antropológos culturais e estudiosos da cultura em geral desconheçam também aqui imagens e concepções de sua própria cultura.

Ambos os casos aqui exemplarmente citados dizem respeito ao Brasil, uma vez que são conhecidos de complexos religioso-culturais vigentes até o presente. Se os estudiosos brasileiros esforçam-se em atualizar visões e perspectivas na consideração desses fenômenos culturais, superando hipóteses e modêlos de pensamento do passado, o seu empenho é prejudicado pela ação de etnólogos europeus que desconhecem aspectos básicos da própria cultura. Fundamental aqui, mais uma vez, é a mudança de orientação, de uma visão de áreas delimitadas geograficamente à de processos, aliás uma constatação já há muito defendida por alguns estudiosos brasileiros na sua crítica a conceitos de áreas culturais.

A questão do que é a Europa, colocada à discussão pelo Museu de Etnologia de Hamburgo, não pode ser respondida pela exposição. Faltou-lhe a perspectiva daqueles que talvez sejam mais europeus culturalmente do que aqueles nascidos em países europeus.

A discussão teve prosseguimento no âmbito de seminário dedicado aos Cultural Studies da Universidade de Bonn e em sessões da A.B.E.

G.R.

 

Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).

 

ao indice deste volume (n° 92)

à página inicial

Editor