Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
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No. 92 (2004: 6)
O QUE É EUROPA
Exposição no Museu de Etnologia de Hamburgo
Hamburgo. Trabalhos da A.B.E. 2004
No âmbito do ciclo de estudos Economia - História Colonial - Alegoria, levado a efeito pela Academia Brasil-Europa na cidade de Hamburgo, Alemanha, em abril de 2004, visitou-se a exposição "O que é Europa" no Museu de Etnologia da Universidade de Hamburgo (Museum für Völkerkunde).
Esse Museu, uma das mais tradicionais e renomadas instituições
da Etnologia alemã, dedicando-se a esse tema, testemunha a mudança
de visões e conceitos que se processa já há anos nos ramos disciplinares
da Völkerkunde e da Volkskunde, ou seja, da Etnologia e do Folclore.
A tendência, de muitas partes, é compreender a Volkskunde como
Etnologia européia. Essa concepção explica-se, em parte, pelos
anseios de atualização epistemológica da Volkskunde, um ramo de
estudos que foi atingido por uma perda de prestígio devido à sua
instrumentalização político-cultural nacionalista no passado e
pela sua vinculação conceitual com determinadas tradições de pensamento
e visões culturais.
Procura-se, assim, superar uma divisão de disciplinas baseadas
no posicionamento do observador e sua própria inserção cultural,
ou seja segundo complexos culturais aos quais não pertence - conhecimento
de "povos" (Völkerkunde) -, e o estudo de esferas populares de
sua própria cultura - conhecimento "do povo" (Volkskunde).
A justificativa renovadora - entre outros aspectos - ainda que
compreensível e refletindo o anseio de uma necessária atualização
teórica, não é suficiente para fundamentar a supressão de uma
área de estudos, integrando-a numa Etnologia Européia.
Trabalho interdisciplinar e até mesmo transdisciplinar é necessário
e deve ser fomentado, assim como cooperações de estudiosos de
diversas áreas; o que não pode ser aceito, porém, é a perda de
diferenciações, ainda que sutís e aptas a serem repensadas, e
que significaria um retrocesso na acuidade das reflexões.
A questionabilidade desse procedimento torna-se evidente quando
é observado a partir de um país como o Brasil. Sob a intenção
positiva de se superar visões limitadas do passado, corre-se aqui
o perigo de que se implantem ou solidifiquem novas formas de eurocentrismo.
O objetivo da exposição foi o de mostrar, no exemplo de objetos
e fotos escolhidas, a grande diversidade cultural do continente
europeu. Ao mesmo tempo, deveria deixar clara a existência de
numerosos traços comuns das culturas da Europa.
Através da delimitação da mostra a um número razoável de elementos
representativos, o modêlo fundamental de uma "Europa como um espaço
cultural" deveria ficar reconhecível mesmo para os não-especialistas.
Embora cada nação na Europa tivesse a sua própria noção do que
é em última instância a Europa, e de quem é europeu, a exposição
procurava, assim, mostrar a unidade na diversidade de expressões
culturais.
Essas palavras, apresentando o objetivo da exposição, não deixam
de indicar fraquezas da argumentação por detrás de uma justificativa
que surge como ampla e atual à primeira vista.
O texto deixa claro que o prisma teórico é dirigido em primeiro
lugar à Diversidade, ou seja, à diversidade cultural do continente
europeu. Logo a seguir, porém, salienta que a demonstração dessa
diversidade permite que sejam percebidos os traços comuns entre
as várias culturas da Europa.
Tem-se aqui, portanto, o campo de tensões Diversidade/Unidade,
já tantas vezes debatido, por exemplo como tema principal do Simpósio
Internacional realizado em São Paulo, em 1981.
Ao invés porém de se pelo menos insinuar a existência de diferentes
aspectos, dimensões ou perspectivas do complexo Diversidade na
Unidade ou Unidade na Diversidade, nos seus múltiplos relacionamentos,
o texto deixa entrever a real motivação da amostra, ou seja a
da afirmação de um "modêlo básico": o da Europa como espaço cultural.
Tornando essa intenção ainda mais explícita, o texto diz que,
embora havendo diferentes concepções do que seja Europa e de quem
é Europeu nas várias nações, esse modêlo fundamental, esse paradigma
continuaria vigente.
Os idealizadores da exposição, portanto, partem claramente de
uma orientação segundo a Unidade no campo de tensões Diversidade/Unidade,
apesar da declaração inicial a favor da Diversidade.
O mais questionável, porém, é a menção ao "continente europeu"
na argumentação. A demonstração dos traços comuns das culturas
da Europa dizem respeito, nessa linha de pensamento, a uma Europa
compreendida nas suas delimitações geográficas.
Assim, também o modêlo-base a ser reconhecido de uma "Europa como
espaço cultural" surge preso a uma concepção de área cultural
definida segundo critérios geográfico-espaciais.
Não se trata aqui tanto das dificuldades teóricas e práticas de
definição das fronteiras dessa área ou do "continente europeu",
por exemplo na direção do Leste, onde não há o Oceano ou o Mar
Mediterrâneo que facilite tal demarcação. Trata-se, na verdade,
de problemas muito mais complexos, ou seja de uma compreensão
por demais orientada segundo regiões, nações e continentes, ou
melhor, de uma concepção sem suficiente e necessária consideração
de processos.
Essa visão é justamente aquela que divide o mundo entre "europeu"
e "extra-europeu". Tal divisão, se não suficientemente diferenciada,
é inaceitável para países que surgiram do processo de expansão
européia da época dos Descobrimentos e que se formaram histórico-culturalmente
no contexto do colonialismo europeu e do Cristianismo ocidental.
Se a Europa, expandindo-se, colocou em vigência mecanismos que
deram início a processos histórico-culturais e que, na sua dinâmica,
ainda que auto-transformadora, se encontram até hoje atuantes,
então ela não pode, hoje, abandonar a sua responsabilidade decorrente
da sua inserção no complexo processual por ela desencadeado. Ela
não pode fechar-se em supostas fronteiras geográficas de uma área
cultural.
Para países como o Brasil, a consideração suficiente da processualidade
da cultura, que subentende também a da historicidade na geografia
cultural é uma exigência para os estudos culturais refletidos.
O oposto necessitaria ser criticado como mais uma expressão de
eurocentrismo.
A questão levantada explícitamente pela exposição - o que é Europa
- pode ser, sob muitos aspectos, muito melhor respondida a partir
do Brasil, do México ou de outros países latinoamericanos do que
de muitas regiões da própria Europa. Bastaria aqui lembrar das
múltiplas tradições culturais de proveniência européia que se
conservam na América Latina e que já desapareceram na Europa,
possibilitando análises de sistemas simbólicos e de mecanismos
processuais.
Economia, consumo, lixo e cultura
Deve-se salientar, porém, que a infeliz imprecisão do texto introdutório
da exposição não impediu que a mesma se mostrasse sensível para
desenvolvimentos "extra-europeus". A própria inserção da exposição
no conjunto pluricultural de um museu de etnologia impunha tal
consideração.
Assim, o visitante pode confrontar-se com vitrines que apresentaram
efeitos de encontros culturais e econômicos na África Ocidental,
onde resíduos de produtos de consumo foram expostos em proximidade
com símbolos religiosos de sincretismo. Embora percebendo-se aqui
intuitos de crítica cultural no sentido de auto-crítica européia,
não se pode deixar de salientar que tal aproximação traz em si
o perigo de ser entendida como uma afronta e manifestação de arrogância.
Se símbolos religiosos sincretísticos ou aparentemente sincretísticos
utilizam-se de objetos de menos valor obtidos da cultura de consumo,
bonecas e brinquedos de plástico, por exemplo, fato em grande
parte devido a razões econômicas, isso não quer dizer que as concepções
a eles intrínsecas correspondam à trivialidade aparente do objeto.
Justamente o objetivo do estudioso cultural deveria ser o de possuir
a acuidade de percepção para reconhecer dimensões mais profundas
e valores por detrás de aparências muitas vezes banais e materialmente
sem valor econômico.
A concepção teórica orientada antes por regiões, espaços e unidades
étnicas, sem a necessária consideração da processualidade e da
historicidade traz em si o perigo de interpretar errôneamente
formas de manifestação cultural. Na amostra referente à África
Ocidental pode-se perceber que os seus responsáveis ainda se prendem
ao sistema simplista de ver, no sincretismo, apresentado na proximidade
de lixo cultural, expressões de uma cultura autóctone deturpada
pelo contacto com o Ocidente. Não percebem que, nessas expressões,
os europeus confrontam-se muitas vezes com a cultura européia
que êles próprios já desconhecem.
Dois exemplos mereceriam ser salientados pela sua relevância para
o sistema de imagens culturais e cujo desconhecimento deveria
ser considerado como indesculpável para um etnólogo europeu.
O primeiro diz respeito à imagem tripartida do homem, ou a representação
de um homem com três cabeças. Essa imagem não é expressão de uma
cultura autóctone da África Ocidental que teria permanecido residual
no complexo cultural resultante do encontro com o Ocidente: ela
corresponde às mais profundas e básicas concepções do sistema
antropológico transmitido pela tradição cristã, uma imagem que
está às bases da simbologia bíblica, seja a dos filhos de Adão,
de Noé, ou, na anti-tipologia cristã, a dos três Reis Magos. Tal
representação tripartida do homem, já discutida em vários eventos
da A.B.E., diz respeito a concepções básicas de uma antropologia
e de uma etnologia simbólica que esteve nos fundamentos de um
processo de expansão européia e do Cristianismo, e que não pode
ser ignorada pelos etnólogos. Somente com o conhecimento dessa
imagologia é que se pode então analisar diferenciadamente possíveis
congruências e afinidades em sistemas de concepções de diferentes
proveniências.
Outra imagem apresentada na exposição e errôneamente interpretada
é a da figura feminina com rabo de peixe. Não se trata aqui apenas
da sereia européia no sentido mais superficial dos conhecimentos
mitológicos. Trata-se de uma representação de fundamental importância
no edifício das concepções filosófico-naturais que se encontram
à base de interpretações religiosas, conhecido desde a mais remota
Antiguidade. É inadmissível que antropológos culturais e estudiosos
da cultura em geral desconheçam também aqui imagens e concepções
de sua própria cultura.
Ambos os casos aqui exemplarmente citados dizem respeito ao Brasil,
uma vez que são conhecidos de complexos religioso-culturais vigentes
até o presente. Se os estudiosos brasileiros esforçam-se em atualizar
visões e perspectivas na consideração desses fenômenos culturais,
superando hipóteses e modêlos de pensamento do passado, o seu
empenho é prejudicado pela ação de etnólogos europeus que desconhecem
aspectos básicos da própria cultura. Fundamental aqui, mais uma
vez, é a mudança de orientação, de uma visão de áreas delimitadas
geograficamente à de processos, aliás uma constatação já há muito
defendida por alguns estudiosos brasileiros na sua crítica a conceitos
de áreas culturais.
A questão do que é a Europa, colocada à discussão pelo Museu de
Etnologia de Hamburgo, não pode ser respondida pela exposição.
Faltou-lhe a perspectiva daqueles que talvez sejam mais europeus
culturalmente do que aqueles nascidos em países europeus.
A discussão teve prosseguimento no âmbito de seminário dedicado
aos Cultural Studies da Universidade de Bonn e em sessões da A.B.E.
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto
de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui
notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado
no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que
se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).
ao indice deste volume (n° 92)