Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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No. 91 (2004: 5)
Impressões, imagens e mitos Colóquio Internacional de Estudos Interculturais
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Lírica na história cultural européia e imagens de cidades
Reflexões sobre as dimensões européias de Donizetti e sua recepção
no Brasil
Trabalhos da Academia Brasil-Europa 2004 Bergamo, Itália
18 de junho de 2004
Após o Colóquio Internacional de Estudos Culturais pelos 450 anos de São Paulo levado a efeito em março de 2004, a Academia Brasil-Europa promoveu um ciclo de reflexões sobre os resultados do evento e as impressões dos participantes europeus.
Um dos aspectos por muitos levantado foi a sensível marca italiana na história cultural de São Paulo. Esse tema foi tratado em conferência relacionada com Antonio Carlos Gomes e Milão, na sessão solene celebrada no Teatro Municipal de São Paulo e, sob o ponto de vista da história urbana, ao vivo nas ruas do centro da cidade. (veja relatos no número anterior desta revista)
Nessas reflexões, como sugerido pelo tema Lírica da Metrópole,
a atenção concentrou-se sobretudo na história da música e das
concepções musicais no âmbito das relações Itália-São Paulo, salientando-se
naturalmente a história da ópera.
Para a retomada e diferenciação dos debates, agora em contexto
europeu, realizou-se uma viagem à cidade de Bergamo, na Lombardia,
situada há ca. de 50 km ao leste de Milão.
A escolha dessa cidade foi justificada pelo seu significado histórico-cultural
e pelo seu patrimônio arquitetônico e urbano.
Na localização da cidade velha, sobre uma colina, sob a qual se
esprai a planície do rio Po, poder-se-ia ver uma certa similaridade
com a sítio original de São Paulo. O amplo panorama que se descortina
da paisagem pode ser apreciado sobretudo a partir do castelo na
colina de San Vigilio. A disposição em forma de anfiteatro, recordando
também a configuração quase que teatral de São Paulo na sua abertura
para o Anhangabaú foi também um dos motivos que faz com que Bergamo
fosse vista como uma cidade particularmente instigante para reflexões
no contexto de estudos marcado pelo programa Poética da Urbanidade
da A.B.E..
Um dos escopos da estadia foi o de realizar um ato memorial junto
aos monumentos funerários de Gaetano Donizetti (1797-1848) e de
seu mestre, Johann Simon Mayr (1763-1845).
Os seus túmulos encontram-se na igreja de Santa Maria Maggiori,
templo localizado na Piazza Vecchia, ao lado da Cappella Colleoni,
do Palazzo Vecchio e da Catedral, todos monumentos de excepcional
significado histórico-artístico.
A seguir, visitou-se o monumento a Donizetti junto ao Teatro Donizetti,
na Cidade Baixa.
Bergamo e estudos euro-brasileiros
Para os estudos culturais ítalo-brasileiros, época particularmente significativa da história local a ser considerada é aquela de fins do século XVIII até a segunda metade do século XIX. Em 1797, após a Paz de Campo Formio, Bergamo foi submetida ao domínio austríaco. Em meados do século XIX, transformar-se-ia num dos principais centros de libertação desse mesmo domínio, um importante baluarte no movimento de unificação italiana, do Risorgimento. A cidade, o seu teatro e a música em geral desempenharam importante papel na intensificação de uma identidade nacional. Significativamente, afirma-se que Bergamo foi a cidade que possuiu um dos maiores contingentes de combatentes ao lado de G. Garibaldi.
A música foi sempre elemento fundamental na auto-imagem da cidade. Ainda mais do que outras cidades italianas foi por muitos considerada cidade musical por excelência. Os seus vínculos foram sobretudo com a República de Veneza, a que pertencera desde 1428, com a Igreja de São Marcos como um dos principais centros musicais da Europa, seus teatros e conservatórios, e com Milão, com o La Scala, cuja influência fêz-se sentir de forma cada vez mais crescente. Monumento representativo da importância da música para Bergamo foi o seu teatro, uma das casas de ópera das mais renomadas da Europa. À época de sua construção, em fins do século XVIII, foi um dos primeiros teatros de construção sólida de alvenaria na Itália, ao lado do de Milão. Já as suas dimensões testemunham o significado do edifício para a consciência comunitária. Não é de admirar que esse teatro tornar-se-ia um edifício emblemático à época do movimento de libertação. Ali realizaram-se execuções de intenso simbolismo, cuja influência no consciente e no subconsciente coletivo tem sido sempre salientada.
Um estudo do papel da Lírica na imagem de Bergamo e de sua história política não pode ser realizada sem que se considere o compositor Gaetano Donizetti, verdadeiro ícone de Bergamo, presente em monumentos vários, na denominação do próprio teatro e na vida cultural. Sob o ponto de vista científico, cumpre salientar o centro de documentação donizettiana que ali desenvolve os seus trabalhos de coleta sistemática de fontes documentais sobre a vida e a obra do compositor.
Um dos aspectos salientados no seminário dedicado às fontes de
uma história da música em contextos globais no século XIX, levado
a efeito na Universidade de Bonn, foi o do significado de Donizetti
para uma musicologia histórica de orientação teórico-cultural
e, sobretudo, para o estudo da música nas relações internacionais
do século XIX.
A recepção da obra de Donizetti no Brasil já foi considerada em
alguns estudos e publicações, necessitaria porém ser considerada
com mais pormenores. O seu significado na história da ópera no
Brasil e mesmo no dessenvolvimento estilístico das modinhas foi
mencionado por vários autores.
Nos trabalhos desenvolvidos por estudantes de universidades européias,
no seminário acima referido, esses estudos foram considerados
e discutidos. Entre outros, por exemplo, consideraram-se informações
de Ayres de Andrade referentes à realização de obras do compositor
no Rio de Janeiro, e a sua importância crescente a partir de 1845:
"Rossini cede a Donizetti e Bellini a primazia que vinha ostentando
nas temporadas. O resultado foi que Bellini, com a melancólica
suavidade de suas melodias, tão condizente com a sensibilidade
do brasileiro, passou a influenciar os trovadores do País, a tal
ponto que no repertório da modinha brasileira não são raras aquelas
que parecem provir diretamente das óperas de Bellini.
Não falando de certos álbuns para canto, então publicados, contendo
melodias extraídas das óperas desse compositor e com letra em
português, na maioria das vêzes em absurdas adaptações do texto
à música."(Francisco Manuel da Silva e seu tempo 1808-1865, II, Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro 1967, 7 ss.)
Nesse contexto, discutiu-se a necessidade de uma maior diferenciação
dos estudos de recepção musical, não apenas no referente a aspectos
estilísticos entre Bellini e Donizetti. Essa diferenciação, porém,
exige estudos culturais mais amplos e refletidos teoricamente.
Um dos vínculos do universo donizzetiano com o Brasil parece poder
ser analisado a partir de sua presença em Nápoles, época na qual
esse reino unia-se através de estreitos laços de política matrimonial
com o Império do Brasil.
Após o seu casamento, em 1829, Donizetti fixou residência em Nápoles,
sendo nomeado nesse ano para a direção musical dos teatros reais.
Os anos que se seguiram foram marcados por obras significativas
de sua considerável produção: Anna Bolena (1830), L'Elisir d'amore
(1832), Lucrezia Borgia (1833), Maria Stuarda (1834), Lucia de
Lammermoor (1835). Como outros compositores italianos, também
êle foi atraído a Paris.
Tais relações músico-culturais intereuropéias oferecem múltiplas
possibilidades para uma musicologia de orientação cultural. Com
a inclusão de países extra-europeus, a pesquisa ganha em amplidão
e profundidade.
Esse enfoque não se reduz, no caso, à constatação da recepção
de sua obra no Brasil, das datas de sua apresentação e dos artistas
participantes e das ressonâncias na imprensa. Uma orientação cultural
pode revelar contextos pouco considerados e significativos para
o desenvolvimento de uma historiografia musical que supere centralizações
européias.
Universo sacro-musical sul-alemão
Um dos aspectos considerados, neste contexto, foi o do papel e
do significado do mentor de Donizetti, Johannes Simon Mayr (1763-1845).
Simon Mayr foi o grande nome da história da música de Bergamo
da fase de sua vinculação centro-européia. As reflexões puderam
basear-se em trabalhos já desenvolvidos anteriormente no âmbito
da A.B.E.
Nascido em Mendorf, na Baviera, a formação músico-cultural de
Simon Mayr dirige a atenção a um contexto de grande significado
para os estudos culturais e histórico-musicais relacionados com
a América Latina.
De família de músicos de igreja, tendo no seu avô, Petrus Mayr,
e no seu pai, Joseph Mayr, sustentáculos de uma tradição sacro-musical,
Simon Mayr cresceu em ambiente profundamente marcado pela prática
da música de igreja com acompanhamento instrumental.
A sua formação deu-se na esfera marcada pelos jesuítas do Sul
da Alemanha. A Companhia de Jesus, de extraordinária importância
na intensificação do catolicismo nessa região e em ações contra-reformatórias,
exerceu também papel relevante na história das missões da América
do Sul. Os elos que ligam os jesuítas da esfera alemã com o Paraguai,
a transplantação de práticas musicais dessa região para a América
Latina, as influências recíprocas e conseqüências globais dessa
ação já foram consideradas e analisadas em diferentes eventos
da A.B.E., entre êles na sessão realizada no Palácio do Itamaraty,
no Rio de Janeiro, em 2002. Entre os músicos a serem inseridos
nesse vasto complexo de questões situa-se Simon Mayr.
Em 1774, Simon Mayr foi admitido no Colégio Jesuíta de Ingolstadt,
a partir de 1781 à Universidade para estudos de Teologia e de
Direito Canônico. Em 1787, seguindo o seu protetor Thomas von
Bassus, dirigiu-se a Cantone, na Suiça, e, a partir de 1789, a
Bergamo.
Com o apoio do Cônego Conte Pesenti, e com a finalidade de dedicar-se
à música sacra, entrou no Conservatorio di Mendicanti em Veneza.
Ao lado de seus estudos de música sacra, na tradição da igreja
de S. Marco, teve a sua atenção dirigida à ópera, sofrendo aqui
a influência de Piccini, entre outros. A ópera Saffo, composta ara o Teatro della Fenice, em 1794. marcou o início
de uma intensa produção. As suas óperas foram apresentadas nas
principais cidades européias.
Passo decisivo para o seu retorno à esfera da música sacra deu-se
com a sua nomeação, em 1802, a mestre-capela de S. Maria Maggiore
em Bergamo. Aqui, ao lado de sua vasta atividade como compositor,
fundou organizações de fomento da vida musical (Unione filarmonica)e de apoio social a músicos e seus dependentes, a Scuole caritatevoli di musica (1805) e o Pio Istituto musicale (1809) para músicos idosos, viúvas e órfãos. Foi na escola de
música caritativa por êle fundada que Donizetti adquiriu a sua
formação musical.
Esse amplo panorama de relações e influências revela contextos
culturais que fazem com que a questão do relacionamento entre
a música sacra e a música teatral, assim como a da recepção de
Donizetti no Brasil sejam reconsideradas.
(...)
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto
de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui
notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado
no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que
se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).