Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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No. 91 (2004: 5)
Impressões, imagens e mitos Colóquio Internacional de Estudos Interculturais
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Transformações político-culturais européias no século XIX
e relações euro-brasileiras
Reflexões sobre Dna. Januária Maria de Bragança (1822-1901)
Nizza/Nice, Trabalhos da A.B.E. 2004
Após o Colóquio Internacional de Estudos Culturais pelos 450 anos
de São Paulo, realizado em São Paulo e no Rio de Janeiro em março
de 2004, precedido por uma série de seminários e pelo programa
Poética da Urbanidade, levado a efeito em várias cidades da Europa
e do Caribe, a Academia Brasil-Europa promoveu um ciclo de estudos
e reflexões sobre os resultados do Colóquio e as impressões dos
participantes. Assuntos e questões tratadas durante o Colóquio
foram retomadas e rediscutidas em diferentes contextos.
Um dos aspectos considerados disse respeito à sessão de encerramento
do Colóquio, realizada no Museu Imperial de Petrópolis. Nessa
sessão, entre outros temas, tratou-se da necessidade de aprofundamento
histórico dos estudos culturais euro-brasileiros através de visões
recíprocas e, em particular, de estudos da ação de brasileiros
e da repercussão de acontecimentos brasileiros no Exterior no
período pós-Independência. Tendo-se salientado o extraordinário
significado de uma história cultural em contextos internacionais
para o Brasil do século XIX, superior àquele de outras nações
latino-americanas pelas características da forma governamental
monárquica, apontou-se a conveniência de realização de estudos
dos vínculos da família imperial brasileira com meios culturais
e científicos europeus a partir da consideração de localidades
e regiões onde estiveram presentes.
Januária Maria
Um vulto pouco considerado da história do Brasil do século XIX
é o de Dna. Januária Maria de Bragança, filha de Pedro I e Dna.
Leopoldina, irmã de Pedro II. O seu nome pode ser lido em denominações
de localidades, logradouros e navios, a sua pessoa e vida, porém,
não se encontram praticamente mais vivas na memória. Essa situação
de desconhecimento é singular, considerando-se a sua posição e
as circunstâncias de seu nascimento e de sua vida.
Nasceu no próprio ano da Independência do Brasil, a 11 de março
de 1822, no Rio de Janeiro, e, segundo a tradição, recebeu o seu
nome sob inspiração da própria cidade (Januária). Foi batizada
na Capela Imperial, a 18 de março de 1822 com o nome de Maria
Joana Carlota Leopoldina Cándida Francisca Xavier de Paula Micaela
Gabriela Rafaela Gonzaga. Tendo nascida logo após o falecimento
do Príncipe D. João Carlos, passou a sua infância junto com os
seus irmãos Pedro II, Paula Mariana e Francisca, sofrendo com
eles a situação criada pela perda da mãe, a saída do pai, pelas
circunstâncias políticas do período regencial e pela severidade
de uma formação severa que os preparava cedo para posições de
alta responsabilidade. Um dos grandes golpes sofridos na sua infância
foi a da morte de sua irmã Paula Mariana, em 1833.
Abdicando Pedro I, foi nomeada por lei a Princesa Imperial do
Brasil, um ato cujo significado também não tem sido considerado
à altura. Prestou juramento no dia 4 de agosto de 1836. Manteve
essa posição até o nascimento do Príncipe Afonso, filho de Pedro
II. Nesse ano de 1836, alguns parlamentares liberais chegaram
a pensar no seu nome para a Regência.
Casou-se sob condições similares a de seu irmão, Pedro II, dentro
de um mesmo contexto de política matrimonial. Enquanto este uniu-se
a Dna. Teresa Cristina, Dna. Januária casou-se a 28 de abril de
1844 com o irmão da nova imperatriz, Luigi Carlo Maria di Borbone,
Príncipe di Borbone delle Due Sicilie (1824-1897), filho do rei
Francisco I di Borbone e Maria Isabel de Borbón, Infanta daEspanha.
"No dia 3 de setembro de 1843, a fragata Constituição - especialmente
enviada à Itália para buscar a futura imperatriz do Brasil - aportava
na baía do Rio de Janeiro. (...) O imperador faria um breve cumprimento
e só então se dirigiria para os aposentos de S.M. a imperatriz,
onde estariam suas damas de honra e seu irmão, o conde d'Áquila
- o futuro marido da irmã de d. Pedro, D. Januária." (Lilia Moritz
Schwarzct, As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, 2a. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pág. 94)
(...)
O seu enlace devia fortalecer - segundo a evidência da política
de união - ainda mais os vínculos do Brasil com o Reino de Nápoles
e Duas Sicílias e com a Casa de Bourbon. Desde 1815, com as determinações
do Congresso de Viena, os Bourbons retornados a Nápoles haviam
desenvolvido uma política conservadora e que tinha sido acompanhada
por expressões de descontentamento popular à época da Independência
do Brasil. A política matrimonial brasileira, na sua coerência
e visão equilibrada apenas pode ser considerada levando-se em
conta que a sua irmã, D. Francisca, uniu-se nada menos que com
o filho de Luís Filipe de Orléans, o "rei-cidadão" dos franceses,
ou seja, inseriu-se em esfera política que contratastava com o
regime dos Bourbons.
"D. Francisca, a bela Chica, como a chamava, casaria em 1843 com
o príncipe de Joinville, filho de Luís Filipe da França, o que
tornava ainda mais próximos os vínculos entre as duas monarquias.
D. Januária contrairia núpcias com o conde d'Áquila, irmão de
Teresa Cristina, no mesmo ano. Mantinham-se, assim, as relações
que vinculavam a monarquia brasileira às demais realezas européias."
(op.cit., pág. 95)
Apesar da visão ampla que se intui dessa política matrimonial,
que colocou o Brasil recentemente emancipado no círculo íntimo
de constelações de poder de importantes nações européias, as circunstâncias
e o desenvolvimento político impediram que trouxessem possíveis
resultados estáveis de um esperado equilíbrio. Já em 1848 Luís
Filipe abdicaria, iniciando-se a Segunda República e o Segundo
Império, e a família relacionada com Nápoles, já assolada com
problemas econômicos, que pelo que tudo indica abalaram o convívio
com Pedro II, confrontava-se com difíceis situações sociais e
políticas que levariam até mesmo à supressão do reino.
"O casamento de d. Januária, a partir de então condessa d'Áquila,
não foi, segundo os biógrafos, tão feliz como o de sua irmã. As
desavenças entre o marido de d. Januária e d. Pedro II começam
logo no primeiro ano de convivência, quando Áquila insiste em
voltar para Nápoles. (...) Sobre essas e outras disputas entre
o imperador e o conde d'Áquila, ver H. Lyra, op.cit. [Heitor Lyra,
História de d. Pedro II (1938-40), São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia 1977]).
Os estreitos elos do Brasil com a família real napolitana inseriram o país numa complexa situação política e político-cultural marcada por extremo conservativismo e exacerbados anseios de libertação. Os movimentos libertários de 1848/49 foram sufocados na Sicília e em Nápoles por Ferdinando II, acentuando-se o conservativismo do regime absolutista napolitano. A situação não pode ser solucionada pelo seu filho e sucessor Francisco II. Com a chegada das tropas de Garibaldi em Marsala, em 1860, e com a perda da Sicília e de Reggio, o destino de Nápoles estava selado. O soberano e seus familiares tiveram que abandonar o reino e este, após a derrota do restante do exército napolitano por tropas do Piemonte, foi integrado no reino da Itália sob Vitório Emanuel II.
Numa visão retrospectiva, a criação dos estreitos elos do Brasil com Nápoles, através da imperatriz Teresa Cristina no Brasil e de Dna. Januária na Europa representaram hitórico-politicamente um passo pouco feliz, uma vez que o Brasil unira-se com um estado que deixou de existir na nova Itália unida. Para uma historiografia sensível, a compreensão de ambas as principais protagonistas, de suas atitudes e ações exige um esforço empático do estudioso em inserir-se em universos político-culturais não mais existentes.
Questões de silêncio
A pouca presença de Dna. Januária na história cultural do Brasil
e das relações euro-brasileiras é sobretudo singular sob o pano
de fundo da nova sensiblidade por questões do papel da mulher
na história e de estudos de Gênero.
Em seminário dedicado aos Gender Studies na Universidade de Bonn,
salientou-se o fato de o Brasil possuir, diferentemente da maior
parte dos países vizinhos, pelo própria forma de govêrno que possuiu
no passado, uma série de personalidades femininas que poderia
e deveria ser melhor considerada.
Não são muitos os países que apresentam, em posições destacadas
do Estado, vultos femininos que uniram a sua história àquela de
importantes nações européias, a começar pelas imperatrizes, Leopoldina,
Arquiduquesa da Áustria, Amélia de Leuchtenberg e Teresa Cristina
de Nápoles. O papel desempenhado por essas e outras personalidades
femininas na história cultural do Brasil - ainda que sobretudo
de forma não explícita e exteriorizada - necessitaria ser melhor
analisado.
Para isso, porém, exige-se a consideração de seus elos com os
países de origem, uma vez que a formação cultural obtida, a língua
e os laços emocionais e afetivos com familiares e com situações
de antigas pátrias nunca podem ser totalmente superados. No caso
de Dna. Januária, porém, tem-se uma situação ainda mais relevante.
Uma princesa brasileira, irmã do segundo imperador do Brasil,
nascida no próprio ano da Independência, cognominada de "Princesa
da Independência", com formação brasileira, unida por laços emocionais
e afetivos ao Brasil torna-se membro de família de particular
relêvo político e social na Europa, cuja política e sua imagem
permaneceram estreitamente relacionada com a Restauração.
O silêncio em torno da figura de Dna. Januária na história cultural
do Brasil e das relações culturais euro-brasileiras não deveria
ser motivo para a sua não-consideração nos estudos culturais.
Sabe-se, de outras situações, que justamente altas qualidades
pessoais e de formação impediram projeções e auto-projeções, cabendo
a estudiosos com sensiblidade para questões de justiça histórica
diferenciar panoramas, revelar nomes injustamente encobertos e
analisar as suas ações. Sabe-se, no caso da princesa Januária,
que recebeu uma formação segundo normas severas de orientação
da vida.
Tudo indica, porém, que foram características de sua personalidade
que a mantiveram em posição quase que de retiro, avessa a sensacionalismos.
Extrema modéstia e grande sensibilidade teriam sido obstáculos
para a percepção maior de sua pessoa por círculos sociais exteriorizados
e pela imprensa. Isso não significa, porém, que o mundo interior
que parece ter sido a principal esfera onde viveu não tenha tido
conseqüências para a realidade. Somente uma pesquisa histórica
sensível - dificultada no caso pela situação documental - poderá
trazer maiores esclarecimentos. Entre outros aspectos, não se
pode esquecer a influência que ela, como mãe, exerceu em círculos
familiares e em seus descendentes, transmitindo conhecimentos
sobre o Brasil, sobre a língua e os valores culturais. Seus filhos
nasceram ainda à época da existência do Reino napolitano: o Príncipe
Luigi di Borbone (1845-1909), Isabelle di Borbone (1846-1859),
Filippo di Borbone (1847-1922) e Emanuele di Borbone (1851-1851).
O silêncio em torno dessa presença brasileira na Europa pode ser
justificado assim sob diferentes aspectos. Em primeiro lugar,
parece ser resultado de qualidades de personalidade e de formação
da própria Dna. Januária, de atitudes baseadas no seu caráter
e em princípios de procedimento, o que daria conotações infelizes
a seu destino e a colocaria em posição de injustiçada perante
a história. Esse silêncio pode ser porém explicado também pelo
fato de se tratar de um contexto histórico-político desaparecido,
de um reino extinto, de constelações submersas. Este não é o caso
apenas do Reino de Nápoles, mas sim também de muitos outros pequenos
estados europeus que, na historiografia que parte de situações
póstumas de países unificados nacionalmente, apenas são considerados
em notas à margem. A reconstrução de situações históricas, de
identidades e imagens dessas configurações políticas submersas
são dificultadas assim não apenas pela situação das fontes como
também por razões de natureza teórica. Uma delas diz respeito
ao fato de que aqui também se tem questões de emigração e integração
de exilados e fugitivos em outros países. No caso, uma orientação
da atenção primeiramente dirigida a Nápoles, ou seja, à Itália
segundo a imagem atual, é redirecionada à esfera francesa, ou
melhor, a uma esfera de encontro de esferas culturais italianas
e francesas.
Nizza/Nice e o Brasil
Uma primeira aproximação ao universo de Dna. Januária na Europa
deu-se com uma visita a Nizza. Essa foi a cidade de seu falecimento,
ocorrido a 12 de março de 1901. O objetivo da visita foi o de
considerar as mudanças européias vivenciadas pela princesa brasileira
numa cidade que, como pouco outras, situava-se entre esferas culturais
italianas e francesas e que até mesmo passou a integrar a França.
A cidade de Nizza/Nice já foi considerada em diversas ocasiões
no âmbito dos estudos euro-brasileiros. Do ponto de vista dos
estudos culturais, cumpre salientar a presença de estudiosos brasileiros
em eventos internacionais ali realizados. Um dos aspectos mais
considerados foi o do Carnaval, expressão cultural que mais evidentemente
aproxima a cidade na Côte d'Azur de cidades brasileiras, em particular
do Rio de Janeiro. Sob o aspecto histórico, o elo mais considerado
tem sido o criado através da pessoa e das ações de G. Garibaldi.
A atenção dirigida a Dna. Januária traz à consciência a existência
de esferas completamente distintas, embora envoltas em silêncio.
O significado de Nizza para a história cultural inter-européia
é de excepcional relevância. Com base em escavações arqueológicas,
supõe-se até mesmo ser uma das mais antigas zonas povoadas da
Europa e uma das povoações permanentes mais antigas da Humanidade.
Fundada com o nome de Nikaia como porto comercial por gregos,
à época da fundação de Marselha, quatro ou cinco séculos antes
de Cristo, foi marcada pela presença romana em Cimiez a partir
de 150 A.C., presença esta testemunhada pelo anfiteatro ainda
existente. Na Idade Média (1388), Nizza passou para esfera da
Savóia. Inseriu-se, assim, num campo de tensões que levaria, no
decorrer dos séculos, por várias vezes a ataques e tentativas
de conquista por parte dos franceses. Esse vínculo com a Savóia,
marcante culturalmente, tem sido considerado mais nos seus aspectos
negativos, sobretudo do ponto de vista histórico-econômico. O
porto de Gênova teria impedido o pleno desenvolvimento do porto
de Nizza, este mais longínquo dos centros de poder. Em 1860, com
a passagem definitiva para a França, iniciou-se um período de
florescimento que faria da cidade um dos principais núcleos econômicos
e sociais do Sul da França.
À época da chegada de Dna. Januária à Europa, Nizza pertencia
ainda à esfera da Savóia. A sua história de vida caiu assim não
apenas no período decisivo do fim do Reino de Nápoles e de Duas
Sicílias e no das lutas pela união italiana como também no da
reorganização política e do florescimento sócio-cultural do Sul
da França. Em Nizza estabeleceram-se membros da aristocracia de
vários países europeus, transformando a cidade em centro marcado
pelo cosmopolitismo. A desigualdade social da cidade que assim
se desenvolveu sempre tem sido salientada. Ao lado da pobreza
das condições dos habitantes da cidade velha, a sua Promenade
des Anglais e ruas adjacentes tornaram-se um dos principais centros
da vida aristocrática européia e modêlo de muitas cidades balneárias.
Nizza tornar-se-ia também um dos principais centros culturais
da França, em vários aspectos apenas suplantado por Paris. Hoje
conta com um particularmente elevado número de museus.
A memória de Dna. Januária, a princeza denominada segundo o Rio de Janeiro, permaneceu viva em círculos familiares, inclusive no nome de uma de suas descendentes, Januaria di Borbone (1903). O elo genealógico aqui leva a Luigi di Borbone, Principe di Borbone delle due Sicilie e Conte di Roccaguglielma. Este casou-se com Amelia Bellow-Hamel y Penot (1847-1914), em 1869, em Nova Iorque. Tiveram dois filhos, Gennara de Borbón (1870-1941) e Luigi di Borbone, Conte di Roccaguglielma (1873-1940). Este Luigi di Borbone casou-se com Enrica Weiss (1880-1947), em 1898, em Nizza. divorciando-se em 1910; casou-se em segundas núpcias com Adeline Landegen (1875-1959), em 1932. Teve como filhos, de Enrica Weiss, Luigi di Borbone, Conte di Roccaguglielma (1898-1967), Januaria di Borbone (1903) e Carlo di Borbone, Conte di Roccaguglielma (1905-1968) (Hugh Montgomery-Massingberd (ed.), Burke's Royal Families of the World, 1: Europe & Latin America, London: Burke's Peerage, 1977).
Apesar das perspectivas que oferecem, os trabalhos se encontram em fase incipiente.
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto
de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui
notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado
no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que
se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).