Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
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No. 87 (2004: 1)
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MEMÓRIA E MÚSICA NO MÉTODO DE TRANSFORMAÇÃO CULTURAL -
PARA A RECONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES DOS PRIMEIROS
TEMPOS
JOSÉ DE ANCHIETA S.J.
Antonio Alexande Bispo
Na reconstrução da história das mentalidades dos primeiros anos
da História do Brasil, o desenvolvimento do teatro escolar deve
ser considerado em estreito relacionamento com o ensino da música
nas escolas missionárias dos jesuítas. Aqui se salienta o nome
do Pe. José de Anchieta (1534-1597). O papel da música, da poesia
e das representações dramáticas na ação missionária de Anchieta
já foi tratado, sob diversas perspectivas, em numerosas publicações
e em congressos. Entrentanto, ele deve ser sempre considerado
dentro de um contexto adequado, ou seja, dentro da história da
Companhia de Jesus nas suas primeiras décadas e sempre relacionado
com situações de conflito sempre pendentes entre os conceitos
fundamentais da ordem e a prática determinada pelas circunstâncias.
O emprêgo da música na ação missionária era uma das principais
questões da missiologia jesuítica na época da vinda de Anchieta
ao Brasil. Quando Anchieta chegou a S. Vicente, em dezembro de
1553, tendo logo após assistido o Pe. Manoel da Nóbrega na fundação
oficial do Colégio de São Paulo (25 de Janeiro de 1554), não apenas
já contavam os jesuítas com alguns anos de experiências e reflexões
relativas ao uso da música no trabalho missionário, como se encontravam
até mesmo envolvidos em uma grave e ampla discussão polêmica de
natureza musical.
Da carta que o P. José de Anchieta enviou ao P. Inácio de Loyola
no dia primeiro de setembro de 1554, depreende-se que o missionário
dedicava a sua atenção sobretudo ao zelo pela formação religiosa
e pela pureza da vida espiritual dos alunos segundo aquilo que
vivenciara no Colégio de Coimbra. O quotidiano na escola da missão
de São Paulo era marcado por rigorosa disciplina: antes das aulas,
entoava-se a ladainha, e o dia era encerrado à noite com o Salve
Regina; às sexta-feiras realizavam-se procissões de penitência,
quando os alunos se disciplinavam. Logo, porém, percebeu que seria
quase que impossível extirpar dos indígenas os seus costumes de
beber e cantar, nos quais frequentemente recaíam; por essa razão,
constatava a necessidade de que os missionários usassem de todos
os meios para atraí-los.
Percebe-se, portanto, que Anchieta se defrontou no Brasil com
uma situação conflitante análoga àquela que se conhece do Colégio
de Goa da mesma época: o sempre presente ideal da criação ou recuperação
de uma atmosfera de recolhimento e silêncio aos moldes de Coimbra
nas escolas missionárias mostrou-se impossível de ser realizado
de imediato. Após a fase de atração dos indígenas, o principal
problema que se apresentava era mantê-los na nova forma de vida.
Sempre estavam tentados a retornar a seus costumes tradicionais,
sobretudo em épocas de festejos. Em São Vicente tentou-se até
mesmo proibir aos indios de entrar na igreja, caso participassem
das festas tradicionais; a 1 de janeiro de 1555 chegou-se a organizar
um ato de penitencia coletivo, no qual as crianças cantaram ladainhas
e os fiéis disciplinaram-se.
O papel desempenhado pela música no trabalho missionário de Anchieta
deve, portanto, ser considerado nesse contexto caracterizado por
uma tensão entre o ideal do silêncio e a ação pragmática do momento.
Tendo de usar de todos os meios para alcançar os fins, utilizou-se
o missionário sobretudo das expressões tradicionais populares
da cultura cristã européia que conhecia de sua infância e juventude.
A disposição de Anchieta para usar da música como fator de educação
moral e religiosa já foi reconhecida como um resultado de sua
educação e tradição familiar. Um parente seu teria sido maestro
da capela real, D. João de Anchieta, compositor e poeta, de Urrestilha,
na Guipúscoa, donde emigrara para as Canárias o pai die José de
Anchieta; em Tenerife, dois de seus irmãos, sacerdotes, teriam
ensinado irmãos seus a tanger cravo e órgão.
As fontes comprovam que muitos de seus textos foram cantados,
nele encontrando-se indicações que demonstram, por exemplo, terem
sido diferentes textos adaptados à mesma melodia. No seu prefácio
à edição da coletânia de poesias de 1954, o Pe. Hélio Abranches
Viotti, S.J. cita os depoimentos dos processos para a beatificação
do missionário e que indicam terem sido cantadas muitas de suas
composições: Baltasar de Horta diz tê-las cantado "sendo moço...,
em companhia de outros, pelas ruas e praças" e João de Sousa Pereira
atesta que Anchieta "lhas dava escritas e as fazia cantar".
Um importante ponto de partida para o estudo histórico-musical
e etno-histórico são as denominações de grupos indígenas que se
encontram nos próprios textos atribuídos a Anchieta. Tendo sido
tais textos em parte cantados durante representações, pode-se
partir do pressuposto que a distinção feita dos grupos indígenas
correspondia a expressões dramatizadas e a elementos estruturais
das representações. Nos textos percebe-se a distinção feita entre
as comunidades indígenas já cristianizadas e os grupos ainda não-cristãos.
Como o contacto com os europeus se processou mais intensamente
no litoral, os grupos que são citados com conotação negativa são
frequentemente aqueles que viviam na serra, no interior ou nele
se refugiaram.
A distinção etnológica fundamenta-se teologicamente: os indígenas
batizados representam o Homem Novo, renascidos, os indígenas arredios,
não-cristãos, o Homem Velho, carnal, cujo interesse é dirigido
às coisas terrenas e que portanto é escravo da matéria ou dos
elementos. Assim, a citação de indígenas não-cristãos é frequentemente
acompanhada de referências a velhos, velhas e a escravos. Sob
esta perspectiva da antropologia teológica é que deve ser entendido,
por exemplo, o termo "tapuia" e as associações que a ele se prendem.
As manifestações musicais e coreológicas dos indígenas não-cristãos
são vistas como expressões do Homem carnal: ele se entrega a excessos
de bebida e à concupiscência, quer ser poderoso e temido, luta,
mata, come carne humana, é também morto e devorado. Os indígenas
renascidos através do batismo, porém, surgem como verdadeiras
crianças em Cristo. A expressão musical desse Homem Novo é a dança
dos meninos índios, prática cheia de simbolismo antropológico-cristão
empregada desde cedo pelos jesuítas e da qual foram salvos textos
atribuídos a Anchieta.
Como o próprio missionário descreve, nela os meninos índios comportavam-se
como crianças portuguesas, apesar de todos os adereços festivos
próprios da região, inclusive arcos e flechas e certamente instrumentos
musicais entendidos no seu aspecto exterior. Assim, já tinham
aprendido a tocar viola, sendo acompanhados por tambor.
A música e a dança como pertinentes ao contexto cultural autóctone
passaram portanto a ser empregadas como indícios de um estado
humano já superado, morto através do batismo. Esse uso de elementos
da cultura musical autóctone não era meramente ilustrativo ou
superficialmente descritivo para fins pedagógicos. Ele deveria
servir ao aumento da alegria dos renascidos; estes, para sentirem
mais profundamente os mistérios festejados, colocavam-se simbolicamente
no passado e reviviviam o Homem Velho, cujo estado deficiente,
visto do ponto de vista dos renovados, surgia como ridículo, hilariante
e, ao mesmo tempo, repugnante.
Para entender-se, portanto, o procedimento utilizado pelos missionários
no emprêgo de elementos musicais e coreográficos indígenas deve-se
partir sempre da situação do Homem Novo renascido pelo batismo.
Com a sua morte e o seu novo nascimento, o cristão recupera o
estado original perdido após a queda de Adão, permanece porém
sempre ameaçado pela concupiscência, que o pode levar a pecar
mortalmente e fazê-lo cair em estado ainda pior do que o do homem
carnal. Para a cura de sua alma conta ele com o remédio do sacramento
da penitência; este representa portanto um instrumento poderosíssimo
de salvação colocado ao poder da Igreja: à compreensão do bem
que dele decorre serviam de modo preferencial as representações
e os folguedos patrocinados pelos jesuítas. A idéia fundamental
é a de que Cristo vem, no presente, em espírito, àqueles que o
amam e que portanto se preparam para a sua vinda. Ele vem como
um noivo para a sua amada. Ao festejar esse mistério, o cristão
rememora a descida de Cristo aos infernos, quando libertou aqueles
justos que se encontravam no seio de Abraão e os conduziu à beatitude.
Através desse procedimento interpretativo, aqui apenas superficialmente
esboçado, explica-se a mistura de nomes indígenas com vultos da
Antiguidade e figuras mitológicas encontradas nos textos anchietanos.
Nesse procedimento tipológico, a música da humanidade carnal -
e também a dos indígenas ainda não-cristãos - somente poderia
ter sido usada para servir à expressão dos personagens "cômicos,
fanfarrões, exageradamente rídiculos" das peças de Anchieta. Uma
aceitação positiva do valor intrínseco da cultura musical nativa
seria uma contradição ao método de interpretação bíblica e da
história da salvação vigente: as música indígena foi empregada,
sim, pelos missionários, mas apresentada como expressão do Velho,
do superado, ao mesmo tempo do morto e daquilo que deveria ser
ridicularizado e suprimido.
A obra de Anchieta documenta a transplantação de folguedos dos
dois ciclos principais de festas ibéricas do ano eclesiástico
para o Brasil. Como na Europa, o período do ano de maior número
de festas populares passou a ser o do Natal e da Epifania, preparado
que é pelo Advento.
Um exemplo do uso de tradições européias da Epifania na sua adaptação
às novas condições é a sua Dança dos Reis, em tupí e em português.
O texto deixa entrever que os meninos índios representavam o caminho
dos magos do Oriente e que provavelmente andavam pelos caminhos
e faziam visitas às casas, como acontece em práticas tradicionais
análogas de várias regiões da Europa. Como os primeiros homens
da humanidade velha, não batizada e escravizada dos elementos,
que através da contemplação do Visível chegaram à compreensão
do Invisível, e adoraram a Cristo nascido em carne, os magos surgem
também como vultos exemplares para os índios. O significado das
tradições dos Reis transplantadas para o Brasil são de particular
importância para o estudo das concepções musicais, pois elas estão
intimamente relacionadas no imaginário tradicional cristão com
o homem que canta, ou seja, o homem que transforma o seu corpo
durante a preparação penitencial do Advento simbolicamente numa
lira.
Tal interpretação mística dos instrumentos musicais era corrente
a Anchieta. Ele se refere ao saltério do corpo e das cordas do
peito; para ele foi a Virgem um instrumento de Deus, da qual primeiramente
o canto e o contraponto se elevaram. Ele compara o irmão Manoel
Álvares, membro da expedição de Inácio de Azevedo, que ao ser
martirizado protestou sua fé a altos brados, a um tambor, uma
interpretação simbólica comum na mística ibérica da época. Também
as flautas citadas no canto dos meninos índios para o recebimento
do P.Costa podem e devem ser entendidas no sentido metafórico
emprestado aos instrumentos musicais.
Do repertório das tradições populares cristãs transplantadas para
o Brasil devem ser salientadas as danças que representavam combates
e que se relacionam do ponto de vista espiritual com a luta que
se desenvolve interiormente no homem e que se manifesta, segundo
S. Paulo, nos seus frutos do espírito e nas suas obras da carne.
A essas danças tradicionais pertenciam os machatins da península
ibérica, que, dançados por índios, surgem explicitamente no texto
de Anchieta para as festas do dia da Assunção em Reritiba. No
contexto das representações tradicionais de lutas e combates podem
também ser incluídos os textos relacionados a São Maurício, padroeiro
da Vila de Vitória. O mártir São Maurício (+280/300), o primicerius
da Legião Tebana, tinha o seu culto relacionado com ordem de cavaleiros,
por exemplo com a Ordem do Tosão de Ouro, dos soldados, dos ferreiros,
sendo representado com armadura a cavalo ou a pé, às vezes como
negro.
Não apenas a estrutura e o sentido das danças e representações
dramáticas, mas também textos e cantos tradicionais ibéricos foram
empregados no trabalho missionário. Um exemplo desse fato é a
peça "O Pelote Domingueiro", provavelmente destinado às festas
de primeiro de janeiro. Na sua linguagem de cunho nitidamente
popular e tradicional, este texto indica a natureza fundamentalmente
tipológica do pensamento teológico e antropológico da época: o
homem que, segundo o primeiro Adão, aspira a bens terrenos e está
sujeito a todo tipo de trabalhos e fadigas, está destinado a tudo
perder; o cristão, ao contrário, segue o segundo Adão, Cristo,
que surge como um verdadeiro capitão na batalha da vida. Correspondente
à comparação contrastante entre Adão e Cristo é o de Eva e Maria,
o que leva imediatamente a conceitos musicais, como o é cantado
em "Prima":
"Es por Eva, la primera, destemplada la canción, que de Dios fuera
compasada. Mas será bien concertada por el virginal tenor de la
madre del pastor."
A partir desses conceitos básicos, fundamentados biblicamente,
salientados pela teologia e pela catequese da época e que seriam
claramente formulados no Catecismo Romano tridentino, deu-se a
estruturação dos folguedos e das representações a serem realizadas
nas horas livres, não destinadas ao culto dos domingos e feriados,
segundo a correspondente tipologia do Homem e da Igreja transmitida
pela tradição. A importância das pré-figurações da Igreja nas
representações anchietanas, tais como a da Arca de Noé, pode ser
deduzida, por exemplo, do conteúdo da Carta da Companhia de Jesus
para o Seráfico São Francisco. A tensão entre os Tipos e os Anti-Tipos
correspondia àquela entre o Velho e o Novo, que marcou fundamentalmente
o trabalho missionário de Anchieta junto aos índios:
"O Pecador e o Menino
Decláranse las figuras
del antiguo testamento,
porque el nuevo mandamiento,
de todas las escrituras
es remate y cumplimiento."
Musik, Projekte und Perspektiven. A.A. Bispo u. H. Hülskath (Hgg.).
In: Anais de Ciência Musical - Akademie Brasil-Europa für Kultur-
und Wissenschaftswissenschaft. Köln: I.S.M.P.S. e.V., 2003.
(376 páginas/Seiten, só em alemão/nur auf deutsch)
ISBN 3-934520-03-0
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