Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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No. 85 (2003: 5)


 

    Entidades promotoras
    Akademie Brasil-Europa
    I.S.M.P.S. e.V./I.B.E.M.: Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes/Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos
    ACDG: Associação Cultural Cante e Dance com a Gente (Novo Hamburgo RS)
    Institut für hymnologische und musikethnologische Studien e.V. (Maria Laach)

    Direção geral
    Dr. Antonio A. Bispo
    Direção Forum RS
    Dra. Helena de Souza Nunes, Rodrigo Schramm

Cantor D.Krahô
Paço Municipal de Joanópolis

© Foto: H. Hülskath, 2002
Archiv A.B.E.-I.S.M.P.S.

 

MARACA E VIOLA
INTERAÇÃO DE SISTEMÁTICA E HISTÓRICA NA ANÁLISE DE MECANISMOS HISTÓRICO-MUSICAIS TRANSFORMADORES DE IDENTIDADES

Discurso no Paço Municipal de Joanópolis
no contexto do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira"
motivado pelo tema da Campanha da Fraternidade "Música na procura de uma terra sem males"

[trechos transcritos da comunicação oral]

Antonio Alexandre Bispo

 

Na sessão de ontem à noite procurei tratar suscintamente das várias dimensões do tema do nosso Congresso de Estudos Euro-Brasileiros e do V° Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", que tem como lema "música na procura de uma terra sem males". Procurei salientar o significado espiritual deste tema, que é o mesmo da Campanha da Fraternidade da CNBB. A terra sem males por excelência é o Paraíso, onde o homem gozava de plena felicidade, paz, tranqüilidade, era soberano sobranceiro em meio a uma natureza intacta, não tinha preocupações, não precisava lutar, não sofria com invejas e nem estava escravizado a insaciáveis e infindos desejos. Segundo a tradição, esse Paraíso bíblico foi fechado ao homem, de lá expulso; a saudade, porém, a procura de uma situação que esteja tão próxima quanto possível dele, ou seja, tão paradisíaca quanto possível, nunca cessou.

Segundo antigas interpretações da Gênese, os mais próximos do Paraíso foram aqueles da família de Seth, o terceiro filho de Adão e Eva, pois, vivendo nas altitudes, longe e separados da agitação mundana, passavam a vida entregues ao canto de louvor, ao canto de categorias espirituais absolutas, ou seja, do Bem, do Bom e do Belo. O resto do gênero humano, porém, descendentes de Caim, vivendo nas regiões baixas, estavam entregues a todas a ganâncias da vida; enriqueciam, sim, construíam cidades e tinham gado, divertiam-se com todo o tipo de música, tendo inventado e construído muitos instrumentos, mas sofriam com violências e assassinatos. A deterioração geral da humanidade começou quando os homens que se mantinham à parte dessa agitação mundana, num estado de espírito quase que paradisíaco, emprestaram os ouvidos às tentações do que vinha de baixo, deixaram-se atrair, desceram e se misturaram. Aí aumentaram as lutas, as guerras, a maldade já não teve limites, e Deus enviou o dilúvio. Somente Noé e os seus se salvaram na arca, como sabemos, elevando-se sobre as águas.

Concepções musicais estão, portanto, intimamente relacionadas com a história da humanidade tanto na tradição bíblica quanto na do mito guarani que dá o lema à Campanha da Fraternidade do corrente ano. Há a música mundana, aquela dos instrumentos da geração de Caim, e o canto daqueles que se encontravam no alto das montanhas, procurando manter um estado de espírito quase que paradisíaco de paz, serenidade, louvor e gratidão.

Na sessão de hoje gostaria de tratar de um aspecto do nosso tema vinculado com essa tradição bíblica e com a narrativa indígena. Como os Senhores sabem, o título completo das nossas sessões de Joanópolis é: "Música na procura de uma terra sem males: culturas musicais indígenas e universo sertanejo." Muitos certamente perguntarão: o que é que tem a ver o relato da deturpação do gênero humano e do dilúvio com o confronto da cultura indígena com o mundo sertanejo? Vou procurar elucidar o sentido do nosso tema com base em dois instrumentos musicais de grande importância para a caracterização da cultura indígena e da cultura de nosso homem do sertão ou do caipira: a maraca e a viola.

A.A.Bispo e Domingos Krahô
© Foto: H. Hülskath, 2002 - Archiv A.B.E.-I.S.M.P.S.
A maraca sempre foi vista por todos os cronistas e missionários como instrumento principal, quase que um símbolo dos indígenas. O termo já aparece no primeiro vocabulário de palavras indígenas coletado durante a viagem de circumnavegação do mundo de Fernão de Magalhães. Alguns dos primeiros viajantes europeus até mesmo julgaram que a maraca seria o ídolo dos indígenas, o núcleo de sua religião. O grande estudioso da maraca e de seu sentido simbólico foi um jesuita francês do século XVIII, Joseph Lafiteau, autor de uma obra fundamental denominada "Os costumes dos selvagens americanos em comparação aos dos primeiros tempos", publicação considerada como marco histórico da Etnologia e até hoje não divulgada no Brasil. Esse erudito, que viveu em missões do Canadá, nunca esteve no nosso país, mas estudou cartas de missionários e todos os relatos que pôde encontrar. O seu objetivo foi não apenas o de comparar elementos da cultura dos indígenas de todas as Américas com dados documentais e arqueológicos da Antiguidade, mas sim provar que havia vínculos entre os povos antigos e os indígenas, e que estes conservavam noções e práticas antiqüíssimas, das origens da humanidade, reveladas por Deus.

Para ele, uma das principais provas dessa Antiguidade era a maraca. Seria errôneo considerá-la apenas como um chocalho. Para Lafiteau, com razão, os instrumentos não deveriam ser classificados segundo a sua aparência ou pelo modo que são tocados, mas sim pelo efeito que produzem na alma do ouvinte. Assim, a maraca, embora sendo um receptáculo cheio de sementes e pedrinhas, que se entrechocam, seria na realidade equivalente a instrumentos com aparência totalmente diversa da Antiguidade. Ela corresponderia, por exemplo, ao antigo Sistro, ou seja um instrumento egípcio em forma de um garfo com lâminas de metal que se entrechocam quando é sacudido. Esse instrumento, símbolo da deusa Isis, a grande deusa Terra, era explicado pelos antigos autores da seguinte maneira:

Os quatro elementos do mundo, fogo, ar, água e terra, precisam sempre estar misturados, para que estejam em contínua dinâmica, proporcionando vida à Terra. Se eles se separam, ou seja, se os elementos leves, o fogo e o ar se separam dos pesados, da água e da terra, subindo às alturas e deixando que os outros dois desçam, então a parte inferior do mundo, onde vivemos, fica gélida e húmida, a vida morre e o homem adoece. É o inverno na natureza, frio e escuro. Por isso, quando a parte do ano ascendente tem o seu início, ou seja, quando os dias passam a ficar mais longos e quentes, levando à primavera e ao renascimento da vida, ter-se-ia, na verdade, uma misteriosa mistura dos elementos, como que uma mão invisível agitasse um sistro cósmico. Por essa razão, de acordo com a lei da simpatia entre o macro- e o microcosmo, sempre aceita na antiga magia, acreditava-se que com o sistro se poderia fazer com que a terra e as pessoas ganhassem nova vida, se tornassem férteis ou superassem doenças. Tal como o fazem os nossos pajés, quando, em sessões de cura, agitam as maracas pelo corpo do paciente.

O principal instrumento da Antiguidade que equivaleria à maraca, segundo Lafiteau, seria o testudo ou chelys, ou seja, a tartaruga ou o jaboti. Esse instrumento nada mais seria do que o casco de uma tartaruga, com restos secos do animal no seu interior e que, agitado, produzia ruídos. Se os Senhores atentarem à ornamentação de muitas maracas, sobretudo nos exemplos conhecidos da cultura Karajá, perceberão que se trata de uma representação de cascos de tartaruga. Também esse aspecto foi percebido por Lafiteau, que entrou em particulares considerações a respeito da simbologia musical desse animal.

A tartaruga desempenhou um papel importantíssimo na história das concepções musicais, porque ela está ligada com o mito da invenção da lira, o símbolo por excelência da música. Dizia-se que foi Mercúrio ou Hermes que encontrou uma tartaruga logo que nasceu e a transformou em caixa de ressonância de um instrumento de cordas, a lira. Com esse novo instrumento, passou a cantar a seu pai, o Deus máximo. Mais tarde, essa lira foi colocada em forma de uma constelação no alto dos céus.

O mais interessante, porém, é que segundo eruditos da época de Cristo, haveria uma correlação entre esse mito e a história bíblica. O correspondente a Mercúrio ou Hermes seria Moisés, pois também ele era fora um guia, um mensageiro, caminhante, um homem da palavra e escritor, pois redigiu os livros sagrados. Ele teria encontrado um casco de tartaruga no Egito, após a inundação do Nilo, dela fazendo uma lira. Esse instrumento de cordas tem, assim, como caixa de ressonância um corpo sêco e esvaziado, limpo, sendo o som produzido pelos tendões e nervos esticados do animal. Aqui se encontra o significado simbólico e espiritual desse instrumento, ou seja, ele equivale ao corpo do homem purificado através do exame de consciência, do arrependimento, do jejum, por assim dizer mortificado, livre dos pesos terrenos, transformado em caixa de ressonância para que as fibras da alma possam ressoar, nele nascendo um novo canto. É compreensível, portanto, que nas tradições cristãs, a constelação da lira tenha sido vista como símbolo da mangedoura de Belém, pois foi esse berço de palhas sêcas que acolheu o menino Deus, o Logos encarnado. Por essa razão temos até hoje nos nossos autos natalinos, nos presépios do Nordeste, a dança da Lira.

Há, portanto, uma íntima correlação mas também uma profunda diferença entre o casco de tartaruga que produz ruídos quando agitado e o casco de tartaruga transformado em caixa de ressonância de um instrumento de corda. O primeiro corresponde, segundo a lei da simpatia, à necessária agitação dos elementos da matéria para que haja vida, fertilidade, frutificação, crescimento, ou seja, bens desejáveis na vida terrena e os únicos bens almejados por povos não renascidos para o mundo que não é desse mundo. O segundo instrumento, porém, diz respeito ao canto do coração em corpo purificado, ou ao canto espiritual dos renascidos ou renovados, a Nova Canção, que soa quando o homem se percute.

É compreensível, portanto, que uma das preocupações dos missionários dos séculos XVI e XVII, que ainda conheciam bem a linguagem simbólica das tradições, o que não mais o caso hoje, em geral, tenham tido a preocupação de substituir a maraca que tanto servia para atividades de cunho mágico dos pajés por violas e outros instrumentos de corda. Não se tratava, na verdade, de extinção da maraca, mas sim de colocá-la no seu devido lugar, assim como os bens materiais, a fertilidade, a saúde, o crescimento terreno permanecem desejáveis durante a nossa vida terrena, embora não devendo ser os mais altos bens a serem almejados. É significativo, assim, que entre os Guaranis, tão profundamente cristianizados no século XVII, a viola ou o violão surgem como instrumentos de percussão e se denominem de mbaraca. Também é compreensível que as nossas violas - e instrumentos de corda percutidas de outros países latino-americanos - sejam até hoje às vezes feitos com cascos de animais semelhantes à tartaruga, por ex. o tatu.

Essa simbologia e esse método missionário favoreceu certamente o extraordinário desenvolvimento de uma cultura musical da viola, com ou sem o tapete de fundo dos chocalhos, uma cultura musical profundamente vinculada a valores do coração e do espírito. Há, portanto, uma espiritualidade da música de viola, uma espiritualidade da cultura sertaneja que é digna de ser estudada e aprofundada, e essa espiritualidade não pode ser desvinculada daquela da simbologia da maraca.

Eu vejo, portanto, Senhoras e Senhores, nesse profundo interrelacionamento simbólico dos dois instrumentos, não hipotético, mas vivo nas nossas próprias expressões culturais, um caminho esperançoso para um relacionamento mais profundo e menos conflitante entre as culturas indígenas e o seu mundo envolvente, que é em geral o sertanejo.

(...)

Alguns textos dos anais do Congresso foram publicados em:/Einige Texte der Annalen des Kongresses wurden veröffentlicht in:
Musik, Projekte und Perspektiven. A.A. Bispo u. H. Hülskath (Hgg.).
In: Anais de Ciência Musical - Akademie Brasil-Europa für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft. Köln: I.S.M.P.S. e.V., 2003.
(376 páginas/Seiten, só em alemão/nur auf deutsch)
ISBN 3-934520-03-0

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