Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006
nova edição by ISMPS e.V.
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No. 84 (2003: 4)
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Participantes do Exterior no Congresso de Estudos Euro-Brasileiros 2002-Sessão Joanópolis © Foto: H. Hülskath, 2002 Archiv A.B.E.-I.S.M.P.S. |
"MÚSICA NA PROCURA DE UMA TERRA SEM MALES"
Discurso de abertura da segunda parte do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros 2002 e do IV Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" no Interior Paulista
[trechos transcritos do discurso gravado]
Antonio Alexandre Bispo
É com grande prazer que dou as boas vindas a todos nesta casa
que abriga o Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos. É
uma grande honra contarmos com a presença de tantos amigos do
Exterior e do Brasil nesta pequena recepção de abertura da segunda
fase do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros 2002 e do V° Simpósio
Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira.
A nossa gratidão vale, em primeiro lugar, ao Exmo. Sr. Prefeito
da Estância de Joanópolis, Dr. Ari Cardoso, que desde os nossos
primeiros contactos sempre nos assegurou todo o apoio da municipalidade
para a realização do evento nesta encantadora cidade. No decorrer
da preparação do Congresso fomos obrigados, por motivo de força
maior, modificar datas e programações, causando certamente transtornos,
pelos quais lamentamos. Apesar de tudo, o Dr. Ari Cardoso e seus
colaboradores mantiveram a sua boa vontade e a disposição de em
tudo colaborar, pelo qual somos especialmente gratos. Gostaria
de passar-lhe a palavra, Sr. Prefeito.
(...)
Antes de dizer algumas palavras introdutórias a respeito do tema
específico do nosso evento em Joanópolis, gostaria de brevemente
expor a razão pela qual realizamos o Congresso de Estudos Euro-Brasileiros
e o V° Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira,
traçando em breves linhas o histórico das organizações estreitamente
ligadas com este nosso centro de estudos em Joanópolis.
Esse nosso Instituto remonta ao Centro de Pesquisas em Musicologia
constituído e registrado em S. Paulo, em 1968, por uma sociedade
denominada Nova Difusão Musical. Esse Centro realizou numerosas
viagens de pesquisas, conferências, concertos e festivais. Deu
origem a uma organização internacional, o Instituto de Estudos
da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa, o primeiro do
gênero, criado em 1985, na Alemanha, um ano que tinha sido declarado
"Ano Europeu da Música" pela Comunidade Européia. O objetivo dessa
instituição é o estudo da cultura musical de países e comunidades
de língua portuguesa de todos os continentes, ou seja, não apenas
o Brasil, mas sim Portugal, Angola, Moçambique, Guinea-Bissau,
S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Goa, Macau, Timor e outras regiões.
Em 1993, fundou-se então, para representá-lo no Brasil, o Instituto
Brasileiro de Estudos Musicológicos, abrigado nesta Casa.
Estes institutos estão vinculados a uma organização de escopo
mais amplo e de mais antiga história, a Akademie Brasil-Europa
de Pesquisa da Cultura e da Ciência. Ela remonta a ideais surgidos
em grupos de alemães e russos na Ucrânia de fins do século XIX
e que levaram à formação de uma academia em Salzburg, em 1920,
depois transferida, em 1928, para Atenas e, posteriormente para
o Brasil, mais exatamente para Bragança Paulista.É uma história
fascinante que teremos a oportunidade de relatar na sessão de
domingo, a ser realizada em Bragança. Nesta nossa sessão, apenas
saliento que esses ideais foram revitalizados e atualizados entre
1989 e 1991, quando o seu mentor, Martin Braunwieser, esteve pela
última vez no seu país natal, a Áustria. O centro de estudos europeu
da Akademie em Colonia foi inaugurado em 1997.
A primeira parte do nosso evento realizou-se no Rio Grande do
Sul. Alí ele foi organizado e efetivado pela Associação Cultural
Cante e Dance com a Gente, uma entidade idealizada e coordenada
pela Profa. Helena de Souza Nunes.
(...)
O tema do nosso evento em Joanópolis é "Música na procura de uma
terra sem males". A escolha desse tema foi motivada pela Campanha
da Fraternidade da CNBB do corrente ano, dedicada ao tema "Fraternidade
e povos indígenas". A frase que a CNBB utiliza para essa campanha
- "à procura de uma terra sem mal" - foi marcada sobretudo pelas
pesquisas de um grande vulto da etnologia brasileira, Curt Unkel
Nimuendaju, um europeu que como poucos brasileiros não apenas
contribuiu para o desenvolvimento dos estudos etnológicos, para
a sua divulgação no Exterior, sendo um dos principais fornecedores
dos museus europeus com materiais indígenas, como procurou também
assumir a perspectiva indígena e indigenizar-se no seu próprio
nome e ser. A ele vale, hoje, a nossa homenagem. A expressão diz
respeito a um mito do povo guaraní e que reflete uma concepção
de natureza básica para a psique e para a existência desse povo,
fundamentando, pelo que tudo indica, não apenas a sua cosmovisão
como também a realidade de uma tendência imigratória de longínquas
regiões do Paraguai à Mata Atlântica do nosso litoral.
Partimos, assim, dessa assim chamada lenda guaraní e que é a base
do lema da Campanha da Fraternidade e do nosso evento aqui em
Joanópolis. Ela assim conta:
"Quando Nhanderuvuçu (nosso grande Pai) resolveu acabar com a
terra, devido à maldade dos homens, avisou antecipadamente Guiraypoty;
o grande pajé, e mandou que dançasse. Este obedeceu-lhe, passando
toda a noite em danças rituais. E quando Guiraypoty terminou de
dançar, Nhanderuvuçu retirou um dos esteios que sustenta a terra,
provocando um incêndio devastador.
Guiraypoty, para fugir do perigo, partiu com sua família, para
o Leste, em direção ao mar. Tão rápida foi a fuga, que não teve
tempo de plantar nem de colher a mandioca. Todos teriam morrido
de fome, se não fosse seu grande poder que fez com que o alimento
surgisse durante a viagem.
Quando alcançaram o litoral, seu primeiro cuidado foi construir
uma casa de tábuas, para que, quando viessem as águas ela pudesse
resistir. Terminada a construção, retomaram a dança e o canto.
O perigo tornava-se cada vez mais iminente, pois o mar, como que
para apagar o grande incêndio, ia engolindo toda a terra. Quanto
mais subiam as águas, mais Guiraypoty e sua família dançavam.
E para não serem tragados pela água, subiram no telhado da casa.
Guiraypoty chorou, pois teve medo. Mas sua mulher lhe falou:
- Se tens medo, abre teus braços para que os pássaros que estão
passando possam pousar. Se eles sentarem no teu corpo, pede que
nos levem para o alto.
E, mesmo em cima da casa, a mulher continuou batendo a taquara
ritmadamente contra o esteio da casa, enquanto as águas subiam.
Guiraypoty entoou então o nhengaraí, o canto solene guaraní. Quando
iam ser tragados pela água, a casa se moveu, girou, flutou, subiu...subiu
até chegar à porta do céu, onde ficaram morando.
Esse lugar para onde foram chama-se Yvy-marã-ei (a terra sem males).
Aí as plantas nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada
em farinha e a caça chega morta aos pés dos caçadores. As pessoas
nesse lugar não envelhecem nem morrem e aí não há sofrimento."
Nessa narração fica evidente o papel da música. O grande pajé
dança segundo ordem do Grande Pai, e quando ele acaba as danças
rituais inicia-se o incêndio devastador. Quando construiu a casa
de tábuas retomou a dança e o canto, continuando a dançar enquanto
as águas subiam, e a sua mulher percutia ritmicamente o esteio
da casa. Quando o pajé entoou o canto solene guaraní, o nhengaraí,
a casa elevou-se, chegando até à porta do céu.
Não há dúvida, portanto, que a música precisa ser considerada
na interpretação do lema que a CNBB escolheu para a Campanha da
Fraternidade do corrente ano. Como compreender, porém, o seu papel
no enrêdo narrado e como interpretar essa lenda tão significativa
para o povo guaraní?
Em primeiro lugar, deve-se salientar que a discussão a respeito
da interpretação adequada dessa narração não é recente. Muitos
estudiosos constataram a similaridade com a história do dilúvio
segundo o livro bíblico da Gênese. Outros, porém, atentaram a
pormenores que não constam do texto bíblico, tais como as referências
ao incêndio e, sobretudo à música. Seria a narração guaraní um
produto indigenizado da antiga missão cristã ddos Jesuítas dos
séculos XVII e XVIII? Seria ela apenas reflexo de uma coincidência
de concepções, comuns ao mundo indígena e à tradição bíblica?
De fato, já os primeiros cronistas, por exemplo Jean de Lery,
teólogo huguenote que esteve no Rio de Janeiro em meados do século
XVI, constataram a existência da idéia de um dilúvio universal
entre os índios. Para ele e para muitos missionários, era essa
lembrança do dilúvio um dos poucos elementos que tinham restado
de um suposto trabalho apostólico nos primeiros anos da história
cristã ou mesmo de uma revelação divina original feita a todo
o gênero humano.
Não podemos ocupar-nos com essa questão nesta nossa sessão. O
que vamos fazer, porém, é tentar comparar mais precisamente a
narração indígena com o texto bíblico, pois as diferenças entre
os dois textos desaparecem quando este não é considerado apenas
superficialmente segundo o significado exterior das palavras,
mas sim no seu sentido mais profundo. Para que esta interpretação
do história bíblica do dilúvio não seja arbitrária, precisamos
basear-nos em antigas exegeses.
Escolhi para esta comparação um texto pouco conhecido no Brasil,
o documento intitulado "A gruta do tesouro", de um escritor da
escola de S. Efraim, um sírio dos primeiros anos da era cristã,
uma fonte que encerra várias tradições orais de origem hebraica.
Essa "gruta do tesouro" seria aquela na qual estariam escondidos
os tesouros do Paraíso.
Escolhi este texto porque ele deixa evidente a relação entre a
música e o aumento da maldade da humanidade anti-diluviana, o
que causou a grande inundação. Muitas vezes se esquece, quando
se trata da origem da música segundo a Bíblia, onde aparece pela
primeira vez na menção da invenção de instrumentos musicais por
Jubal e Tubal, que esses dois primeiros construtores de instrumentos
pertenciam à geração de Caim. Assim, mesmo em enciclopédias musicais
e livros de autores com conhecimentos teológicos depara-se com
uma singular interpretação positiva do fato de até mesmo o texto
sagrado citar instrumentos musicais, derivando-se a própria palavra
"júbilo" do nome do seu inventor, Jubal. Esquece-se, assim, que
a genealogia desses inventores de instrumentos musicais provinha
de Caim, o assassino do próprio irmão por inveja, amaldiçoado
em viver sempre errante. Era esse filho de Adão e Eva um agricultor,
ou seja, um homem voltado à terra e ao terreno, um homem que construiu
cidades, fundou uma estirpe que se enriqueceu, adquiriu gado e
produziu instrumentos de metal. A música que entre eles se originou
não poderia, portanto, ser outra do que a de uma sociedade voltada
ao mundo exterior, terreno. Completamente diversa era a estirpe
do terceiro filho de Eva, aquele que veio a substituir o assassinado
Abel. Este mantinha-se em contínua contemplação e louvor , assim
como a sua descendência. A história da deturpação total da humanidade
iniciou-se quando esses contemplativos desceram dos altos e se
misturaram com os cainitas. O interessante para nós, nesse processo,
é que é à música que é dado um papel preponderante nessa queda
dos contemplativos. Vejamos, abreviadamente, o relato do documento
que escolhemos:
No capítulo 11, que trata da deturpação geral do gênero humano,
o autor diz o seguinte:
"Naqueles anos apareceram mensageiros do mal e discípulos de Satanás,
que era o seu mestre. Ele entrou neles e neles morou, e fêz com
que através deles atuasse o êrro que levaria à queda dos filhos
de Seth. Jubal e Tubalcaim, dois irmãos, filhos de Lamech, o cego,
que tinha matado Caim, fizeram todo o tipo de música. Jubal fêz
flautas, cítaras e pífaros. Neles entraram os demônios e ali moraram.
Quando eram tocados, os demônios soavam das flautas, quando as
cítaras eram tocadas, então eles delas cantavam. E Tubalcaim fêz
címbalos, crótalos e tambores. E assim aumentou a ruindade dos
filhos de Caim e eles não tinham outra ocupação do que seguir
os prazeres terrenos. Eles não faziam mais jus a seus deveres
e não tinham comando nem guia. Entre eles dominava apenas o desejo
de comer, beber, de fartar-se, de embebedar-se, de dançar, cantar
e rir sem beiras, ou seja, de rir o riso demoníaco que dá paz
aos demônios. E Satanás alegrava-se por ter encontrado um modo
de fazer com que o mal agisse, pois através desse meio conseguiu
ele que os filhos de Seth descessem da montanha sagrada. Diferentemente
das hordas decaídas, eles tinham até então servido a Deus e eram
por Ele amados, eram honrados pelos anjos e chamados filhos de
Deus, assim como David deles fala: Eu disse a Vós que sois deuses
e filhos do Altíssimo."
O documento prossegue: "O diabo tornou-se, assim, o líder da situação.
Os homens tocavam as flautas com alarido e as cítaras sob a ação
dos demônios, assim como os tambores e os crótalos sob a influência
dos maus espíritos. O barulho dos risos e alaridos subiu pelos
ares e foi ouvido no alto da montanha sagrada. Quando os filhos
de Seth ouviram o ruído portentoso e o riso que vinham da terra
de Caim, reuniram-se 100 varões e resolveram descer até os baixos
dos Cainitas."
No capítulo 14, o documento trata de Noé:
"De todos os filhos de Seth, apenas três patriarcas ficaram no
monte do triunfo: Matusalém, Lamech e Noé, todo o resto tinha
descido à região dos filhos de Caim. Quando Noé viu que os êrros
eram grandes na sua gente, manteve pureza de alma por 500 anos.
Deus falou então com ele e lhe disse: Case com Haikal, filha de
Namos e neta de Henoch, o irmão de Matusalém! E Deus fêz a ele
a revelação do Dilúvio que pretendia enviar. E Deus disse a ele:
Em 130 anos vou causar um dilúvio. Construa uma caixa para a salvação
dos filhos de tua casa. Mas faça-a lá embaixo, na região dos filhos
de Caim! A madeira, porém, deve ser cortada no monte santo! (...)
Faça também um sino de madeira de ébano, que não seja comido por
cupins! O seu comprimento seja três braças e a sua largura uma
e meia! Dela deve pender uma baqueta! Você deve tocar nela três
vezes por dia, uma de manhã, para que os operários se reunam para
construir a arca, uma à hora do almoço, para que comam, e uma
à noite, para que vão descansar! Ouvem eles o som do sino, assim
que Você o tocar e perguntarem: O que é o que Você está fazendo?
Então diga a eles: Deus vai mandar uma grande inundação. E Noé
fêz o que o Senhor lhe ordenou.
No capítulo 15, o texto descreve a descida de Noé para a região
próxima ao mar. Ele diz:
"Matusalém viveu 960 anos, então chegou o dia de sua morte. Vieram
a ele Noe, Sem, Cham e Jafé com as suas mulheres (...) Matusalém
disse: Tome a sua mulher, os seus filhos e as mulheres de seus
filhos e desça desta montanha! Você deve morar com os seus filhos
na parte oriental da arca, a tua mulher e as mulheres dos seus
filhos na ocidental! As suas mulheres não devem vir para o lado
de Vocês, nem Vocês para o delas. Vocês não devem comer e beber
com elas e também não dormir com elas até que saiam da arca. Pois
essa geração chamou a ira de Deus e eles não são dignos de serem
vizinhos ao Paraíso e de entoarem cantos de louvor com os anjos.
(...) Sirva a Deus na Arca de modo puro e santo todos os dias
de tua vida. Todo o sacrifício deve ser colocado no Oriente."
No capítulo 19, o texto descreve expressivamente os acontecimentos
do dilúvio. "A arca levantou-se com a grande força das águas da
terra, e todos os homens se afogaram, assim como os animais selvagens,
os pássaros, o gado, os répteis, enfim, tudo o que estava sobre
a terra. E a água do dilúvio levantou-se acima de todos os cumes
das mais altas montanhas. A corrente aumentava e a água fêz com
que a arca se levantasse, até atingir as fronteiras do Paraíso.
Quando as águas alcançaram os limites do Paraíso, foram purificadas
e abençoadas, voltando-se para baixo, para destruir toda a terra.
E a arca voava com asas de vento sobre as águas, atingindo um
local de paz no sétimo mês, ou seja, no dia 17 Tschri, na montanha
Kardo. Então Deus fêz com que as águas se dividissem. As superiores
foram para o seu lugar nos céus, de onde tinham vindo, as águas
de baixo, que haviam subido da terra, retornaram para as profundezas.
Sobre a terra restaram só as águas que desde o início, sob a ação
de Deus, tinham sido deixadas para a necessidade dos homens.(...)
Noé abriu a janela oriental da arca e soltou um corvo, para que
ele lhe trouxesse uma mensagem. Ele voou e não mais retornou.
Quando as águas baixaram ainda mais, soltou uma pomba; ela não
encontrou lugar para pousar e voltou para a arca. Depois de sete
dias enviou ele outra pomba. Ela retornou com um ramo de oliveira.
Essas pombas representam os dois testamentos. No primeiro, o Espírito
de Deus que falou pelos profetas ao povo que o irou não encontrou
lugar para pousar. No segundo, porém, pousou tranqüilamente nos
povos pela água do batismo."
Não podemos naturalmente entrar em pormenores na interpretação
dessa narração, de natureza quase que folclórica da Antiguidade.
O que nela me parece particularmente importante é a maneira impressionantemente
expressiva com que deixa claro o vínculo entre a música dos cainitas
no aumento da maldade do gênero humano, pois é ela que surge com
veículo para a sedução e queda dos filhos de Deus, cuja música
até então consistia apenas no canto de louvor. Foi a música do
amaldiçoado Lamech que acendeu o fogo dos desejos terrenos, ou
seja, o da gana, o da volúpia do poder e de dominação, trazendo
lutas, infelicidade e guerra. Há portanto também no relato bíblico,
ainda que no sentido metafórico, o terrível incêndio de que fala
a tradição indígena.
As similaridades, ou melhor, a correspondência absoluta de sentidos
da narrativa indígena com aquela da Bíblia é evidente. Se o pajé
desceu do Paraguai ou Mato Grosso ao litoral, também Noé dirigiu-se
à beira do mar, a leste. Se o pajé passava a noite por ordem de
Nhanderuvuçu em danças rituais, também Noé, como os demais Setitas,
passava o seu tempo em pureza de alma e cantos de louvor.
Não pretendo sugerir, obviamente, que os indígenas tenham conhecido
esta fonte da Antiguidade. O trabalho missionário entre os indígenas
foi porém muito mais profundo no passado do que se imagina e a
forma de interpretação do sentido oculto dos textos bíblicos,
a necessidade de transmití-los por imagens levavam os neófitos
a viverem o seu conteúdo e dominá-lo de tal forma que poderiam
recriá-lo em pormenores, adaptando-o a novas situações e circunstâncias,
sem prejudicar a sua essência. Hoje, infelizmente, perdemos em
geral a chave da interpretação do sentido oculto, místico dos
relatos bíblicos - lê-se em geral o texto do Antigo e do Novo
Testamento apenas no sentido literal das palavras, como se se
tratasse de uma lista telefônica. As tradições da nossa religiosidade
popular e também aquela dessa narração indígena do dilúvio representam,
assim, um patrimônio de valor incalculável para a nossa vida cultural
e espiritual, pois abre caminhos para a compreensão de significados
e sabedorias perdidas.
Na narração guaraní do nosso lema e no relato bíblico do dilúvio,
portanto, a música surge em duas formas. Na bíblia, é a música
dos cainitias, a dos instrumentos dos demônios e aquela dos setitas,
a do canto do louvor. Essa distinção não diz respeito apenas à
diferença entre a música instrumental e a música vocal. Essa distinção
seria superficial demais. Trata-se aqui de música no sentido metafórico
do termo, ou seja, as ondas que saem de uma sociedade entregue
totalmente à gana, aos desejos de ganho, de domínio, de superação,
levando à violência e às guerras, desencadeando incêndios. A outra,
também no sentido figurado do termo, da é o canto da alma daqueles
que louvam as qualidades do Absoluto e que vivem próximos ao Paraíso,
longe das tribulações e desejos terrenos. Temos aqui, portanto,
nesse lema, uma questão não de música no sentido exterior do termo,
de realidade acústica, audível, mas sim de conhecimento, de saber,
de sabedoria, também e sobretudo de uma ciência do coração, e
é por isso que esse nosso tema, "música na procura de uma terra
sem males", ou seja, "música na procura do Paraíso" ou de um estado
no qual o homem desfrute de condições quase que paradisíacas,
faz sentido para uma Academia que se dedica não só à pesquisa
da cultura, mas sim também à pesquisa da própria ciência. O nosso
tema, portanto, tem várias dimensões. Ele pode ser estudado do
ponto de vista etnológico, ele pode abrir caminhos para a interpretação
de expressões do no folclore, ele pode ser considerado sob o ponto
de vista teológico, ele pode servir para reflexões de cunho sociológico,
teórico-científico e filosófico, sobretudo ético no estudo do
próprio relacionamento entre pesquisadores.
Resumindo: O Paraíso, onde o homem vivia sem trabalhar, em paz
e serenidade, sem doenças e sem morte,foi perdido. O homem, porém,
tem sempre o desejo de viver em estado tão próximo possível desse
paraíso, ou seja, próximo às suas fronteiras, nas alturas. Ele
poderia alcançar esse desejo, segundo as tradições comentadas,
se dedicar-se à contemplação de valores absolutos, relativos a
categorias ideais do Bem, do Bom e do Belo, delas falando, ou
melhor cantando, e esses frutos do espírito constituem a verdadeira
música. Para a sociedade, é necessário que haja essa esfera contemplativa
da cultura, é necessário que haja homens que se dediquem ao estudo
a partir dos mais altos critérios, quase que como guardiães de
uma sabedoria não perecível, como o pajé do mito indígena que
continuava a praticar as suas danças rituais no alto da casa,
na terra sem males.
Espero que possa ter elucidado o sentido do nosso Congresso e
sobretudo do nosso Simpósio de Música Sacra e Cultura Brasileira
e, com isso, introduzido os nossos trabalhos. Se há um lugar adequado
para reflexões a respeito de uma terra sem males, esse é Joanópolis,
cidade encantadora que mantém como poucas a riqueza de uma sabedoria
consuetudinária.
Agradeço a todos pela atenção com que seguiram o desenvolvimento
da minha argumentação.
Musik, Projekte und Perspektiven. A.A. Bispo u. H. Hülskath (Hgg.).
In: Anais de Ciência Musical - Akademie Brasil-Europa für Kultur-
und Wissenschaftswissenschaft. Köln: I.S.M.P.S. e.V., 2003.
(376 páginas/Seiten, só em alemão/nur auf deutsch)
ISBN 3-934520-03-0
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