Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 56 (1994: 6)


 

Viagens, Descobrimentos e Conhecimento

Colóquio Internacional

Anthropos ludens

Questões de Conhecimento relacionadas com a

Música e dança no culto de São Gonçalo de Amarante

Joanópolis e Ubatuba

24 a 28 de setembro de 1998
dir. A. A. Bispo

Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos
ISMPS/Akademie Brasil-Europa
Sociedade Brasileira de Antropologia da Música
Comissão dos Descobrimentos de Lagos

sob o patrocínio da
Prefeitura e Câmara Municipal de Joanópolis
Prefeitura de Ubatuba - FUNDART

 

MESA REDONDA

Ubatuba, 29 de setembro de 1998

Breve relato com base em notas estenografadas
por A. Balmori e B. Basto da Silva

 

Como introdução à sessão, ouviram-se duas gravações realizadas no âmbito de pesquisas de campo. A primeira foi realizada por um aluno de Niomar de Souza Pereira em Mussaca, em 1984; a segunda, foi feita por Suely Brígido durante as festas do dia de Reis de Laranjeiras, Sergipe, em Janeiro de 1986.

A Profa. Beatriz Basto da Silva fêz um relato da sua visita a Amarante como preparação à sua participação no Colóquio. Ali recolheu alguma documentação junto ao pároco. Recolheu também documentação referente a eventos acontecidos no "Dia de Portugal". Também no Livro sobre Descobrimentos, publicado pelo Círculo de Leitores, encontrou materiais de importância, tais como o compromisso da irmandade de São Gonçalo, compromisso das Misericórdias, etc.. Uma obra que lhe pareceu de particular significado foi o livro a respeito da exposição de simbologia. Salientou dois ex- votos de São Gonçalo que pertencem à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Mencionou vários milagres acontecidos, tais como salvamento de naufrágio e de ataques de índios no Brasil. Na Igreja de São Gonçalo de Amarante há ex -votos que necessitariam estudos pormenorizados. Também relatou que em Portugal se está muito aquém da situação dos estudos efetuados no Brasil. Os estudos realizados durante o Colóquio mostram que a Igreja atrofiou esse culto em muitas de suas expressões. Foi o povo que manteve o essencial e graças a ele é que a tradição pode ser conservada.

A seguir, associou o que constatou no Brasil com observações realizadas em Malaca. Também no Oriente alguns círculos populacionais permaneceram isolados através dos séculos por não terem riqueza, sendo esquecidos e ficando fora da ação de medidas colonizadores. Graças a isso, são hoje uma referência e justificam a frase: "Malaca, onde tudo começou". São os habitantes que falam o "papiá cristão", um português do século XVI. Fenômenos semelhantes são aqueles ocorridos em Macau e em Cabo Verde. Todos falam uma língua muito próxima à língua portuguesa do século XVI.

Em Amarante todos ficarão muito gratos se, a partir dos conhecimentos obtidos no Colóquio, tomarem conhecimento do valor simbólico dessas expressões tradicionais não mais existentes em Portugal.

A Profa. Zuleika de Barros salientou, na sua intervenção, os elementos espontâneos da forma de culto praticada no Brasil. Essa espontaneidade somente pode ser entendida a partir de fatores sociais específicos. Coloca-se aqui naturalmente a questão do isolamento dos grupos que o praticam, um isolamento que está sendo superado pela influência dos meios de comunicação. Essa modernização da vida coloca problemas para a preservação de formas de culto relacionadas com São Gonçalo.

Antonio Alexandre Bispo lembrou, aqui, que a questão da espontaneidade diz respeito a concepções de folclore desenvolvidas por Rossini Tavares de Lima. Segundo a sua teoria, em breves palavras, a cultura espontânea seria distinta da cultura erudita, da cultura popular (popularesca) e da cultura de massas, ou seja, poderia ser caracterizada por uma certa independência das influências normativas exercitadas pela educação formal das escolas, pela ação da Igreja etc. Esse peso dado à espontaneidade na teorização da cultura segundo Rossini Tavares de Lima ainda não foi suficientemente refletido teoricamente, dando margens certamente a considerações de grande valor para o desenvolvimento conceitual e metodológico dos estudos culturais. Deve-se salientar, porém, com relação à dança no âmbito do Culto de São Gonçalo, assim como em muitas outras expressões do catolicismo popular, que esse interesse pelo aspecto da espontaneidade na cultura não deveria levar a mal-entendidos com relação ao próprio sentido e à estrutura básica das formas de expressão festivo-religiosas. Altamente sistematizadas e coerentes nas relações existentes entre forma exterior e sentido intrínseco, - embora não-entendido hoje por teólogos e pesquisadores - tais expressões festivas não podem ser consideradas como essencialmente "espontâneas" e não surgiram, certamente, de processos espontâneos na população. São até mesmo baseadas em estrutura interna solidamente enraizada em conceitos bíblicos e que necessitam ser compreendidos a partir de hermenêutica adequada, ou seja, a partir de perspectivas conceituais da Idade Média e que levaram à formação dessas tradições ou à cristianização de formas mais antigas existentes.

São esses conceitos bíblicos que oferecem subsídios essenciais para a compreensão de conceitos até hoje considerados como singulares e até mesmo absurdos do Culto a São Gonçalo. Assim, o fato de que o S. Gonçalo é "casamenteiro de velhas", crença expressa em versos conhecidos em Portugal, no Brasil e na Índia, somente pode ser entendido a partir da oposição entre o "Velho" e o "Novo" próprio da visão teológica cristã e que está à base da antinomia "Velho Testamento"/"Novo Testamento", "Velha Aliança"/"Nova Aliança", "Homem Velho"/"Homem Novo", etc. Esses conceitos, fundamentais à Antropologia Cristã foram já tratados por A. A. Bispo várias vezes em conferências e publicações e já pormenorizadamente elucidados nas sessões privadas que precederam às sessões públicas do Colóquio. Foi com base nesses conceitos, que teve a oportunidade de conhecer durante a sua estadia no ISMPS, na Alemanha, é que a Profa. Suely Brígido pode, como ficou demonstrado na sessão dessa manhã, desenvolver o seu tão valioso estudo a respeito da concepção da "mulher velha" nas tradições de São Gonçalo.

Deve-se lembrar aqui a dança dos velhos, a figura da velha em diversas tradições européias e brasileiras, tais como na "serração da Velha". A antinomia "Velho-Novo" vale também para as expressões de cunho místico ou mágico, onde se conhece, por exemplo, "Xangô Velho" e "Xangô Novo". Trata-se, assim, de uma aspecto essencial da Antropologia cristã e que se expressa de forma evidente na tradição oral relacionada com São Gonçalo. Essa antinomia do Velho/Novo somente pode ser compreendida a partir da visão própria da antiga hermenêutica bíblica vigente na Idade Média e na época do início da catequese no Brasil e que era fundamentada na oposição de Tipos e Anti-Tipos. O Homem Velho é, nessa Antropologia, segundo a elucidação paulina, o homem carnal, ligado ao mundo externo, perceptível pelos sentidos, enquanto que o Homem Novo é o homem renascido pelo batismo e renovado continuamente pelo sacramento, o que pressupõe a preparação, a contrição e a penitência. É nesse âmbito que deve ser entendida teologicamente a Dança de São Gonçalo.

Uma chave para a compreensão de muitos aspectos aparentemente ininteligíveis de expressões populares pode ser encontrada na consideração de que o Homem Velho (ou o Homem Novo que se comporta como Velho), que é carnal, materialista, ambicioso, duro de coração, torna-se ridículo. Assim se explica o caráter quase sempre grotesco de muitas de nossas expressões populares da cultura. Nas festas do calendário religioso, praticadas fora do culto, para que o tempo de guarda seja passado em "sãs" diversões, os cristãos se colocam na posição do Homem Velho, vivenciando por assim dizer a comédia humana e compenetrando-se assim, de forma quase sempre inconsciente, da visão do mundo e do homem do Cristianismo.

(...)

A Profa. Zuleika de Barros confirmou essas elucidações dando o exemplo do "Moçambique de saias", da Congada, da luta de mouros e cristãos. Essas e outras expressões fazem parte do patrimônio católico constituído pelas formas de lazer dos dias de festa da Igreja.

O Prof. Bispo salientou que: Nessa temporalidade das festas relacionados com o ciclo do ano deve-se porém sempre considerar que a presença do eterno, pois são expressões da fé religiosa onde Deus é a-temporal e o eterno presente. O Eterno manifesta-se, aqui, no tempo. Assim, a antiga hermenêutica partia sempre da ordenação intrínseca do relato bíblico, da estrutura interna do Velho e do Novo Testamento. Lembra-se aqui que o próprio Apóstolo Paulo diz que a história de Abraão, Isaac e Ismael deve ser compreendida em sentido alegórico. É nessa alegoria que se deve ser procurado o fundamento de nossas tradições de lutas, tais como a dos combates de cristãos e mouros e moçambiques.

(...)

A Profa. Kilza Setti lembrou de vínculos com expressões culturais da Lombardia.

Intervenindo, o Prof. Jorge Raposo salientou que, todavia, não se tem certeza se São Gonçalo realmente existiu. Tudo pode ter sido resultado de uma coincidência com São Gonçalo de Galiza. Tratar-se-ia antes de um produto da tradição oral.

A Profa. Kilza Setti referindo-se à intervenção de Jorge Raposo, salientou que, ao lado de mecanismos de folclorização, há também o processo de surgimento paralelo de fenômenos. Esse fato ela pôde observar também nas suas experiências com os indígenas.

O Prof. Bispo salientou portanto, mais uma vez, que, na sua opinião, expressões culturais que são evidentemente relacionadas com o Ano litúrgico ou com santos católicos, como é o caso da de São Gonçalo, devem ser estudadas a partir de um sistema apropriado de conceitos e métodos, e esse é o da hermenêutica vigente no passado, à época da constituição ou da implantação dessas tradições no Novo Mundo. Deve-se sempre partir da visão tipológica, paradigmática adequada, pois senão não se estuda essas expressões culturais adequadamente.

O Prof. Jorge Raposo salientou, porém, que o Positivismo teria um enfoque diferente.

(...)

O Prof. Bispo referiu-se aos vínculos existentes entre os tipos e anti-tipos bíblicos com as constelações celestes. Esse vínculo seria de fundamental significado para a compreensão da linguagem visual das expressões religiosas populares. (...) Esse vínculo com o céu estrelado deve ser também considerado sob o pano de fundo dos dois movimentos básicos do ano natural, ou seja, do ascendente e do descendente. Esses movimentos, por sua vez, precisam ser vistos à luz da espiritualidade medieval, sobretudod aquela das ordens medicantes. Essa espiritualidade não poderia deixar de ser considerada na pesquisa das formas de expressão relacionadas com os dois santos portugueses mais populares, o dominicano São Gonçalo e o franciscano Santo Antonio. Lembrou que Dante comparou S. Domingos e S. Francisco como dois representantes do pensamento e da alma do século XII. Um representaria a espiritualidade seráfica, e o serafim seria amor ao próximo (S. Francisco), o outro representaria uma religiosidade querubínica, o amor a Deus, o pensamento e o saber preso à Sabedoria eterna, o que exige a superação da arrogância da sabedoria terrena. Nessa fundamentação teológica residiria uma das explicações da razão do vínculo dos Dominicanos com a universidade, da importância dos pensadores medievais dominicanos, tais como Alberto Magno e Tomás de Aquino, e da ação que desenvolveram no combate aos herejes e na Inquisição. Por essa razão, o Culto de São Gonçalo tem a ver com o saber e a ciência, com o conhecimento e com o combate às heresias. Assim, em alguns de seus milagres surgem não apenas mulheres velhas, mas também exemplos do respeito que se deve ter à excomunhão.

A Profa. Beatriz Basto da Silva lembrou, a respeito do dançar mancando no culto a São Gonçalo, que também há atitudes corporais específicas em danças da Madeira, onde mulheres dançam curvadas e de costas.

A Profa. Kilza Setti complementou essa observação lembrando que também na Dança de Santa Cruz os participantes movimentam-se em posição curvada.

(...)

O Prof. Bispo lembrou ainda da menção da Profa. Maria Augusta Calado Rodrigues a respeito de São Gonçalo dos Mareantes. Essa menção poderia ser entendida a partir da simbologia e do significado do Fandango no Brasil e do emprêgo desse termo no sentido genérico de confusão, luta, batalha. A expressão cultural mais antiga, ou seja, integrada na visão integral do mundo medieval, à qual se aplicou esse termo, é aquela que inclui o símbolo da barca. Esse símbolo é o da Igreja Militante no presente e é representado, no céu, pela constelação do Navio Argo. Esse símbolo pode às vezes desaparecer, mas o sentido permanece, como é o caso de algumas formas da Marujada.

A Profa. Beatriz Basto da Silva lembrou da permanência de formas antigas na cultura portuguesa, fato combatido por S. Martinho de Braga. Os portugueses estavam tão afeitos aos deuses antigos que os nomes dos dias precisaram ser modificados, numerando-os: Segunda-feira, Terça-feira, etc. Apesar de tudo, os dias da semana mantiveram um significado e, hoje, um sentido religioso.

(...)

Referindo-se à citação do elo de São Bento com a constelação de Ophiucus, elucidado por A. A. Bispo, a Profa. Kilza Setti confirmou a ligação de S. Bento com a serpente no Brasil.

A Profa. Zuleica de Barros assegurou a existência desse elo. Negou, porém, que São Gonçalo de Amarante tivese algo a ver com São Gonçalo da Galiza, como foi levantado no decorrer da discussão, discordando da menção do Prof. Jorge Raposo.

(...)

 

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