Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 54 (1994: 4)
Colóquio Internacional Anthropos ludens Joanópolis e Ubatuba 24 a 28 de setembro de 1997 Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos sob o patrocínio da
Questões teórico-científicas relacionadas com a
Música e dança no culto de São Gonçalo de Amarante
dir. A. A. Bispo
Sociedade Brasileira de Antropologia da Música
Comissão dos Descobrimentos de Lagos
Prefeitura e Câmara Municipal de Joanópolis
Prefeitura de Ubatuba - FUNDART
Antonio Alexandre Bispo
(excerto - da exposição oral, sem notas)
Na abertura das sessões públicas do nosso Colóquio precisamos, antes de mais nada, tecer algumas reflexões de natureza básica referentes ao tema, aos conceitos nele implícitos e ao sentido e à razão do nosso evento. À primeira vista, um observador estranho ao nosso trabalho poderia achar estranho o título do Colóquio Anthropos ludens sobretudo devido ao fato de nele darmos especial atenção a uma tradição religiosa: o culto de São Gonçalo de Amarante. O que teria a ver esse complexo temático com o escopo de uma Academia dedicada ao estudo da "Ciência da Ciência e da Cultura"? Qual seria, além do mais, o vínculo do tema com o objetivo de instituições dedicadas a estudos musicológicos? E como se explicaria o elo com as comemorações da viagem de Vasco da Gama que dão ensejo à realização do colóquio?
Ainda que não imediatamente aparente, há consistência lógica no
nosso empreendimento. Vamos procurar demonstrá-la considerando
as questões que se colocam, na seguinte ordem:
1) O que se entende por "Ciência da Ciência"?
2) O que se entende por "Ciência da Cultura"?
3) Qual é o vínculo da Ciência da Cultura e da Ciência com uma
"Ciência transmitida pela tradição"?
4) Qual é o vínculo com a Antropologia?
5) Qual é o vínculo com a Música e a Lúdica?
6) Por que Gonçalo do Amarante pode ser considerado como paradigma
do "Anthropos ludens"?
7) Qual foi o papel do "Anthropos ludens" no âmbito dos Descobrimentos?
1) CIÊNCIA DA CIÊNCIA OU PESQUISA DA CIÊNCIA
APROXIMAÇÃO TEÓRICA
1) O que se entende por Ciência da Ciência? Ciência da Ciência ou Pesquisa da Ciência é um termo que corresponde à denominação science of science, em inglês, e à disciplina Wissenschaftswissenschaft ou Wissenschaftsforschung, em alemão. Ela não é o mesmo que Teoria da Ciência (Wissenschaftstheorie), não é exclusivamente História da Ciência (Wissenschaftsgeschichte) e tampouco Epistemologia.
O seu escopo, os seus métodos, os problemas que estuda e as questões que coloca podem ser sobretudo compreendidos a partir do seu desenvolvimento histórico. Este foi sobretudo influenciado por idéias de natureza marxista e determinou um direcionamento fundamentalmente de cunho sociológico a essa disciplina. Por esse motivo, esse ramo científico é tido por muitos como sinônimo de Sociologia da Ciência, o que corresponde, em alemão, à Wissenschaftssoziologie. Essa equivalência é justificada da seguinte forma: sendo a Sociologia do Conhecimento ou do Saber um ramo da Sociologia que estuda as pré-condições sociais do Saber, dever-seia entender a Sociologia da Ciência como sendo uma parte da Sociologia do Conhecimento que estuda as pré-condições sociais do sistema vigente das ciências.
Esta equivalência é compreensível, considerando-se talvez a maioria dos trabalhos desenvolvidos na área. É, porém, em termos teóricos, inaceitável. A Sociologia da Ciência pode ser vista como uma parte da Ciência da Ciência, jamais, porém, como Ciência da Ciência em si, uma vez que esta não pode restringir-se ao emprêgo de métodos sociológicos. Estamos convictos da importância fundamental das questões levantadas por esta disciplina, sobretudo no caso do Brasil. Cremos, porém, que é necessário rever o seu direcionamento e os seus fundamentos conceituais. Contribuir à re-orientação dessa disciplina é escopo da nossa instituição.
Que uma Ciência da Ciência deva ser muito mais abrangente do que uma Sociologia da Ciência é uma decorrência lógica já apontada por outros pensadores. Assim, já Ossowska und Ossowski, em 1936, entendiam que a Sociologia da Ciência seria apenas um dos ramos da Pesquisa ou Investigação da Ciência, a qual também incluiria a Filosofia da Ciência, a Psicologia das Ciência, a Organização ou Planejamento das Ciência e a História da Ciência. Apesar do caráter abrangente dessa compreensão da matéria, a divisão proposta em cinco ramos disciplinares parece-nos arbitrária e questionável. Um etnólogo sentiria, por exemplo, a falta de um ramo que correspondesse à Etnologia ou à Antropologia Cultural; de fato, a Investigação do Saber em uma comunidade indígena exigiria a consideração de fatores que possivelmente não se incluiriam nas disciplinas acima citadas. Um filósofo, sobretudo, dificilmente estaria de acordo com o entender da Filosofia da Ciência como apenas um ramo parcial, por assim dizer subalterno de uma disciplina mais abrangente, a Ciência da Ciência; ele poderia argumentar que esta seria a própria Filosofia da Ciência.
Antes, porém, de tentarmos analisar as possibilidades de definição da Pesquisa ou da Ciência da Ciência, de seu sistema, métodos e subdivisões, assim como as suas relações com as outras disciplinas, vamos procurar rever alguns momentos de um desenvolvimento histórico que praticamente estabeleceu uma equivalência da Ciência da Ciência com a Sociologia da Ciência, transformando a Sociologia, de fato, em Ciência superior, fundamental e abrangente.
Como marco histórico desse desenvolvimento considera-se o livro "The Social Function of Science", publicado em 1939, do físico Bernal. Nesse estudo, o seu autor, na tradição do pensamento marxista, salienta o papel político do cientista e a importância de um planejamento da ciência em função dos interesses da sociedade.
Seria um êrro, porém, supor que apenas pensadores marxistas tivessem tido a consciência do papel político do cientista e defendido a necessidade do planejamento da ciência em função de interesses sociais, por assim dizer externos. Sobretudo pensadores vinculados consciente-ou inconscientemente com sistemas políticos autoritários de cunho nacionalista exigiram dos cientistas que colocassem o seu saber e os resultados de suas pesquisas a serviço da comunidade, das corporações, do estado, da nação. E o que dizer do trabalho realizado por cientistas a serviço de confissões religiosas? Ou daqueles investigadores que trabalham para indústrias ou firmas comerciais?
O papel decisivo da investigação científica no desenvolvimento da tecnologia militar, sobretudo evidente na Segunda Grande Guerra e na invenção da bomba atômica, despertou a atenção geral pela importância de uma Política da Ciência. A Pesquisa da Ciência passou a ser vista não apenas como o estudo dos vínculos e das interrelações entre a ciência e a sociedade, mas sim e sobretudo como um ramo da Política da Ciência, da Tecnologia e do Desenvolvimento.
O desenvolvimento da Pesquisa da Ciência nas décadas de setenta e oitenta foi influenciado sobretudo pelo livro "The Structure of Scientific Revolutions" de Th.S. Kuhn. Desde então tornou-se quase que lugar comum falar-se em "mudança de paradigmas". A transformação ou o desenvolvimento do conhecimento científico passou a ser visto ao mesmo tempo sociológico- e historicamente.
Nos Estados Unidos, onde a escola da Sociologia da Ciência funcionalista mantém-se predominante, o interesse da maioria dos trabalhos dirige-se sobretudo à "scientific community", termo que se liga sobretudo a trabalhos de W.O. Hagstrom. Curiosa é sobretudo a idéia de procurar averiguar a qualidade de trabalhos segundo a quantidade de citações ou de determinar rêdes de contactos entre cientistas através das obras que citam. Através desses estudos, procura-se constatar a existência de "colégios" invisíveis ou círculos e comunidades de cientistas que representam correntes de pensamento ou métodos afins. Segundo Knorr, em todos esses estudos percebe-se que não se considera o processo real de geração de resultados científicos, assim como os fatores sociais que não pertencem ao sistema social da ciência.
Na Europa, as atenções se dirigiram, nos anos setenta à "produção" do saber na sua relação com a estrutura social. A teoria da "mudança de paradigmas" causou uma preocupação maior pela consideração de fatores sociológicos na Filosofia da Ciência. Em geral, percebe-se uma tendência à crítica de uma crença ao progresso da ciência e da tecnologia dos anos sessenta e setenta. Sobretudo na Inglaterra parece que tomou força uma certa visão cética na teoria do conhecimento. Na Sociologia, aumentou o interesse por fatores cognitivos. As atenções são dirigidas à gênese por ex. institucional, política ou econômica de fenômenos cognitivos. Passou-se a considerar o modo pelo qual fatores sociais e cognitivos interagem na produção do saber e quais as conseqüências sociais e os resultados práticos que decorrem do saber produzido. Procura-se constatar e sistematizar "etnografias" das disciplinas científicas e de instituições, o que tem levado a polêmicas.
Por um lado, portanto, a Ciência da Ciência tem procurado estudar o sistema social do trabalho científico na sua relação com fatores sociais em geral e, por outro, o processo cognitivo do desenvolvimento da ciência. A Pesquisa da Ciência continua a ter um cunho fundamentalmente sociólogico e assume cada vez mais a feição de uma Economia da Ciência. Tem-se até mesmo criticado a separação entre fatores sociais e cognitivos na disciplina. Parte-se do ponto de vista de que a pesquisa da prática da produção do saber deve incluir uma filosofia "pragmática" da ciência, uma sociologia da ciência cognitiva, que se dedique a complexos externos e uma teoria da historicidade e da transformação da ciência.
Como o planejamento da pesquisa continua a ser problemático, assim como difícil é a questão do aproveitamento social da produção do saber, tudo indica que a Pesquisa da Ciência terá uma importância cada vez maior.
(...)