Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 31 (1994: 5)
1994: 100 anos de Renato Almeida Ciclo de estudos Roraima agradecimentos Biblioteca do Estado
Música nas relações culturais euro-brasileiras
Sistematização e integração dos estudos culturais
- Amazônia e Brasil Central -
projeto do ISMPS e.V. /I.B.E.M.
com o apoio de diversos órgãos oficiais e particulares, universidades
e museus
desenvolvido concomitantemente com o
projeto
As culturas musicais indígenas no Brasil
do
Institut für hymnologische und musikethnologische Studien
realizado com o apoio do
Serviço das Relações Exteriores da Alemanha
sob a direção de
A. A. Bispo
Diocese de Roraima
Universidade Federal de Roraima
Instituto de Antropologia
Escola de Música
Conselho Indigenista Missionário CIMI-Norte
Associação do Índio
Comunidade Makuxi-Fazenda São Marcos
(anotações de aula)
Antonio Alexandre Bispo
(partes)
(...)
O significado dos relatos de Th. Koch-Grünberg reside sobretudo nas suas descrições da Parischerá (Parixera, Parishara, etc.). Uma menção mais antiga encontra-se em E.F. i.Thurn, curador do Museu de Georgetown. J. William relaciona esta dança com uma dança em honra da Maraca, ou seja, a coloca em um contexto de cunho religioso que é de fundamental importância para muitos povos indígenas da América. Mesmo que esse relacionamento não seja corroborável à primeira vista, não se pode deixar de constatar o significado dessa cerimônia festiva para uma visão do homem e do mundo dos índios de Roraima e que poderia ser qualificada de musical. Assim, em estudo de Walter E. Roth encontra-se uma "Parishara song" que fala de numerosos instrumentos musicais.
Segundo as informações obtidas em São Marcos, a Parischerá era dançada em ocasiões festivas, durante as quais se consumia muito o caxirí (ou pariquari, parakari). A dança consistia - segundo a memória dos informantes - na formação de um círculo, no qual participavam homens e mulheres, crianças e adultos, e que realizavam movimentos para frente e para trás. Todas as danças eram executadas sobretudo no mês de dezembro, pelo que tudo indica no contexto de festas do Natal, o que já denota ser resultado de trabalho missionário.
Koch-Grünberg observou um cortejo de Parischerá, no qual os participantes ainda se comportavam de forma tradicional:
"Eles trazem chapéus característicos feitos de folhas da palmeira Ijajá (Maximiliana regia), que em parte cobrem os rostos. Longos pendentes do mesmo material são enrolados no corpo e cobrem as pernas. De tubos feitos de madeira leva (cecropia), em cuja frente são colocadas figuras de madeira coloridas de todo tipo, tiram eles sons uivantes e surdos, balançando os instrumentos para cima e para baixo. Ao andar, socam o chão com o pé direito e inclinam o corpo para frente. Assim, movimentam-se sempre para frente, durante um percurso relativamente longo, logo voltando para trás, em percurso mais curto. Chegam, assim, gradualmente à praça da aldeia. Cada grupo tem o seu dançarino-guia que bate com o pau-de-dança, ruidosamente, o compasso da dança; esse pau, comprido, tem na ponta superior, pendurados, cascos de veado ou cascas de frutas cortadas pela metade. Seguem meninas e mulheres, pintadas de vermelho e preto, nuas, apenas com uma pequena e graciosa tanga de pérolas. A mão direita é colocada no ombro esquerdo do parceiro. Elas andam com passos pequenos ao lado ou atrás, o mesmo fazendo o numeroso povinho de crianças já meio crescidas. As jovens mulheres e meninas apresentam muitos enfeites. Na cabeça, trazem um bonito diadema de trança de canudos com flocos de algodão ou penugem colados. Os dançarinos formam um grande círculo aberto e se movimentam para a frente e para trás, balançando para a direita e para a esquerda. Após cada andar, batem várias vezes com os pés no mesmo lugar e dão um grito forte. A um sinal do dançarino-guia, ficam quietos, com a face voltada para o interior do círculo, seguram os instrumentos com uma das mãos à frente de si ou sob o braço, e entoam então os seus cantos simples, precisamente ritmados, arrastados. O dançarino-guia canta alguns compassos, entrando os outros a seguir. Começando com voz baixa, aumentam cada vez mais de intensidade, diminuindo gradativamente por fim até atingir os sons finais, repetidos inumeráveis vezes: hai-ã-ã hai-ã-ã."
Theodor Koch-Grünberg dá uma outra descrição dea Parischerá entre os Taulipangs do monte Roraima:
"Eles passam dançando longamente por nós e se ordenam em um círculo à frente da casa do cacique. A música surda dos trompetes, que anuncia a chegada dos dansantes, cala-se, começando um canto monótono e ritmado. A dança continua com os mesmos movimentos. Um passo à direita, batida no chão, pé esquerdo para trás, de tempo em tempo uma virada curta para a esquerda (...). O traje dos dansantes não é o prescrito, pois aqui falta a palmeira inajá. Apenas alguns deles portam fitas de folhas da palmeira Mauritia; por compensação, a maioria apresenta ricos enfeites de penas."
Theodor Koch-Grünberg descreve também a dança Parischerá entre os Wapixanas:
"Depois de uma hora alcançamos uma casa Wapischána redonda, com telhado pontudo sustentado por uma parede de argila de pequena altura. Vê-se muito povo nú. Dança-se a Parischerá ou Parischára, como os Wapischána dizem, em círculo meio aberto. Em compasso de quatro por quatro, com os joelhos em movimento, homens, mulheres e crianças andam em círculo com canto monótono. A festa está em extinção. A maioria dos homens está muito embriagada. Alguns dos mais velhos roncam nas suas rêdes dentro da cabana semi-escura."
Os Ingarikó merecem uma atenção especial neste contexto, uma vez que na área da Serra do Sol sobreviveram algumas casas-de-dança. O significado dessa casa na antiga ordem comunitária e no contexto cultural pode ser vista já no fato de situar-se próxima da casa do cacique. A tribo encontra-se em contacto com Makuxís das aldeias Caracana, Monte Mopriá e Pedra Preta. Durante as festas, realizam a dança Aleluia junto com os Makuxís da aldeia Caracana, a qual ainda é mantida com orgulho. Essas danças comunitárias, parte integrante do culto, duram noites inteiras.
Tudo indica que os costumes festivos indígenas tradicionais dessa região foram cristianizados no processo missionário. As descrições pormenorizadas mais antigas conhecidaas de festas similares da Guiana, com muito uso de caxiri, são aquelas de Cäsar Famin, publicadas em alemão, em 1839. Segundo ele, elas eram realizadas após expedições realizadas com sucesso e acabavam, entre os Arawaken, com o devorar dos aprisionados:
"A dança é realizada após a refeição. Também aqui repete-se a constatação de que tal divertimento foi sempre a gosto dos guerreiros de todas as épocas e de todos os povos. Da mesma forma, eles ouvem com prazer o louvor de suas façanhas, e os selvagens não fazem exceção. Na Guiana, acompanham os seus cantos monótonos, tristes, com tambores, mandolinas rudes e instrumentos de cascos. Na manhã seguinte, o povo cai de novo na apatia rotineira."
A fascinação, que a música, os instrumentos musicais e os aparelhos de gravação dos europeus ou brasileiros exercem sobre os índios também contribuíram para que as tradições enfraquecessem. Assim, o General C.M. Rondon parece ter utilizado esse interesse musical para ganhar a simpatia dos índios, dando aos Makuxís, além de uniformes, instrumentos de banda. Também Theodor Koch-Grünberg menciona o fato de que os índios gostavam de ouví-lo cantar, utilizando-se das roupas dadas por ele nas suas danças:
"A espingarda de infantaria está pendurada de lado, presa numa velha faixa de oficial, que envolve-lhe a cintura. Na sua jaqueta cinza, a sua mulher havia costurado símbolos militares. Na cabeça, ele trazia um boné de bicicletista. A marca, que estava no forro, tinha ele colado no boné, e assim irradiava sempre sobre a sua fase risonha, sabida, a inscrição Tip-top."
Um outro problema para a sobrevivência da música tradicional dos Makuxís reside no relacionamento íntimo entre o canto e a religião. A garantia da tradição musical é principalmente o pajé, que desempenhava ao mesmo tempo o papel de curador e de mentor da comunidade da aldeia. Com a catequese, sobretudo com a penetração de missionários protestantes vindos da Guiana, os pajés perderam muito em autoridade. A sua própria existência foi colocada em questão, sobretudo quando as práticas de cura por ele exercidas passaram a ser substituidas pela medicina.
Da primeira missão evangélica entre os índios da Guiana sob Theoph. Sal. Schumann tem-se referências a respeito das concepções religiosas dos índios e do papel dos pajés e da música:
"A religião do índio pagão não é aquela idolatria bruta e sensual dos demais povos do paganismo. Entre eles não há ídolos. O índio acredita em um ser superior, criador do céu e da terra, e do qual provém todo o bem. El o chama de o grande espírito. Mas esse espírito parece-lhe bom demais para preocupar o homem e por demais elevado para trazer-lhe bençãos. O índio não tem nem temor dele, nem ama o seu Deus. Mais do que com o grande espírito, ocupa-se com o mau espírito, Jawahu. Deste ele tem indizível mêdo, e por isso muito respeitam os exorcistas e os advinhos (Bokaier). Doenças e outros males dizem que são causados pelo mau espírito. (...) Os exorcismos consistem em fazer ruído com uma cápsula redonda, cheia de pedrinhas, em murmurações, gritos e sibilos. Na quietude da noite, esse disparate dá uma tremenda impressão."
Theodor Koch-Grünberg dá testemunho do significado do canto nas práticas de cura dos médicos nastivos, em particular de um famoso advinho dos Taulipángs, de nome Katúra:
"O encantador entoa um canto monótono com profundos sons de garganta e com voz anasalada, solenemente. Este canto divide-se em estrofes, que ele inicia com um grito selvatem (...), terminando com um 'o--' prolongado. Durante todo o canto, ele bate com um maço de folhas no chão, ao lado do doente. Depois, ouvem-se chiados, gemidos, sopros, sons de garganta, atacados selvagemente (...): ele bebe suco de tabaco. Ruidosamente esfrega o maço de folhas no chão, de um lado para outro e deixa o som desaparecer, como se viesse de longe (...). A sua alma separou-se do corpo. Ele vai buscar um Mauari, um espírito da montanha, ou o espírito de um médico encantado já morto, que faz a cura no seu lugar. Com algumas palavras produzidas de modo selvagem, o espírito abaixa. Ele traz o seu cão consigo, uma onça. Ouve-se o seu ranger. - E assim por mais de duas horas, com breves interrupções. Os uivos do encantador transformam-se aos poucos em canto uniforme e que se prolonga até o fim."
Para a divulgação de música não-indígena entre os índios da região muito contribuiu a educação a eles dada a partir da década de vinte. Já no tempo de Koch-Grünberg, as crianças Makuxís da aldeia Koimélemong haviam aprendido cantos europeus ensinados pelos beneditinos da missão católica:
"Eles rezam o Padre-Nosso em Makuxí e entoam algumas canções natalinas com texto Makuxí. Eu me comovo em ouvir tais melodias, velhas e lindas, soarem nas vozes claras de crianças entre esse povo escuro de gente nua: 'Noite Feliz', 'As luzes brilham na árvore de Natal'. Entretanto, apesar dos cantos espirituais e das orações, os índios continuam profundamente enraizados na sua antiga fé e apenas repetem tudo sem pensar."
Nos anos setenta, o Govêrno tomou a si a rede escolar. Apesar de que uma parte importante do corpo docente ser indígena (ca. de 60%), tudo indica que pouco se utiliza o patrimônio musical nativo.
Um dos principais problemas da sobrevivência do canto tradicional dos Makuxís parece residir no relacionamento estreito entre o canto e o idioma. Até há pouco, a língua Makuxí era vista pelos habitantes de Boa Vista como "gíria", sendo assim desconsiderada. Sobretudo nas aldeias das terras do lavrado, essa desvalorização da língua trouxe conseqüências para a sua utilização; nas aldeias da serra ela conservou-se melhor. Nos últimos anos, a língua Makuxí passou a recuperar-se, surgindo como 'lingua franca', ao lado do português e do inglês.
As perspectivas músico-culturais dos Taulipángs são ainda mais incertas do que entre os Makuxís e Wapichanas. Enquanto essas últimas tribos são marcadas em grande parte pelo catolicismo, os Taulipángs são influenciados pelos Adventistas e, assim, estão quase que totalmente submetidos ao repertório de cantos norte-americanos. Entre eles, apenas na aldeia Sorocaima há sobrevivência das antigas tradições.
Uma importante tarefa da pesquisa musical e de um trabalho cultural fundamentado cientificamente reside no auxílio dos índios que abandonaram as suas tribos e que agora vivem em Boa Vista. Um estudo recente salienta os problemas que surgem dessa vida entre culturas. O próprio Parischerá, por exemplo, pertence ao universo indígena que é abandonado na cidade. Antigamente, também ele pertencia ao "Folklore" da população miscigenada da capital, como o comprovam informações obtidas em Vista Alegre. O informante, cujo avô veio de Pernambuco e cuja avó era índia, aprendeu na sua infância a dansar o Parischerá no período natalino. Uma ocupação com as tradições musicais e com a dança indígena nas escolas e na Escola de Música de Boa Vista poderia amenizar os sofrimentos da adaptação, fazer com que os diferentes grupos da população melhor se aproximassem, contribuindo à harmonização das relações sociais e emprestado um cunho individual, próprio, inconfundível à cultura do Estado. Antes de tudo, porém, há aqui uma tarefa de cunho espiritual e, portanto, da Igreja.
Para Koch-Grünberg, somente os mitos oferecem a chave para o entendimento da dança indígena:
"Assim, o Parischerá relaciona-se com um longo mito, no qual a seguinte idéia desempenha papel importante: apetrechos de caça e pesca obtidos por um pajé dos animais são por fim novamente perdidos, recuperados pelos animais, por culpa de parentes maus. O Parischerá é, por assim dizer, a representação géstica dessa lenda. Assim como o Tukúi ou Tukúschi é a dança de todos os pássaros e de todos os peixes, assim é o Parischerá a dança dos porcos e de todos os quadrúpedes. A longa corrente de dansantes, homens e mulheres que se movimentam ao som da música surda dos tubos de madeira, representa o bando de porcos selvagens que passa com os seus surdos grunhidos."
Conseqüentemente, segundo Koch-Grünberg, todas essas danças seriam originalmente meios mágicos para a obtenção de bons resultados na caça e na pesca. Essa opinião, porém não precisa ser necessariamente correta. Tudo indica que a chave para a compreensão mais profunda do significado dessas danças está na sua própria linguagem de imagens. Aqui dever-se-ia levar em consideração a possibilidade de existência de concepções tipológicas intrínsecas a tais representações, ou seja, que os tipo animalescos representados exteriormente apenas sejam indícios ou sinais de anti-tipos espiritualmente superiores, paradigmáticos. Deve-se salientar aqui que o relacionamento entre peixes e aves nessas concepções correspondem às noções bíblicas transmitidas pela Gênese e que parecem permitir uma possível harmonização de concepções e imagens indígenas e cristãs.
(...)