Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 30 (1994: 4)


 

Ciclo de estudos

Música nas relações culturais euro-brasileiras

Sistematização e integração dos estudos culturais euro-brasileiros

- Amazônia e Brasil Central -

um projeto do ISMPS e.V. /I.B.E.M.

com o apoio de diversos órgãos oficiais e particulares, universidades e museus
desenvolvido concomitantemente com o
projeto
As culturas musicais indígenas no Brasil
do
Institut für hymnologische und musikethnologische Studien
realizado com o apoio do
Serviço das Relações Exteriores da Alemanha

sob a direção de

A. A. Bispo

- Acre - 

 

UM ESTUDO PIONEIRO:
MÚSICA E DANÇA NA "MIRAÇÃO DO SANTO DAI-ME" (1981)

Relembrado em encontro na Secretaria da Cultura, Rio Branco, 1993

Julieta de Andrade

(partes)

 

(...)

O Santo Dai-me: Templos

Artigo publicado na primeira coletânea internacional dedicada à cultura musical do Brasil, incluída no anuário do instituto de pesquisas musicológicas da organização pontifícia de música sacra e editada em Roma, em 1981.

Este estudo sobre o Dai-me foi divulgado e comentado no âmbito do Primeiro Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo, sob os auspícios da Secretaria de Estado da Cultura.

Há três centros importantes de Santo Dai-me em Rio Branco e redondezas: o de Vila Ivonete, onde ainda não estive; a Igreja da Custódia e a Igreja da Cinco Mil.

A Igreja da Custódia, registrada como Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, é dirigida por Leôncio Gomes da Silva. É um amplo salão de madeira em terreno cercado, tendo, à frente, uma enorme cruz de Lorena em branco, abraçada por um terço de contas negras. A cruz é conhecida por Cruz de Caravaca e o terço por Rosário de Maria. Quase em frente, do outro lado da estrada da Custódia, está o túmulo do Mestre Irineu Serra, venerado como introdutor da doutrina. A sepultura é protegida por uma cobertura de duas águas, que abriga também um busto do Mestre Irineu sobre um pedestal, muitos ex-votos e velas acesas. Ao redor, plantação de jagube e mesca, ingredientes da bebida básica da fé. À esquerda, a casa do responsável, Mestre Leôncio. Ele trabalhou 33 anos com Mestre Irineu, após ter sido curado com o Santo Dai-me. Agora dirige por volta de 500 fiéis que vêem nele o continuador da obra.

A Igreja da Cinco Mil, registrada como Centro Eclético da Fluente Luz Universal, fica numa esplanada rodeada de campinas, ao fim de um longo e estreito caminho acidentado que sai do Engenho, no Km.5000 da Estrada Porto Acre. É um majestoso e amplo templo branco, de alvenaria, em estilo sóbrio e moderno. Ostenta uma série de arcos à entrada e está em fase final de construção. Ao redor, em extensa área de agricultura, vivem 43 famílias de devotos, ao toco, perto de 300 pessoas; o regime é comunitário, o trabalho é obrigação de todos, e visa a independer os fiéis das compras feitas no comércio, isto é, a torná-los cada vez mais auto-suficientes no sentido de terem uma vida mais ligada à natureza, comendo alimentos frescos e sadios. Há plantações de arroz, feijão, cana, mandioca. O jagube e a mesca são plantados, mas não consumidos no presente; destinam-se ao futuro, já que para o consumo atual pode-se obtê-lo na floresta, ainda que distante. A comunidade tem uma carpintaria e casa de farinha, além de engenho para produção de rapadura e açúcar mascavo.

A freqüência às sessões da Cinco Mil é aberta às pessoas residentes fora da comunidade; este fato o torna o maior templo de Dai-me no Acre. Em cada sessão há dez ou quinze novos adeptos que assinam o livro próprio para quem bebe o Dai-me pela primeira vez.

O responsável é Sebastião da Mota Melo, o Padrinho, figura carismática de líder espontâneo, patriarca envolto em aura de simpatia e carinho, e cujas sugestões são aceitas pelos fiéis como expressão da vontade divina. Casado com Dona Rita Gregório de Melo, tem, no filho Alfredo, a garantia de continuidade de seu ministério na próxima geração.

Qualquer pessoa é bem recebida como novo morador da Cinco Mil, no dizer de Alfredo, "desde que supere o mundo lá fora; quando não esperar mais nada do mundo, a pessoa se junta ao Dai-me, porque não acha mais lugar lá fora, e pode morar ou não, na colonia."

A Bebida

O Santo Dai-me, bebida feita com folhas de mesca e com cipó jagube é tão importante que dá nome à religião. Não consegui identificar a mesca; é um arbusto com folhas semelhantes às da Erythroxylum Coca Lam., exceto quanto às linhas longitudinais ligadas à nervura central no ápice e na base, que não existem na mesca. Embora a semelhança física também aponte na direção das Quinas (Cinchonae), a descrição de Nunes Pereira quanto aos efeitos do Caapi sugerem-me a indagação sobre a possibilidade de a mesca ser a Banisteria caapi Spruce (2,3,4).

Relativamente ao cipó do jagube, também conhecido no Acre por Huasca, Ay-huasca, Aya-huasca, encontro-o sob o verbete Iagê (Banisteriopsis caapi Morton) em Pio Corrêa, que o descreve como trepadeira robusta, cuja ingestão produz os efeitos do Santo Dai-me; entretanto, da´-lhe por sinônimos o nome Caapi, que se refere a um arbusto, e também o nome Aya-Huasca.

Em Rio Branco, os devotos falam jagube para o cipó Huasca, e dizem mesca ou mescla para o arbusto, do qual só aproveitam as folhas.

Assim se faz a bebida: camadas alternadas de jagube e de mesca; cobre-se de água o cipó e as folhas, ferve-se durante duas horas e deixa-se esfriar. Deve ser bebido frio. Tempo de duração: 20 anos. Uma planta adulta de jagube dá para 40 sacas de matéria prima. Dose, um copo pequeno, equivalente a uma xícara de café bem cheia. Para crianças, meia dose. O efeito é descrito sob o nome de miração, isto é, uma visão colorida e luxuriantemente iluminada, onde são projetados os pensamentos e as fantasias do crente: "A gente vê tudo o que pensa e tudo o que quer, segundo o merecimento". Fala-se na possibilidade de comunicação com seres da realidade espiritual e com pessoas já falecidas.

(...)

Outro informante diz:- "Tem um monte de seres de luz que só tomando Dai-me a gente vê. É uma realidade não cotidiana, com raiz estrutural nascido dos índios do Peru, do Equador, da Bolívia, da Colombia. Há quem diga que na África também tem Dai-me.

(...)

O Santo Dai-me é considerado como uma Partícula Divina, razão pela qual seu recipiente não deve ser segurado diretamente com as mãos, mas sempre envolto em papel; e onde houver um frasco de Dai-me, alé deverá estar a Cruz de Caravaca.

Para que o Dai-me produza efeitos integrais, os devotos devem fazer dieta rigorosa por seis dias, sendo três antes e três depois da ingestão; não podem tomar bebidas alcoólicas quaisquer que sejam, nem os remédios de farmácia classificados como tóxicos; ressalva é feita para os fortificantes. Assim reza o ensinamento do Mestre, porque se houver problema com a ingestão concomitante, as pessoas que não conhecem o Dai-me não vão acusar o remédio...

(...)

As Santas Doutrinas

Após ter jejuado e feito abstinência, estando a se alimentar apenas com macaxeira, Mestre Irineu Serra, durante a miração de uma dose de Dai-me, recebeu as Santas Doutrinas pela voz da Rainha das Florestas (Nossa Senhora da Conceição). Isto ocorreu na divisa da Bolívia com o Peru. Voltando ao Brasil, Mestre Irineu acabou por se fixar na Custódia onde exerceu seu ministério e compôs 132 hinos - o Hinário Cruzeiro - para serem cantados e dançados durante as sessões. Segundo os participantes da fé, o Dai-me deve ser ingerido pelas pessoas que queiram conhecer sua teologia, porque a visão em si mesma é sentida como uma bênção que ilumina o crente e lhe proporciona sustento para não esmorecer na luta pela salvação.

(...) Ao fim, consegui relacionar os seguintes dados:

"A doutrina de Mestre Irineu é a doutrina de Juramidam (Deus); ele a fundou, é a doutrina original. Juramidam, prá nós, é o dono da doutrina, prá nós ele é Deus. Os discípulos do Mestre, Sebastião da Mota Melo, Germano e outros, afirmaram essa doutrina. Antes de o Mestre passar para o outro mundo, eles fizeram seu próprio hinário, confirmando e afirmando tudo o que o Mestre disse. No hinário do Mestre ele afirmou que viria um outro, quem seria esse outro, como seria; no hinário do Padrinho (Sebastião), vem a resposta, contando como seria a vida dele, quem é ele, qual é a missão dele aqui na terra. A doutrina do Padrinho é a de São João; é a mesma de Juramidam, orientada por São João. (...)"

(...)

O Culto

As reuniões de fiéis são bi-mensais; nos dias 15 e 30. Chamam-se concentração. Os participantes habituais comparecem uniformizados, calça azul, camisa branca ostentando um signo de Salomão, para os homens; mulheres, com saia azul e blusa branca.

O templo tem uma mesa central cercada de cadeiras e bancos. Ao redor, o chão tem espaços demarcados em quadriláteros, sendo dois lados para homens e dois para mulheres. Os crentes uniformizados bailam, cada um dentro do seu quadrilátero, no momento oportuno.

A sessão tem início com uma concentração do pensamento de todos, seguida de hinos cantados pelo Padrinho; ele bebe o Dai-me; outros cantam, e a cada concentração canta-se todo um hinário, de começo ao fim, com intervalo à meia-noite, para o bailado. Há fiscais uniformizados que cuidam para que todos passem uma noite agradável, na disciplina do ritual.

A bebida é distribuida a quem o desejar; mas quando se está no Templo em dia de concentração, há que esperar pelo fim dos trabalhos, pois ninguém poderá sair sob efeito da Huasca. Considero importante deixar claro que letra e música dos hinos são compostos sob efeito de Dai-me.

Nas festas e dias importantes, como a comemoração da morte de Mestre Irineu, há sessões sem concentração, apenas para bailados. As festas significativas são a de São João, Reis a 6 de Janeiro, Nossa Senhora da Conceição a 15 de Dezembro e Natal. Diz-se que são bailados de festival oficial, a que os crentes comparecem com farda de gala: mulheres com blusa e saia brancas, com uma curta sobressaia (Saiote), tendo fitas pendentes da manga da blusa; os homens vestem branco, tendo uma lista verde ao longo das pernas da calça e um signo de Salomão no paletó. Nos bailes, quem está uniformizado é considerado oficial; para ser oficial é preciso ser membro da igreja e ter a farda.

(...)

 

O artigo completo, com exemplos musicais, encontra-se na publicação: A. A. Bispo et alii, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Musices Aptatio - Liber Annuarius 1981, ed. J. Overath, Roma: Urbaniana University Press, 1981 (8007).

Essa publicação pode ser adquirida por via postal no Institut für hymnologische und musikethnologische Studien e.V. Haus der Kirchenmusik, 56653 Maria Laach, República Federal da Alemanha.

 

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