Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 30 (1994: 4)


 

Rio Branco.
Foto A. A. Bispo. Acervo ISMPS e.V.

Ciclo de estudos

Música nas relações culturais euro-brasileiras

Sistematização e integração dos estudos culturais euro-brasileiros

- Amazônia e Brasil Central -

um projeto do ISMPS e.V. /I.B.E.M.

com o apoio de diversos órgãos oficiais e particulares, universidades e museus
desenvolvido concomitantemente com o
projeto
As culturas musicais indígenas no Brasil
do
Institut für hymnologische und musikethnologische Studien
realizado com o apoio do
Serviço das Relações Exteriores da Alemanha

sob a direção de

A. A. Bispo

- Acre - 

 

CIÊNCIA DAS RELIGIÕES: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS ÍNDIO-EUROPÉIAS

(tradução de texto de curso, Akademie Brasil-Europa)

Antonio Alexandre Bispo

(partes, sem notas e bibliografia)

 

(...)

Os vínculos existentes entre os conceitos religiosos e a música fazem parte das reflexões de Cláudia Eugenia Pereira, colaboradora do Conselho Indigenista Missionário de Rio Branco. Ela mostra-se interessada em questões científicas e práticas que dizem respeito à música, pois está convicta da importância da música na vida dos índios e no trabalho missionário com base nas suas experiências no Sul do Brasil e no Brasil-Central. Nessas regiões, constatou o estreito elo existente entre a música e a religião, sobretudo nas culturas dos povos Guaraní e Karajá.

Partindo sobretudo de suas experiências com os Guaranís, a Cláudia E. Pereira salientou a necessidade de pesquisas aprofundadas e comparativas da cultura musical desses índios com as práticas espirituais dos povos indígenas do Acre. Como base para esses estudos comparados, possui gravações realizadas por missionárias na aldeia Ocoi dos Avá-Guarani em Santa Rosa do Iguaçú, Município de São Miguel do Iguaçú, Paraná. Essas gravações foram realizadas durante uma assembléia (Xeroky) com a participação de índios Guaraní-Kaiowa, realizada de 29 a 31 de março de 1985. Cláudia E. Pereira considera importante investigar, em primeiro lugar, se também entre os indígenas do Acre se observa uma orientação voltada ao Oriente nas cerimônias, como é o caso das festividades que presenciou entre os Guaranís. No ponto alto dessas cerimônias, mais ou menos às 4:30 da manhã, o cantor volta-se em direção ao sol nascente. A seguir, dever-se-ia constatar se a simbologia dos instrumentos musicais dos grupos indígenas do Acre coincide ou não com aquela dos Guaranís, se a Mbaracá dos homens que dirigem as rezas também aqui adquire um significado análogo ou se há um instrumento comparável ao Taquapy, um instrumento tocado por mulheres, constituído por um bastão de taquara perfurado de ca. de 1,5 m de comprimento e que é batido no chão. Segundo Cláudia E. Pereira, uma pesquisa de caráter fundamental deveria dirigir a sua atenção sobretudo a concepções referentes ao masculino e ao feminino, principalmente no sentido metafórico, uma vez que elas se refletem na prática musical. Ela observou que, entre os Guaranís, o homem que lidera a reza é acompanhado por uma mulher. Assim, quando o rezador Aleixo falou para os homens vindos de outras aldeias, não recebeu resposta alguma, pois não tinha nenhuma mulher a seu lado, ouvindo-se apenas a batida dos bastões no chão: os hóspedes da tribo Guarani-Kaiowa, vindos sem mulheres, apenas podiam acompanhar o seu canto com um violão de cordas soltas. Também entre os povos indígenas do Acre há notícias de auxiliares femininas de pajés e até mesmo de cantoras.

Um outro testemunho do vínculo estreito entre a música e as concepções religiosas e cosmológicas dos índios que poderia servir para estudos comparativos no Acre, levando-se em consideração a situação totalmente diversa da região, seria, segundo essa missionária, a dança do Aruanã, dos Karajás no Brasil-Central. Cláudia E. Pereira manifestou a sua convicção de que aqui se teria uma solenidade de reconstrução da Gênese; também para os indígenas do Acre poder-se-ia constatar o papel fundamental de concepções relativas à Criação. Ela baseava-se, nesta sua argumentação, sobretudo em trabalhos desenvolvidos por Marcos Maia numa aldeia Javaé, na ilha do Bananal, em 20 de julho de 1983. Nessa época, foram gravadas partes do ritual com canto e dança de homens que saíam aos pares da casa das máscaras - cada par simbolizando um espírito - e que eram acompanhados pelo som do maracá.

O significado do mito da Criação do mundo no âmbito da cultura musical e espiritual dos indígenas do Acre torna-se manifesto no exemplo da música do povo Kulina. Uma impressão dessa cultura oferece um video referente à aldeia Torre da Lua no Igarapé Preto, editado pelo Conselho Indigenista Missionário em 1991 (Madi Jacca Dsama, et. M. Leitão; dir. S. Margarido; conselho J. O. Parreira e W. Sass). No registro são apresentados sobretudo os problemas vivenciados por essa tribo Arauak (Amazonas, Acre e Peru; população: ca. 9000 pessoas, dos quais ca. de 960 no médio Juruá), problemas esses causados pela penetração dos brancos, e que os indígenas tentam solucionar através de demarcações próprias das terras consuetudinárias. O video inclui, porém, exemplos musicais que denotam ocorrências heterofônicas, comprovam o papel importante desempenhado pelo canto feminino, em parte alternado com flautas, assim como documenta a existência de uma melódica que inclui melismas e tons prolongados das flautas. Nele se salienta que as concepções musicais são estreitamente vinculadas com a religião: acredita-se na existência de uma aldeia situada debaixo da terra e de uma aldeia no céu, da qual o pajé retira os seus cantos. A analogia entre a concepção da "Jerusalém terrena" e da "Jerusalém celestial" do Cristianismo é evidente, sobretudo na sua expressão alegórica elucidada pelo Apóstolo Paulo nas figuras de Hagar e Sara. Coloca-se a questão aqui de uma possível influência missionária em épocas remotas da história colonial na região.

Entre os diversos grupos indígenas do Acre cumpre que se dedique uma atenção especial ao povo Campa (em geral escrito Kampa), uma vez que se encontra em estreito relacionamento com as culturas andinas, diferenciando-se sob muitos aspectos dos demais grupos indígenas do Brasil e constituindo-se em ponte de ligação entre os povos da floresta e aqueles da antiga zona de dominação inca. A denominação "Campa" foi dada pelos brancos; os membros desse povo se auto-denominam de Ashanica (Ashanika, Aschanica, Aschanika, Ashaninka etc.), o que quer dizer, mais ou menos, "nossa família" ou "gente". Esse povo constitui uma das maiores nações de fala Arauak e vive principalmente no Peru; nas florestas e savanas das regiões mais baixas dos Andes vivem ainda ca. de 20.000-30.000 índios dessa nação. Em território brasileiro vivem apenas algumas centenas de índios Kampa, sobretudo no rio Amonia, na divisa com o Peru, para onde vieram no início do século XX, pelo que tudo indica. Os Ashaninca ou Kampa possuem uma longa história de contacto com os europeus. A sua história é marcada por conflitos surgidos desses contactos culturais históricos.

Esse povo já vivia em missões franciscanas na primeira metade do século XVII e, pelo que se supõe, seus membros estiveram entre aqueles que mataram missionários e retornaram para as florestas. Esses índios têm fama de bons caçadores e atiradores; como extratores de sal mantiveram contactos com outros habitantes da região amazônica. Nos séculos XIX e XX, no decorrer da exploração das florestas pelos seringueiros, muito sofreram. Apenas após o retrocesso da procura da borracha, depois de 1912, é que conseguiram recuperar-se numericamente, evitando assim a extinção. Desde os anos sessenta, comerciam com madeira de seus territórios, alguns deles trabalhando em Cruzeiro do Sul. Hoje, são sobretudo externos que derrubam árvores nas suas áreas, ali se fixando e criando, com isso, conflitos. Foi formada, por isso, uma cooperativa indígena que procura melhorar os processos de produção e de comércio como base mais sólida da comunidade.

Os índios Kampas despertaram interesse especial de indigenistas, especialistas (entre outros de Teari Aquino, Antonio Macedo, Labi Mendonça, Siã Kaxinawa) e de pesquisadores estrangeiros (por ex. Mirella Ricciardi), que se esforçam em valorizar e revitalizar a sua cultura. Deve-se salientar um video publicado em junho de 1992, realizado pela comunidade Ashaninca do Rio Amonia com o apoio do CEDI e em cooperação com a Universidade do Acre, nele participando vários especialistas e representantes da tribo. Esse registro oferece uma boa visão da sua cultura e música, baseando-se sobretudo em estudo de Margareth Mendes. As características especiais dos Kampas não se manifestam apenas exteriormente com o uso do traje de lã denominado Kuschma (Cuschma, etc.), mas sim também do ponto de vista musical. Particularmente conhecido é o pequeno tambor que utilizam, sobretudo quando tocam flauta. Essa prática indica não apenas o vínculo com tradições musicais andinas. Ela parece remontar a práticas introduzidas no decorrer de contactos com europeus nos primeiros séculos após o Descobrimento, denotando a assimilação de costumes populares ibéricos na região. Tanto no ritmo quando no teor tonal das melodias, essa prática musical evidencia a influência da música européia do passado. Também as danças executadas ao som dessa música - a solo ou em pares -, lembram tradições ibéricas nos passos e nos gestos dos participantes. A principal ocasião para a execução de tais danças é a festa realizada com consumo de uma bebida fermentada de mandioca ou outros produtos, comum também a outros grupos amazônicos. A flauta denominada Xondare associa-se a concepções míticas, uma vez que a sua origem remonta a Pawa - o deus do sol ; ela é tocada em rememoração do tempo em que Pawa teria vivido na terra. Por outro lado, utilizam também instrumentos musicais que podem ser constatados entre vários outros grupos indígenas do Brasil, por exemplo entre o povo Xerente e o Krahô -, como cascas e cascos presos a um cordão, utilizados sobretudo por mulheres.

A atenção principal da pesquisa deve, porém, ser dirigida à relação entre a música e as concepções religiosas. Aqui não se pode também partir apenas da idéia de resquícios de época pré-colonial. Deve-se também considerar possíveis restos de antigo trabalho missionário, sobretudo nos relatos concernentes à criação do homem e do povo Ashininka, e aqueles concernentes ao dilúvio, o que até mesmo condiciona a construção de habitações. Os cantos apresentam-se intimamente vinculados com as práticas místicas dos pajés e relacionam-se com o passáro Jakó, compreendido em sentido espiritual ou metafórico. Essas práticas estão associadas com o uso da bebida alucinogênica Ayahuasca e que, segundo a tradição, foi dada pelo deus Pawa aos Incas, tendo estes transmitido-a aos Ashininkas. O uso do ayahuasca está estreitamente vinculado com a procura de conhecimentos e com as práticas de canto dos pajés. As melodias denotam mais do que a música instrumental características próprias. Quando vários pajés atuam em conjunto, constata-se a ocorrência de canto a duas vozes e até mesmo de estruturas de cunho canônico.

(...)

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 30)/ao indice deste volume (n° 30)
zur Startseite / à página inicial