Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 30 (1994: 4)


 

Monumento em Rio Branco.
Foto A. A. Bispo. Acervo ISMPS e.V.

Ciclo de estudos

Música nas relações culturais euro-brasileiras

Sistematização e integração dos estudos culturais euro-brasileiros

- Amazônia e Brasil Central -

um projeto do ISMPS e.V. /I.B.E.M.

com o apoio de órgãos oficiais e particulares, universidades e museus
desenvolvido concomitantemente com o projeto
As culturas musicais indígenas no Brasil
do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien

realizado com o apoio do
Serviço das Relações Exteriores da Alemanha

sob a direção de

A. A. Bispo

- Acre - 

 

ETNOLOGIA DO ACRE: ÍNDIOS E IMIGRANTES

(tradução de texto de curso, Akademie Brasil-Europa)

Antonio Alexandre Bispo

(partes)

 

(...)

Por diversas razões, há poucos dados seguros a respeito dos povos indígenas da região atual do Acre. O território dos cursos superiores dos afluentes da margem direita do Amazonas foi explorado relativamente tarde, de modo que os índios dessa região, então praticamente desconhecida, raramente foram mencionados nas fontes mais antigas ou receberam atributos fantásticos. O Pe. Cristobal d‘Acuña registrou, por exemplo, a lenda de que no Purus (ou rio Cachiçuará) viviam índios gigantescos, os Curiquerês, que se enfeitavam com folhas de ouro e traziam anéis de ouro no nariz e nas orelhas. No mapa do "Rio do Omopalens" - o Purus -, realizada por Guillaume d‘Isle da Academia Real das Ciências, em 1703, tais gigantes são denominados Mutuanis, eles habitariam a dois meses de marcha a pé da embocadora daquele rio. Enquanto que se supunha haver gigantes no Purús, acreditava-se que no Jurúa viviam anões e homens com rabos. Ainda na descrição do Pará de Antonio Ladislau Monteiro Baena, publicada em 1832, pode-se constatar a permanência de tais lendas: os índios anões seriam os Caunás, os com rabos os Uginas. Ao lado de tal etnografia fantástica havia também uma geografia marcada por hipóteses: supunha-se que o Purús, famoso pela sua riqueza (salsaparilha, cacao, tartarugas, óleo, peixes), tinha as suas fontes nas alturas da cidade de Cuzco. Este vínculo com Cuzco também era suposto no caso do Juruá, pois admitia-se que teria sido esse o rio da viagem de Pedro de Orsua e Lopo de Aguirre, provenientes do Peru.

Na região dos cursos superiores do Juruá e do Purus, de acordo com as fontes conhecidas, não houve nenhuma missão no periodo colonial. Spix e Martius mencionam, no início do século XIX, que não seria possível pensar em catequização de índios nesse território. É porém difícil afirmar com segurança se esses povos tiveram ou não contactos indiretos com as missões, sobretudo através de indígenas cristianizados provenientes de outras aldeias no século XVIII, uma vez que essas regiões de difícil acesso serviam como territórios de refúgio. A história missionária não pode seguir, no caso, fronteiras nacionais estabelecidas posteriormente. Os jesuítas desenvolveram intenso trabalho missionário no Equador ao redor de 1700. Também as missões espanholas peruanas estavam particularmente ativas nessa época. Para essas aldeias eram levados também indígenas do Brasil, inclusive índios já cristianizados. Mencione-se aqui o povo Marahua, em parte já catequizado e que vivia nos afluentes do Javari e do Juruá.

A artificialidade da divisão política colonial e pós-colonial da região, com penetração por todos os lados, torna difícil toda e qualquer classificação da população indígena segundo perspectivas nacionais. Assim, as tribos regionais, na sua maioria, pertenciam até o início do século XX à Bolívia e, em parte, ao Peru, precisando ser consideradas no contexto histórico desses países, em cuja formação cultural os índios desempenharam um papel muito mais determinante do que no Brasil. Pelas suas características naturais, essa região situava-se porém mais distante dos territórios centrais da Bolívia do que dos restantes territórios de floresta dos afluentes da margem direita do Amazonas, uma vez que há uma continuidade natural entre as partes inferiores e superiores dos rios. A consideração etnológica não pode, portanto, guiar-se pelas divisões nacionais e não pode perder de vista as relações com os indígenas dos países vizinhos da Bolívia e do Peru; ela também não pode considerar as etnias atuais do Acre isoladamente daquelas do Amazonas.

O complexo determinado pelos rios também é de importância fundamental para o estudo dos contactos culturais dos indígenas com a cultura de cunho europeu. Através desses rios, os índios já se encontravam no início do século XIX em contacto com comerciantes de produtos da floresta e que se utilizavam de índios integrados na sociedade brasileira ou de brasileiros de ascendência indígena como auxiliares e intermediários.

Segundo os dados de Spix e Martius, viviam nessa região os Purus-Purus (ou Purupurus) - que teriam dado o nome ao rio -, os Amanatis e os Ita Tapuias; todos seriam temidos pela sua selvageria e o comércio com eles se fazia sob a proteção de armas; a região tão rica em cacau e salsaparilha do Juruá seria habitada pelos Catauixis, Catuquinás, Canamarés e outros povos. Até mesmo esses renomados eruditos mencionam a existência de gente com rabos - os Coatá Tapuias no Juruá - e os anões: os Cananas. Ferdinand Denis, que também cita os Purupurus (Purus-Purus) e os Catauixis, salienta o significado da produção de borracha devido ao incremento da procura européia já no início do século XIX e remonta a origem da obtenção do leite da seringueira aos Omaguas; nessa época, os seringueiros seriam em grande parte indígenas.

Um quadro dos poucos conhecimentos a respeito dessa região e de seus habitantes oferecidos aos leitores interessados da Europa ao redor de 1860 encontra-se no relato de P. Marcoy. Esse viajante compara o estado da época com aquele de 1640 a 1680 e de 1850/51. Ele se baseia em artigo publicado em jornal de Belém (Telégrafo Paraense) de 1829, fundamentado em dados de Noronha e Sampaio (1750-1774). Marcoy reconhece a falta de exatidão dos dados, uma vez que até mesmo o rio Juruá aparece confundido com o Japurá. Para o período de 1640 a 1680, registrou os seguintes grupos indígenas no Juruá: Catahuichis, Cahuanas, Marahuas, Canamahuas, Yumaas, Camaramas, Payabas, Papianas, Ticunas, Nahuas e Culinos; para a região do Purus: Purus-Purus, Muras, Abacaxis, Maués, Sapupés, Comanis, Aytonarias, Acaraiuaras, Brauaras, Curitias, Catahuichis, Uarupas, Muturucus, Catukinos e Sehuacus. O autor menciona que, no ano de 1860, na embocadura do Juruá, viviam ainda famílias do povo Anahua (antes Nahua), no interior Catahuichis e no curso superior do rio Catukinos; para o Purus, registra alguns Muras e muito poucos Purus-Purus no curso inferior, assim como Catahuichis, Catukinos e Sehuacus rio-acima. No seu mapa dos afluentes não explorados do curso superior do Amazonas, Marcoy registra Sehuacus e Canamaris no curso superior do Purus, assim como Catukinos e Canamaris no Tarauaca e no Juruá. Em geral, esse catálogo oferece um quadro da população numericamente mais reduzida da população indígena do lado direito do Amazonas em comparação àquela do lado esquerdo. Demonstra assim, uma redução considerável do número de tribos mencionadas no decorrer do tempo.

Os seguintes areais, na sua maioria em regiões fronteiriças, são citados com base em levantamentos efetuados entre os anos de 1985 e 1987:
- Alto Purus nos municípios Manoel Urbano e Sena Madureira, com 855 índios dos povos Kaxinawá e Kulina;
- Alto Tarauacá, nos municípios Feijó e Tarauacá, com um número desconhecido de índios de grupos isolados;
- Arara/ Igarapé Humaitá, no município Cruzeiro do Sul, com 200 índios de grupos Arara e Shawanaua;
- Cabeceira do Acre, no município de Assis Brasil, com 50 índios do povo Jaminawa;
- Campinas, nos municípios de Ipixuna e de Taraucá, com 150 índios dos grupos Katukina Pano;
- Colonia Vinte e Sete, no município de Tarauacá, com 40 índios do grupo Kaxinawá;
- Igarapé do Caucho, no município de Tarauacá, com 300 índios do grupo Kaxinawá;
- Jaminawa do Igarapé Prego no município Cruzeiro do Sul, com 90 índios Jaminawa;
- Jaminawa/Arara no município Cruzeiro do Sul, com 150 índios das tribos Arara Schwanawa e Jaminawa;
- Kampa do rio Amonia, no município Cruzeiro do Sul, com 400 indivíduos pertencentes a essa tribo;
- Kampa do rio Envira, no município Feijó, com 129 índios;
- Katukina e Kaxinawá de Feijó nos municípios de Envira e Feijó, com 695 índios das tribos Katukina, Shanenawa e Kaxinawá;
- Kaxinawá no rio Breu, nos municípios Cruzeiro do Sul e Tarauacá, com 167 indivíduos Kampa e Kaxinawá;
- Kaxinawá no rio Humaitá, no município de Feijó, com 375 índios dos grupos Kampa e Kaxinawá;
- Kaxinawá do rio Jordão, no município de Tarauacá, com 900 índios Kaxinawá;
- Kaxinawá Nova Olinda no município de Feijó, com 270 indivíduos;
- Kulina do Igarapé do Pau, no município de Feijó, com 76 membros dessa tribo;
- Kulina do rio Envira, no município de Feijó, com 2245 índios;
- Mamoadate, nos municípios de Assis Brasil e Sena Madureira, com 336 índios das tribos Jaminawa e Machineri;
- Nukini, no município de Mâncio Lima, com 350 índios;
- Poyanawa, no município de Mâncio Lima, com 300 índios;
- Rio Gregório, no município de Tarauacá, com 460 representantes dos povos Iauanauá, Kanamanti, Jaamamadi e Katukina Pano;
- Xinane, no município de Feijó, com um número desconhecido de indígenas vivendo isoladamente nos igarapés Tabocal e Xinane;
- Praia de Carapanã no município de Tarauacá, com um número desconhecido de índios Kaxinawá.

No Atlas publicado pelo Instituto de Geografia e Meio Ambiente do Govêrno do Acre depara-se com um número muito maior de grupos indígenas. Na área do Alto Juruá são citados, na representação cartográfica, sobretudo grupos pertencentes à família lingüística Pano (Remo, Nokuíni, Poyanawa, Payawaza, Kuianawa, Saninawa, Sipinawa, Ararawa, Kasinawa, Yauavo, Yaminawa, Kasinawa, Kapanawa, Runanawa, Yawanawa, Kontanaya, Pacanawa Yubanawa, Amahuaka, Kamarinigua, Yaminawa), os quais, em parte, pertencem à população indígena do Peru (Amahuaka, Saboibo, Pitsobu), e, em parte, como os Kanamari da família Katukina, à do Amazonas; dentro das tribos da família lingüística Aruak do Alto Juruá citam-se os Kampa, Kuria, Kujigeneri e Kulina. Na área do Alto Purus encontram-se sobretudo tribos da família lingüística Aruak (Kanamari, Kulina, Katina,a Maniteri, Kanamari), que também vivem no Estado do Amazonas (Kulino, Zuwihi-Madiha, Uaianamari, Yamamadi, Ipurinã, Kasarari). Na área do Alto Acre tem-se tribos da família Aruak (Kanamari), assim como da família Takana (Kapechene), que também habitam na Bolívia e no Peru (Mabearo, Araona).
Para a mudança da situação étnica nessa região no decorrer do século XIX contribuiram em primeiro lugar os conctactos ocorridos espontaneamente com índios integrados de todo ou em parte (tapuias) com comerciantes, na sua maioria de origem portuguesa, e os empreendimentos oficiais de descimento e aldeamento de grupos que viviam dispersos na floresta. As modificações mais profundas deram-se, porém com a imigração crescente de nordestinos. A procura de mão-de-obra na expansiva extração da borracha acarretou problemas. Talvez por essa razão, já em 1818, o último governador do Rio Negro, Manoel Joaquim do Paço, proibiu viagens pelo Purus. O Govêrno da província do Amazonas salientou numa circular às repartições oficiais, com indignação, que os índios do Juruá, do Purus e de outros rios não eram tratados como homens livres por aqueles que se dedicavam à extração da borracha, sendo às vezes forçados a esse trabalho; tal procedimento criminoso deveria ser severamente punido (Officio Provincial de 16 de julho de 1878). No decorrer da exploração crescente da região, o contacto com índios da área do curso superior do Juruá ocorreu mais tardiamente e de forma mais conflitante do que com aquelas do curso superior do Purus. A resistência indígena contra os invasores no curso superior do Juruá parece ser um indício da força das sociedades indígenas da região, ainda no começo do século XX.

Impressões a respeito das dificuldades que resultavam dos contactos e da convivência dos índios com os imigrados oferecem testemunhos da época da passagem do século. Para a área de divisa com a Bolívia, tem-se um desses retratos no relato de Albert Perl, um viajante e empreendedor alemão que visitou uma aldeia Pacaguara no Chipamanu, um dos formadores do Abunã. Ele salientou que, na época, dominava a idéia de que a tribo dos Guarayos ocupava a região do Madidi até o Madeira, passando pelo Madre de Dios, apresentando traços aparentados com os Caripunas e Pacaguaras. Ele, porém, pode constatar que nessa região ainda viviam vários outros grupos diferentes, de tipo não equivalente ao dos Guarayos. Na Barraca Carmen, deparou-se com um grande número desses últimos índios - cujo nome significaria "guerreiro" - e que teriam sido trazidos à força por uma expedição. Dos homens, apenas poucos sobreviviam e encontravam-se à beira da morte. Os índios caiam em apatia e tristeza, recusavam todo tipo de alimentação e morriam de fome.

Os grupos indígenas nessa região do início do século XX são tratados nos estudos que já podem ser considerados como clássicos de C. Tastevin e P. Rivet, publicados no órgão da sociedade francesa de geografia. Eles podem ser, em geral, ordenados em dois troncos lingúisticos: o Pano, falado por indígenas que vivem sobretudo no curso superior do Juruá, e o Aruak, falado por índios que têm a sua principal área de difusão no curso superior do Purus e afluentes. Na área do Alto Juruá, pode-se mencionar os seguintes grupos: Amahuaka, Aninawa, Kampa, Katukina, Kapanawa, Kasinawa ou Kaxinaua, Kontanaya, Koto, Kulina, Marinawa, Maseuruna, Naw ou Naua, Nukuini, Pakanawa, Poinawa, Remo, Saninawa e Sipinawa. As tribos do Alto Purus e afluentes eram: Contakiro, Imammari ou Imammali, Ipurinã, Kanamari, Kapecene e Maniteri.

Uma listagem das populações atuais nas áreas indígenas do Estado do Acre e da situação de propriedade de terras foi realizada, em 1990, pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação. São mencionados os seguintes povos: Kaxinawá, Kulina, Arara, Shawanauá, Jaminawá, Katukina Pano, Kampa, Machineri, Nukini, Poyanawa, Iauanauá, Jamamadi, além de grupos isolados não identificados. Os areais mais populosos são os dos Kaxinawá do rio Jordão, no município de Tarauacá (900 habitantes), e os Kaxinawá e Kulina do Alto Purus, no município de Manoel Urbano/Sena Madureira, com 875 habitantes. Esse último areal é também o maior (265.000 ha), seguido pelo areal Kampa no rio Amonea, no município de Feijó (247.200 ha).

A população imigrada tem diferentes origens. Em primeiro lugar, cumpre citar os portugueses, que no passado, como já mencionado, dominaram o comércio e que possuíram barracas e áreas com árvores de caucho. No primeiro plano de toda e qualquer consideração, porém, deve estar a contribuição humana dos Estados do Nordeste do Brasil, sobretudo do Ceará, mas também do Piauí, Paraíba, Pernambuco e outros. Esses imigrantes fizeram do antigo território indígena no Acre, por assim dizer, um Estado do Nordeste na floresta amazônica. As estatísticas mencionam também indivíduos provenientes de outros países europeus (Espanha) e orientais (Síria, Líbano), assim como de outras regiões do país, sobretudo do sul.

Uma boa visão de conjunto dos problemas atuais dos grupos populacionais indígenas nas diversas regiões do Acre oferece o arquivo da representação regional do Conselho Indigenista Missionário em Rio Branco, que possui uma coleção de artigos de jornal e outros documentos organizados segundo grupos étnicos e que tratam de problemas sociais e ecológicos da região. Também o Instituto de Geografia e Estatística do Acre mantém uma coleção bem organizada de documentos e artigos de jornal concernentes a povos indígenas do Acre. O Centro de Documentação Histórica e Informação da Universidade Federal do Acre conserva a coleção de José Guiomard dos Santos, antigo governador do ex-Território Federal) e que abrange os anos de 1922 a 1983.

(...)

 

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