Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 68 (2000: 6)


 

Congresso Internacional Brasil-Europa 500 Anos
Internationaler Kongreß Brasil-Europa 500 Jahre

MÚSICA E VISÕES
MUSIK UND VISIONEN

Evento especial integrado/ Integrierte Sonderveranstaltung

IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL
"MÚSICA SACRA E CULTURA BRASILEIRA"


MÚSICA E VISÕES DO PONTO DE VISTA DA ESPIRITUALIDADE
MUSIK UND VISIONEN AUS GEISTIGER SICHT

Maria Laach, 5 de setembro de 1999

Institut für hymnologische und musikethnologische Studien e.V.

 

MÚSICA E VISÕES NAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS POPULARES DO BRASIL

Dr. Antonio Alexandre Bispo

 

A exposição, que hoje abrimos neste auditório do Centro de Informações da Abadia de Maria Laach é dedicada ao tema "Música e Visões nas Tradições Religiosas Populares do Brasil". Ela consta de mais de 50 fotografias distribuídas em cartazes que elucidam vários aspectos das questões relacionadas com o tema. De fato, o título de nossa sessão de hoje e de nossa exposição pode ser entendido em vários sentidos. De forma breve, trataremos, por um lado, do problema da existência de várias visões na consideração das tradições religiosas populares do Brasil e de sua música, ou seja, da existência de vários enfoques científicos e dos paradigmas consciente- ou inconscientemente dominantes. Por outro lado, trataremos a seguir, também de forma necessariamente breve, da importantíssima questão do relacionamento íntimo, essencial e indissolúvel existente entre música e visão na própria estrutura dessas tradições, mostrando que é esse elo entre o "ver" e a música que dá a verdadeira razão de ser a esses fatos culturais.

1)

O estudo das tradições populares religiosas do Brasil tem sido condicionado em grande parte pelas imagens que se criaram do país, de sua cultura ou de determinados elementos do seu complexo cultural. Os enfoques de estudiosos do passado deixaram marcas no pensamento, na metodologia, na obra teórica e no trabalho prático das várias gerações. Temos aqui não apenas questões de pormenores ou de assuntos próprios a discussões terminológicas, conceituais, metodológicas e formais, por exemplo de definições do que seria ou não tradição popular, do que seria ou não folclore. Encontramos, é verdade, em todas as ciências humanas diferentes escolas de pensamento e de procedimento científico. O grave, no nosso caso, é que os paradigmas que predominam na nossa área levaram a êrros básicos, a mal-entendidos fundamentais, criando um quadro geral desconexo e ininteligível das nossas tradições populares. Essa situação não é apenas de sérias conseqüências para o Brasil, mas sim também para a Europa, uma vez que muitas de nossas tradições foram herdadas do patrimônio cristão ocidental.

No âmbito desta abertura não podemos tratar desta questão teórico-científica de forma pormenorizada. Vamos apenas elucidá-la com base no trabalho de 20 anos que vem sendo desenvolvido, sob a minha responsabildade, entre instituições brasileiras e a seção de etnomusicologia do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien. Tivemos a oportunidade de constatar, em todos esses anos, como é difícil a mudança de imagens sedimentadas nos meios científicos, sobretudo naqueles altamente hierarquizados, como é o da Alemanha.

Não vamos entrar aqui na elucidação dos objetivos e do histórico do instituto, já expostos em várias publicações e que serão tratados pelo seu novo diretor, Prof. Dr. Rüdiger Schumacher, na sessão de hoje à tarde. Queremos apenas sublinhar que o interesse pelo tratamento científico das questões impostas pela consideração das culturas populares nos meios eclesiásticos segundo as diretrizes do Concílio Vaticano II não se iniciou, como muitos pensam, em meados dos anos setenta. Em vários outros países, sobretudo em diversas nações da América Latina, já tinham sido organizados, desde fins dos anos sessenta, comissões, cursos e pesquisas dedicados ao estudo e às soluções dos problemas ligados aos intuitos de uma maior consideração, por parte da Igreja, das culturas dos povos e/ou das culturas populares. Lembramos aqui apenas dos cursos de música religiosa levados a efeito durante os Cursos Internacionais no âmbito dos Festivais de Curitiba em 1969 e 1970. Entre as muitas publicações da época, lembramos daquelas de autores como José Geraldo de Souza e José de Almeida Penalva. A grande especialista de música sacra no Brasil, a Sra. Eleanor F. Dewey, aqui presente, foi testemunha desses múltiplos esforços dos anos sessenta e setenta. A questão do aproveitamento da música folclórica na composição sacra foi discutida sob diferentes aspectos, inclusive em meios acadêmicos e universitários, sobretudo no âmbito da disciplina Etnomusicologia, então introduzida no Brasil. Essa discussão, que incluia naturalmente problemas conceituais e metodológicos não foi de forma alguma superficial e diletantística. A fundação deste instituto, porém, manifestou o interesse fundamental da organização pontifícia de música sacra pela questão e contribuiu para valorizar internacionalmente os trabalhos relativos ao tema.

Em todo o caso, ao entrar para o departamento de etnomusicologia do Instituto, em 1979, então sob a orientação geral do Professor Dr. Josef Kuckertz, tive de constatar que o estado das pesquisas e das reflexões estava muito mais adiantado na América Latina, em especial no Brasil, do que na Alemanha e na Europa Central. Aqui, porém, supunha-se fazer trabalho pioneiro na área, ou pelo menos trabalho pioneiramente fundamentado do ponto de vista científico, dado a longa tradição musicológica e etnomusicológica dos países europeus. De fato, do ponto de vista de apresentação formal, acadêmica, os trabalhos que então poderiam ser estudados aparentavam ser muito mais sérios e fundamentados do que os ensaios de autores não-europeus. Na realidade, porém, um estudo mais cuidadoso das idéias apresentadas revelava quase que inacreditável desconhecimento das tradições populares cristãs- ocidentais que sobrevivem hoje na América Latina. Enquanto porém os estudiosos latino-americanos em geral sempre estiveram conscientes do estado incipiente em que se encontravam, pois sabiam da falta de meios, de bibliografia e de informações, uma similar consciência auto-crítica não parecia reinar entre alguns etnomusicólogos tão cientes da situação privilegiada da disciplina na Europa e nos Estados Unidos. Caía-se em idéias ingênuas relativas a uma valorização de tradições autóctones, em um novo exotismo, com a consequente desvalorização de todo o patrimônio cultural de origem européia, o qual surgia então como algo importado e espúrio. Com isso, porém, desqualificava-se grande parte do cabedal cultural da América Latina. Essa atitude era um resultado da distância que então se observava entre a musicologia histórica e a etnomusicologia. A antipatia de certos etnomusicólogos europeus de então pela história da música levava a posições insustentáveis para o musicólogo latino-americano. Como a discussão de tais questões não poderia ser levada a efeito de forma adequada, - pela consciência então reinante de superioridade científica do lado europeu -, fui obrigado a tentar contribuir à mudança de mentalidade a partir do confronto direto de pensadores europeus com a realidade latino-americana. Passei, assim, a organizar, a partir de instituições brasileiras que orientava desde início da década de setenta, simpósios internacionais com a participação de pesquisadores europeus. Paralelamente, procurei, nos anos que se seguiram, sistematicamente, apresentar ao leitor alemão as fontes históricas relativas às tradições cristãs-européias levadas à América Latina, dando assim profundidade histórica a esses fatos culturais então muitas vezes vistos apenas como provas de decadência religiosa e cultural. Tentei superar, assim, por dois caminhos, as fronteiras disciplinares entre a História da Música e a Etnomusicologia. Não foram caminhos fáceis de percorrer, repleto de desgastantes polêmicas. É porém gratificante observar que as idéias então discutidas passaram a ser posteriormente defendidas pelos seus maiores opositores de então. Este é o caso da necessária consideração do método histórico em áreas etnomusicológicas que trazem marcas profundas do contacto com a cultura européia, como aquelas da América Latina. Gratificante é também observar que as fontes históricas levantadas e apresentadas no seu contexto cultural passaram a ser consideradas tambem por outros autores, como pudemos observar neste congresso.

Passarei a seguir, com base nos cartazes aqui expostos, tratar rapidamente dos objetivos de alguns dos principais eventos realizados nos últimos 20 anos.

Em 1981 foi possível organizar, sob a égide da Secretaria de Cultura do Govêrno do Estado de São Paulo e com o apoio de centenas de ex-alunos e colegas de magistério em escolas superiores de música, o primeiro "Simpósio Internacional ‘Música Sacra e Cultura Brasileira‘", o maior evento de cunho musicológico até então levado a efeito no Brasil e que reuniu os principais representantes da pesquisa e da vida musical do país. O principal objetivo deste simpósio foi o de mostrar a diversidade na unidade das expressões religioso-musicais da cultura brasileira. Obras de autores de diversas épocas da história e tradições populares foram apresentadas no seu respectivo contexto histórico e cultural. Procurou-se, assim, contribuir para uma tomada de consciência do perigo representado por visões particularistas na consideração da cultura musical, que sempre conduzem a um empobrecimento do patrimônio cultural. Assim, visões nacionalistas reduzem o valor de obras sem as características sentidas atualmente como próprias de um idioma musical brasileiro, sejam elas de um passado mais remoto, sejam elas do século XX; em vários círculos religiosos, por outro lado, cai-se no extremo de emprestar valor somente à cultura considerada como popular, julgando toda a música "erudita" do passado como expressão cultural de elite, condicionada pelo colonialismo e imperialismo, sem considerar que muitas obras do passado foram criadas por mestres populares e que também as manifestações da religiosidade popular pertencem ao mesmo contexto que deu origem às obras das quais temos partituras. Semelhante cuidado deve-se ter com o julgamento das expressões da espiritualidade do passado, o que tem levado à desqualificação estética e religiosa de quase toda a música sacra dos séculos XVIII e XIX e de seu banimento da prática musical nas igrejas, fato de gravíssimas consequências para países como o Brasil.

Este evento teve continuidade no "II Simpósio Internacional ‘Música Sacra e Cultura Brasileira‘", realizado desta vez na Europa, em Maria Laach e Bonn, em 1989, em trabalho conjunto com o Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa, que havia sido fundado no Ano Europeu da Música, em 1985, e que idealizou e organizou o evento. Vários pesquisadores de música e do folclore brasileiro tomaram parte nesse simpósio, dedicado especialmente ao tema "Tradições musicais religiosas e Sincretismo no Brasil". O principal objetivo desse simpósio foi também o de mudar visões na consideração da cultura musical do Brasil. Tratava-se, neste caso, sobretudo, da revisão de imagens inadequadas de várias tradições religiosas brasileiras consideradas como sendo de origem africana. Até mesmo tradições claramente de origem cristã-ocidental, tais como as "Congadas", tinham passado a a ser vistas como primordialmente africanas por alguns etnomusicólogos com pouco conhecimento do repertório cultural popular europeu do passado. Não apenas festas e outras expressões de uma religiosidade exotérica, mas também e sobretudo aquelas de cunho esotérico e místico necessitavm e necessitam ser vistas sob prismas mais adequados. Os paradigmas predominantes na pesquisa não contribuem à elucidação do sentido dessas práticas religiosas. A mudança de perspectiva, naturalmente com base em resultado de estudos solidamente alicerçados, leva neste campo a uma necessária revisão profunda dos estudos do sincretismo no Brasil e na Europa. Há muito porém a ser feito ainda neste campo, pois o paradigma antigo está muito enraizado e divulgado e muitos estudiosos não desejam que seja modificado, uma vez que alcançaram renome com base em tais visões e suposições.

Em 1992, ano comemorativo dos 500 anos do Descobrimento da América, realizou-se o terceiro simpósio desta série, desta vez no Rio de Janeiro. Este evento teve lugar no contexto do II° Congresso Brasileiro de Musicologia, organizado por várias instituições brasileiras e internacionais, entre eles o Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa, responsável pela sua idealização. O tema geral do Congresso foi "Fundamentos da Cultura Musical do Brasil". No centro das atenções esteve não apenas a questão das tradições religiosas de origem cristã-européia, mas também e sobretudo o problema das culturas musicais indígenas. Deu-se início a um projeto de levantamento do saber etnomusicológico a respeito, financiado em parte pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e levado a efeito por numerosos pesquisadores e instituições oficiais e particulares. Nesta exposição temos alguns cartazes com fotografias das pesquisas de campo realizadas entre grupos Krahô, Karajá, Tupi-Guaraní, Caripuna, Xavante, Tikuna, Tukano, entre muitos outros. Não pretendo entrar em maiores pormenores a respeito deste projeto, pois apresenta-se hoje já o segundo volume com os resultados dos estudos. Entretanto, gostaria de salientar a importância desse projeto no âmbito do tema "música e visões". Por um lado, trata-se de contribuir à revelação dos valores intrínsecos à cultura indígena, levando a uma mudança da imagem dos índios, frequentemente tão distorcida e negativa. Essa mudança de visões, com base em estudos e pesquisas, é uma questão de dever de consciência, de direito e de justiça. Creio que o revelar da riqueza espiritual dessas culturas poderá mais contribuir para a correção dessa imagem negativa do que reinvidicações agressivas. Por outro lado, trata-se de um estudo mais profundo do relacionamento entre música e visão. Se, como tentarei mostras a seguir, as tradições populares brasileiras de origem européia se ligam necessariamente a uma visão do mundo e do homem própria do hemisfério norte, levanta-se a questão da existência ou não de uma visão cultural adequada à perspectiva do homem do hemisfério sul. Este é o objetivo último desse projeto, apesar de todas as dificuldades existentes para alcançá-lo. Não preciso salientar a importância deste questionamento, pois trata-se aqui da consciência da defasagem das expressões culturais do Brasil com relação à natureza no âmbito do ciclo anual e das estações, ou seja do desenvolvimento ou não de uma cultura adequada ao mundo natural do Brasil, com todas as suas implicações para a ecologia e para o relacionamento com as outras criaturas. Mais uma vez percebe-se como a questão da visão do mundo está intimamente relacionada com a justiça e a ética.

Cito ainda, apenas de passagem, um outro evento relacionado com a temática deste congresso. Trata-se do simpósio internacional "Extremo Oriente e Ocidente: Cultura Musical e Espírito", levado a efeito em Portugal, em 1997. Preciso salientar, corrigindo possíveis mal-entendidos do relato publicado pela Comissão Municipal dos Descobrimentos de Lagos, organizadora local e formidável anfitriã do evento, que este simpósio foi planejado pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa, que até mesmo havia patrocinado e realizado uma viagem de contactos a Macau, em 1995. Também foi a partir dessa instituição que foi desenvolvido o programa do evento e idealizado o plano que levou por fim à viagem de duas pesquisadoras portuguesas a Macau. Qual a importância desse simpósio para o tema do nosso congresso? Também aqui temos claramente a questão da visão nos estudos científicos e da visão inerente a fatos culturais. Por um lado, trata-se da perspectiva ocidental ou oriental, do ponto de observação que determina a consideração dos desenvolvimentos históricos. Por outro lado, da questão da visão do mundo das culturas orientais e ocidentais, de suas congruências ou divergências. Sem uma consideração profunda dessas imagens dos céus e da terra não podemos compreender sistemas musicais de fundamentação cosmológica nem suas implicações microcósmicas, ou seja, aquelas de cunho antropológico. Como podemos discutir então mais profundamente o relacionamento entre o Ocidente e o Extremo Oriente, se não levamos em consideração as visões do universo e do homem que impregnaram a antiga cultura chinesa e a cultura da Antiguidade e do Cristianismo? Percebemos aqui que a questão da visão está relacionada com o ponto de observação, com a orientação no espaço e, consequentemente, com os pontos cardeais. Até que ponto a significação concedida ao Norte e ao Sul, ao Oriente e ao Ocidente na linguagem simbólica das diversas culturas é passível de ser relativada? Se o Norte parece ser sempre válido como ponto de orientação, sobretudo nos mares, o que determina similaridades profundas nas concepções e nas expressões culturais dos povos acima e abaixo do Equador, pode-se dizer o mesmo com relação à valorização do Oriente como lugar de nascimento do sol? Ou é do Ocidente, ou seja, do ocaso, da morte, da qual ressuscita a luz, tendo-se aqui portanto uma visão explicitamente cristã? Essas reflexões, que aqui não podemos aprofundar, revela o cerne do problema que impõe-se no estudo da música em contextos inter-culturais: se nós não podemos desnortear-nos, no sentido figurado do termo, poderíamos mudar de orientação, ou seja, de oriente?

2)

Passo agora a tratar brevemente do relacionamento intrínseco entre Música e a Visão nas tradições populares brasileiras de origem não-indígena. Uma das publicações que está sendo hoje lançada e que traz o título de "Antropologia Cristã da Música: uma Introdução", procura elucidar os princípios da linguagem de imagens, ou seja de signos, sinais e símbolos das festas populares religiosas do Brasil. A chave para o entendimento do sentido real de nossas tradições está na compreensão tipológica da Bíblia. A interpretação hermenêutica do Velho e do Novo Testamento - e não a sua interpretação histórico-crítica - é condição imprescindível para a compreensão da razão de ser e das formas expressivas das tradições levadas ao Brasil na época dos Descobrimentos. Temos, portanto, que modificar a nossa visão atual da Bíblia e da interpretação teológica da História se quisermos entender a linguagem desses fatos.

Entre os contextos do imaginário que está às bases de nossas tradições cristãs encontra-se o do mito da libertação de Andrômeda por Perseus. Esse contexto está devidamente elucidado na publicação e nas gravuras desta exposição. Esse mito é representado nos céus principalmente pelas constelações de Cepheus, Cassiopeia, Andromeda, Perseus e Pégaso, constituindo um conjunto monumental que caracteriza de forma impressionante a parte ascendente do ano, ou seja, a época que vai do inverno até o ápice da primavera, segundo as condições do hemisfério norte. Essa é a parte do ano que parte da escuridão fria do inverno e leva à primavera e ao verão, caracterizando-se portanto sobretudo por um aumento de luminosidade que passa a ser comparado com um processo espiritual experimentado pelo homem. Há um relacionamento dessas constelações com os planetas, ou seja, Cepheus com Saturno, regente de Aquário, Cassiopeia com a Lua, regente de Cancer, Andrômeda com Vênus, regente de Touro e Perseus com Mercúrio, regente de Gêmeos. Na interpretação bíblica dos céus, conhecida desde a Antiguidade, Cepheus corresponde a Adão, Cassiopeia a Eva, Andromeda à Alma de ambos, ou melhor, à Alma da Humanidade terrena, caída, libertada por fim pelo Logos, ou seja Perseus. Do ponto de vista cristão, o Homem que recuperou a coroa perdida por Adão, ou seja Cepheus, corresponde ao primeiro dos mártires, Santo Estevão. A mulher, que primeiramente viu o Cristo ressuscitado, a Maria Madalena, que substitui Cassiopeia. A figura de Andrômeda é substituída no populário religioso por Santa Bárbara, a figura de Perseus pelo Apóstolo Paulo.

Não é o caso, aqui, de entrar em pormenores a respeito dessas identificações e semelhanças, o que está elucidado com mais detalhes na publicação hoje lançada. Vamo-nos restringir à figura de Cassiopéia e de seu relacionamento com a Lua, com Eva e com Maria Madalena. Ora, a constelação de Cassiopéia assume tanto a forma de um W ou de um M e representa, assim, visualmente, a instabilidade e a mutabilidade do correspondente Tipo terreno, do qual a constelação Cassiopéia é a expressão máxima e excepcional, elevada aos céus estrelados pela sua exemplaridade.

A mutabilidade é, em primeiro lugar, característica própria da Matéria, pois esta pode receber ou perder a sua forma, por ser perecível, como, por exemplo, um objeto de barro pode perder a sua forma se for molhado. Desde a Antiguidade representa-se assim a Matéria através de um símbolo feminino, de uma bela mulher que possui a parte inferior do corpo em forma de peixe. Essa natureza aquática da parte inferior desse símbolo manifesta o fato de que a Matéria pode perder a sua beleza, transformando-se em algo amorfo, caso perca a sua forma. Este símbolo, conhecido e popular até hoje nas tradições brasileiras, pode ser compreendido também como representando uma mulher que se encontra nas águas do mar, que procura livrar-se das trevas da profundidade e portanto de sua monstruosidade aquática, aspirando à luz e adquirindo a beleza e a forma, mas sem conseguir abandonar totalmente a superfície das águas. Essa Terra-Mãe, ou, pela sua aparência, Mãe d‘Água, conhecida na Gnose da Antiguidade também como Eden (por exemplo no sistema de Justinos), vive no Brasil sob o nome de Iemanjá. Não a podemos confundir, porém, apesar de todo o íntimo relacionamento, com o Tipo representado pela constelação da Cassiopéia, assim como Eden, de cujo barro Adão foi moldado, não pode ser identificada com Eva, tirada, segundo a Bíblia, de Adão. Trata-se antes de uma relação de "mãe" e "filha", do Feminino por excelência e da primeira mulher. Na tradição brasileira, ambas podem apresentar a mesma figura, a da mulher com corpo de peixe, são, porém, distintas: uma é Iemanjá, outra é Oxum. A mulher, como Eva ou "filha de Eva", que foi tirada de Adão, feito de terra, relaciona-se antes com a água que brota da terra, ou seja, com a água doce, corrente das fontes, pois esta pode receber uma "forma", sendo contida no recepiente dos lagos. O símbolo é o mesmo, representa também a aspiração do elevar-se ao alto, libertar-se da escuridão, para onde sempre retorna, onde vive e está presa. Quanto mais sobe, mais recebe a luz e se torna bela, quanto mais desce, mais perde a luz e a sua beleza.

Para entendermos melhor essa distinção precisamos lembrar que, nas concepções baseadas nos elementos da matéria, os elementos "materiais" por excelência são terra e água. A matéria também é chamada generalizadamente de terra, que é então, por assim dizer, a mãe. Como a Criação foi feita do nada, com forma e já com todos os seus pressupostos - pois caso contrário cair-se-ia num cadeia infinita de precedências -, é somente a partir da matéria que se reconhece a necessidade de haver uma pré-materia, uma matéria-prima, por assim dizer à sua base. Portanto, como bem explica S. Agostinho, segundo critérios temporais surgiu primeiro a matéria ou terra; reconhece-se, portanto, a posteriori, a existência, nos seus fundamentos, da matéria prima, que é, assim, mais "velha" ou a "mãe" da terra-mãe, e, portanto, uma espécie de avó. O elemento terra apresenta-se, no decorrer do ciclo anual, com as suas qualidades mais salientes na época caracterizada pelo signo da virgem (regente Mercúrio). O elemento água, no signo de escorpião (regente Marte). Segundo a Gênesis, a "porção seca", que tomou o nome de terra, surgiu no terceiro dia, o que corresponde no ano à primavera (signo do Touro, elemento terra). Somente após o surgimento da terra do meio dos mares é que puderam surgir as fontes que brotam na parte alta, o que corresponde, no ano, ao signo de cancer (elemento água).

A dinâmica intrínseca ao símbolo da sereia manifesta-se sobretudo na lua, que com as suas fases corresponde bem ao movimento de subir e descer expresso no símbolo. A troca de fase na lua nova, passando de novo à fase crescente, representa um renascer e foi assim vista pelos teólogos (por ex. Ambrósio) como um sinal da ressurreição da carne. Para a compreensão dessas tradições milenares, precisamos partir sempre da distinção entre a luz e o sol, uma vez que na observação diária o sol aparece após a luz do dia, apenas dando, por assim dizer, testemunho da luz, como fazem questão de bem salientar os antigos teólogos. Assim, sol e lua são por assim dizer irmãos, como, na mitologia, Apolo e Diana. Na tradição brasileira, Oxum é compreensivelmente relacionada com a lua.

Temos de fazer, portanto, uma diferença cuidadosa entre a aplicação do símbolo da sereia, - no caso, de água doce -, a) como imagem de um Tipo e b) como sinal que indica um Anti-Tipo.
a) Vista como simples imagem, essa figura representa visualmente a mulher nas condições de existência na terra, ou seja, na região sublunar.
b) Vista como sinal que indica um Anti-Tipo, dirige a atenção à figura paradigmática da mulher que se encontrava caída mas que recuperou o seu trono, pois a sua alma foi salva de sua prisão e de suas aflições pelo Logos. No mito, essa figura paradigmática é Cassiopéia, pois a sua filha, Andrômeda, foi salva por Perseus. Na tradição cristã, trata-se de Maria Magdalena, pois a sua alma foi liberta por Cristo dos sete espíritos maus que a dominavam.

Essa diferença deve ser vista tando do ponto de vista coletivo - da História da Humanidade compreendida como mistério - como do ponto de vista individual, ou seja, no seu relacionamento com a vida interior do homem e com a mística. De fato, como elucidado, trata-se sempre da recuperação da preeminente posição de "rei" perdida pelo Homem, através da libertação e salvação de sua alma pelo Logos. Fica aqui portanto evidente que, assim como Andromeda simboliza a alma, Perseus, o Logos, também os pais de Andromeda, Cepheus e Cassiopeia, se referem a categorias ou princípios espirituais de cada um de nós. Cassiopéia (ou Eva) não deve ser portanto aqui entendida como figura histórica, mas sim no sentido de personificação simbólica de uma noção abstrata. O que seria, no nossa vida interior, mutável e instável como a mulher que sob e desce, como a lua que modifica as suas fases? Parece ser a nossa visão interior, a imagem que fazemos de nossos desejos e aspirações. É essa imagem que "vemos" interiormente, e aqui coloca-se a questão da relação entre o "ver" e o "conhecer". Lembremo-nos de que na linguagem bíblica "conhecer" também tinha o significado de união, dizendo-se assim que Adão "conheceu" a Eva. Essa imagem, esse feminino no nosso íntimo, está sempre em perigo de perder a sua beleza e luz e afundar nas trevas. Essas águas simbolizam aquilo que flui, que corre, que nem sempre é sereno mas que pode ter corredeiras, vagas e quedas perigosas: o nosso pensamento nas suas reflexões e cogitações. Essa imagem interior só pode portanto manter ou recuperar a sua posição originalmente preeminente se não for arrastada para baixo pelas correntes, ou seja, se as águas forem serenas e não houver vento perigoso. O problema, portanto, reside no "vento" que agita perigosamente as águas, na corrente tempestuosa das profundidades que faz levantar as ondas. Assim como Andrômeda, na sua prisão, é ameaçada por Cethus, um monstro das águas que o reino de Cepheus e Cassiopéia, e assim como esse monstro foi morto pelo redentor de Andrômeda, Perseus, da mesma forma o Logos vence a torrente espiritual que vem de baixo, redime a alma e a ela se une, fazendo com que a visão que o Homem tem no seu íntimo possa subir e recuperar a sua posição luminosa.

Gostaria de considerar aqui mais um aspecto deste verdadeiro drama simbólico. Sendo, no mito, Cassiopéia a mulher de Cepheus, na tradição bíblica Eva a mulher de Adão, e se Cassiopéia/Eva corresponde simbólicamente à lua, qual seria o "marido" da lua? Segundo o mito e sua interpretação na antiga Gnose, trata-se de Saturno, pois Cepheus é a ele relacionado como sendo um de seus descendentes. Sendo na mitologia a mulher de Saturno Rhea, também chamada Saturnia, então compreendemos a importância das tradições relativas a Rhea no âmbito das considerações referentes à visão. Considerando-se também que Saturno - o planeta superior do conjunto das esferas que se movimentam - também foi identificado com o Chronos, ou o Tempo, então reconhecemos o íntimo vínculo entre as águas no nosso interior - as reflexões e cogitações - e o correr do tempo. A nossa visão interior pode ser portanto ameaçada por cogitações temporais, causadas, por sua vez, por correntes de baixo. A recuperação da posição de poder por parte de Cepheus apresenta portantou uma correlação com o serenar do fluir das reflexões. Ele eleva-se a uma posição próxima ao Tempo que não passa, ao Eterno Presente ou à Eternidade presente, ou seja, ao Pai na concepção trinitária.

A visão interior do Homem está portanto intimamente vinculada com o seu Tempo interior, na linguagem simbólica como mulher e marido ou, segundo antigas concepções, como matéria e forma. Poder-se-ia, portanto, como consequência, dizer que a Forma da Visão seria, portanto, o Tempo. Quanto mais nos orientarmos intimamente pelo tempo não passageiro, pelo Eterno, vivendo o Eterno no momento presente, tanto mais a nossa visão, aquilo a que aspiramos e que tende a entrar em, manter-se-á elevada e não será arrastada para baixo. Aqui reconhecemos portanto o relacionamento intrínseco entre a visão e a música, onde a forma e a matéria apresentam-se intimamente interligadas no processo temporal do fluir musical.

O ação central do antigo mito é a redenção de Andrômeda por Perseu e a sua união, tornando-se soberanos e pais de uma grande nação, ou seja, a Pérsia. Na interpretação antropológico-cristã temos aqui a libertação da Psique pelo Logos, que a ela se une. É essa unidade que constitui agora a alma. Lembremo-nos que os antigos teólogos salientaram a necessidade de que Homem interior mantenha o domínio do corpo; que a sua alma não seja passiva, "feminina", ameaçada pelas tormentas causadas por aquilo que o Homem recebe do mundo exterior através dos seus órgãos dos sentidos, mas que ela adquira por assim dizer "masculinamente" o controle. É esse processo íntimo do Homem que corresponde, no dia e no ano natural, ao amanhecer, à primavera e ao surgir e crescer do sol. O sol é o guia por excelência, o luminar do dia, e, no homem, o seu coração. Na mitologia é Apolo, na linguagem das constelações, corresponde a Auriga, situada no alto da parte ascendente da Eclíptica, na interpretação cristã dos céus a São João Batista ou São Jerônimo, na tradição brasileira a Xangô.

O que poderíamos aprender dessas considerações? Se o Homem manifestar um coração luminoso, surgindo como um Apolo - não o guia de bois, mas aquele que recebeu a lira de Hermes -, então deixa transparecer que a sua alma não está em algemas, mas sim está liberta e unida ao Logos, como Aphrodite a Hermes: ela é hermafrodita, uma síntese de amor e beleza de Venus com a racionalidade, a lógica e a lucidez de Mercúrio. No seu íntima reina a Harmonia. Ele manifesta também que o seu espírito adquiriu novamente a coroa, que a sua razão é iluminada e que ele tornou-se um soberano no seu íntimo. A sua visão é bela, vitoriosa e fundamentada sob bases sólidas, como a imagem de Cassiopeia no céu de estrelas.

 

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Artigos completos nos Anais do Congresso "Brasil-Europa 500 Anos: Música e Visões".

Text ohne Anmerkungen, Bibliographie, Notenbeispiele und Illustrationen.
Vollständige Beiträge im Kongressbericht "Brasil-Europa 500 Jahre: Musik und Visionen".

 

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