Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 62 (1999: 6)
Congresso Internacional Brasil-Europa 500 Anos MÚSICA E VISÕES Sob o patrocínio da Embaixada da República Federativa do Brasil Akademie Brasil-Europa Pres. Dr. A. A. Bispo- Dir. Dr. H. Hülskath em cooperação com/in Zusammenarbeit mit:
Internationaler Kongreß Brasil-Europa 500 Jahre
MUSIK UND VISIONENColonia, 3 a 7 de setembro de 1999
Köln, 3. bis 7. September 1999
Unter der Schirmherrschaft der Botschaft der Föderativen Republik
Brasilien
ISMPS/IBEM
Deutsche Welle
Musikwissenschaftliches Institut der Universität zu Köln
Institut für hymnologische und musikethnologische Studien
André Herácio do Rego
Brasilianische Botschaft, Universität Paris X
"ORALIDADE" IM MITTELALTER UND IN BRASILIEN Das Phänomen der "oralidade" in ihren vielen Erscheinungsweisen
im Europa des Mittelalters und im Landesinneren des Nordostens
von Brasilien wurde bereits von einigen Autoren thematisiert und
behandelt. Es ist jedoch notwendig, die dabei verwendete Begrifflichkeit
auf Grund neuerer Studien terminologisch zu präsizieren, um das
Phänomen in seiner ganzen Bedeutung zu erfassen. So kann nach
P. Zumthor und J. Le Goff das "Mittelalterliche" über eine begrenzte
Zeitperiode hinaus bis zum Beginn des Industriezeitalters ausgedehnt
werden. Der Begriff "oralidade" darf wiederrum keinesfalls mit
Analphabetentum und "cultura oral" nicht mit "ungebildter Kultur"
gleichgesetzt werden. Der Begriff "oralidade" umfaßt einen größeren
und komplexeren semantischen Bereich als das, was "mündlich durch
das Wort überliefert wird". Dabei ist allerdings die Rolle der
Stimme hervorzuheben, d.h. ihre Fähigkeit, etwas hervorzubringen
und zu organisieren. Worte sind zwar die offensichtlichste Äußerung
der "oralidade", aber nicht die einzige und wichtigste. Das von
ihr Geschaffene ist all das, was in poetischer Weise mitgeteilt
wird, Texte, Klänge, Rhythmen und visuelle Elemente. All dies
bildet die "performance". Das Mittelalter war eine Zeit vorherrschender
"oralidade", einer gemischten "oralidade", die aus einer schriftlichen
Kultur hervorgeht und mit den geschriebenen Texten koexistiert.
Die Stimme war bei allen Gelegenheiten und an allen Orten stets
präsent. Diese Kultur der "oralidade" wurde von den ersten europöischen
Siedlern nach Brasilien gebracht. Sie waren in ihrer Mehrheit
Menschen vom Lande und noch im 16. Jahrhundert zutiefst von der
Art des Denkens, von der Mentalität des Mittelalters geprägt.
Dies waren die Menschen, die von der Küste Brasiliens aus ins
Landesinnere vordrangen. In diesen schwer zugänglichen Regionen
konnten einige Eigenarten der Gesellschaft und der Kultur der
ersten Siedler bis heute bewahrt werden. So enstand auf der anderen
Seite des Atlantiks eine vorwiegend "oral" geprägte Gesellschaft,
die zwar Unterschiede, aber auch Gemeinsamkeiten mit der europäischen
früherer Jahrhunderte aufweist. Eine der bedeutenden Ausdrucksweisen
dieser "oralidade" des Hinterlandes ist die "cantoria", die u.a.
von Dulce Martins Lamas untersucht wurde. Wir wollen zwar nicht
behaupten, daß die heutigen Sänger des Nordostens die unmittelbaren
Nachkommen der Sänger des Mittelalters sind, auch deshalb nicht,
weil sich diese in einer Vielzahl von Typen mit besonderen Eigenarten
unterschieden. Es bestehen jedoch offensichtlich Zusammenhänge,
sei es in sozialer oder in okölogischer Hinsicht, die beide Phänome
auf europäischer und brasilianischer Seite miteinander verbinden.
O presente trabalho, dedicado ao fenômeno que se convencionou chamar de "oralidade", nas suas manifestações na Europa do medievo e no Nordeste brasileiro de até anos atrás, foi inspirado na leitura das obras do ensaísta Paul Zumthor "Introdução à poesia oral" e "A letra e a voz - da literatura medieval", bem como do artigo da professora Dulce Lamas Martins, "A música na cantoria nordestina", publicado na coletânea "Literatura Popular em Verso - Estudos", da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Antes de começar o estudo propriamente dito, convém delimitar, ou pelo menos precisar, alguns termos, essenciais para o seu entendimento.
O primeiro deles é a expressão "Idade Média" e seu adjetivo, "medieval". Adotaremos o ensinamento de Paul Zumthor, que, seguindo a lição de Jacques Le Goff, nos fala da existência de uma "longa Idade Média", que se estenderia do IV século até aos começos da era industrial, e cujo espaço físico privilegiado seria o núcleo territorial que englobava o império carolíngio, a Península Ibérica, a Itália central e meridional, e a Inglaterra do centro e do sul. Levaremos em consideração, também, as palavras de Umberto Eco, para o qual o termo "Idade Média" foi criado para designar uma dezena de séculos que ninguém havia conseguido determinar, a meio caminho entre duas idades "excelentes".
Delimitemos agora o termo "oralidade". Antes de mais nada, convém estabelecer que "oralidade" não implica "analfabetismo". Não se pode confundir "cultura oral" com "cultura iletrada". A "cultura oral" pode ser erudita ou popular, de acordo com a ocasião, se bem que essas designações não estejam totalmente de acordo com a realidade. Outra observação a ser feita é que, para Zumthor, a expressão "oralidade" abrange um campo semântico maior e mais complexo do que o simples conceito de "transmitido pela palavra". Zumthor privilegia a função da voz, ou seja, "o exercício de seu poder fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e organisar a substância". A palavra, então, seria a manifestação mais evidente da "oralidade", mas não a única nem a mais importante. Nesse sentido, Paul Zumthor define como "obra" aquilo que é poeticamente comunicado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais". Todos esses fatores constituem a "performance".
A "oralidade" pode ser subdividida em três categorias:
I - oralidade primária, na qual não há nenhum contato com a palavra
escrita:
II - oralidade mista, que procede da existência de uma cultura
"escrita" e que coexiste com a palavra "escrita", mas sem sofrer
sua influência próxima; e
III - oralidade segunda - que se consubstancia a partir da "escrita"
e que procede da existência de uma cultura dita "letrada".
"Oralidade", por outro lado, não implica em "improvisação". A obra, para ser definida como oral, não necessita ser criada no momento mesmo da "performance". Ela pode ser originária da tradição oral, ou seja, daquela tradição herdada dos antepassados. Não se deve, portanto, confundir "tradição" oral com "transmissão" oral, esta última se concretizando no momento da perfomance.
Vale observar, também, que, segundo Zumthor, praticamente todo texto pode ser considerado, em alguma medida, oral. Assim, existem o que ele convencionou denominar "índices de oralidade" nos textos, que nos demonstram a intervenção da voz humana na sua "publicação". São eles, por exemplo, os títulos ou capítulos nos quais eram divididos os textos medievais, para facilitar sua leitura pública; e a pontuação e as rimas, que identificavam as pausas rítmicas, transformando os textos da época medieval em verdadeiras "partituras": os textos eram lidos em voz alta, quase como um recitativo. Nesse contexto, "verso" e "prosa" podem ser considerados como termos extremos de uma escala ideal: o que os distingue é o ritmo.
Por fim, precisemos o conceito de "Nordeste" e de "nordestino", ao dizer que privilegiaremos a parte interior dessa região, árida, selvagem e isolada, o "Sertão", contrapondo-se à sua parte litorânea ou quase litorânea, de clima mais ameno, a "Zona da Mata".
Passando ao estudo propriamente dito, começaremos por afirmar que a Idade Média foi uma época de oralidade predominante. De oralidade mista, de acordo com Zumthor. A voz estava presente em todas as ocasiões e em todos os lugares. A presença da palavra escrita se limitava a ilhas num oceano de oralidade. E mesmo os textos escritos eram "oralisantes", porque destinados a serem lidos em alta voz, condição sine qua non para sua "publicação", para sua "realização" como instrumento de comunicação. Nesse sentido, tais textos possuíam características, "fórmulas", que nos permitem recuperar sua oralidade: capítulos muito pequenos, para permitir interrupções frequentes na leitura e, por via de consequência, para permitir o repouso do narrador; a pontuação e as rimas, para tornar a leitura mais agradável à audiência; as intervenções do narrador no texto (no estilo dos "or commence chanson", "orrés chanson", etc.), e que nos relembram que tais textos eram escritos para serem lidos em voz alta, para serem transmitidos a uma audiência, para serem partilhados com a comunidade.
Essa predominância durou até o século XV. O homem medieval então se afastou da espontaneidade da vida comunitária, dos espetáculos improvisados, do seu próprio corpo, no sentido bakhtiniano do termo. "Uma arte que repousava sobre as técnicas de "assemblage", de combinação, de colagem, sem preocupação de autenticidade das partes, recuou e cedeu o passo rapidamente a uma arte nova, animada por uma vontade de singularização", escreveu Zumthor. Nesse momento, o uso da voz foi marginalizado, abrigando-se na zona da chamada "cultura popular".
Em resumo, as características da oralidade medieval seriam as
seguintes:
I - predominância da voz sobre a escrita: para ter eficácia, mesmo
os textos escritos deveriam se tornar "orais";
II - a voz assinalava a maneira pela qual os homens se situavam
no mundo e em relação aos seus semelhantes: era social tanto quanto
individual. Era o instrumento priviliegiado da aplicação do direito,
do exercício do poder, da transmissão dos conhecimentos e da palavra
de Deus. A voz, por conseguinte, englobava as três ordens características
da sociedade feudal: os que rezam, os que lutam (ou exercem o
poder) e os que trabalham;
III - devido à importância da voz, seu intérprete exercia um papel
muito especial, embora ambíguo, na sociedade: representava, de
um lado, a autoridade e a estabilidade e, de outro, o nomadismo
e a instabilidade - seu lado carnavalesco num mundo de "teatralidade
ambiente". Seu papel englobava vários outros: cantor, músico,
declamador, instrumentista, e autor; e
IV - havia certa identidade entre oralidade e mundo rural: o espaço
privilegiado da voz era o campo, fundamento do que nos podemos
denominar "sociedade medieval", o que não exclui, é claro, a presença
de manifestações da oralidade nas vilas e outros centros urbanos.
A cultura de "oralidade" da Europa medieval foi trazida pelos
primeiros colonizadores ibéricos para o Novo Mundo. Não se tratavam
tais colonos, na sua maioria, de gente ilustrada, informada das
novas descobertas da "Renascença". Eram em geral camponeses, afastados
do Reino pela falta de terras, ou desocupados urbanos que decidiam
cruzar o Mar Oceano à procura da fortuna que não tinham na sua
terra natal. Tais pessoas estavam profundamente impregnadas, ainda
no século XVI, da visão de mundo, da forma de pensar, da mentalidade
daquilo que se convencionou chamar "Idade Média".
E foram esses colonos que povoaram o litoral do Brasil e se foram
adentrando pelo Sertão, que conquistaram ao indígena e que ocuparam
até o final do segundo século da colonização. Região de difícil
acesso, o sertão brasileiro possibilitou a conservação de algumas
das características da sociedade trazida pelos primeiros colonizadores,
que, somadas ao resultado das adaptações ao novo meio, conformaram
a sociedade sertaneja de até algumas décadas atrás, de antes da
invasão das estradas, do rádio e da televisão.
Criou-se assim, do outro lado do Atlântico, uma sociedade predominantemente oral, com as suas especificidades, é certo, mas com muito em comum com a sua congênere européia dos séculos anteriores.
A manifestação mais conhecida da oralidade sertaneja é a "cantoria",
cujas características foram apontadas por Dulce Lamas Martins
no ensaio mencionado, e que seriam, entre outras, as seguintes:
I - era cultivada por gente que vivia, quase sempre, confinada
em zonas rurais, mais insuladas e menos sujeitas às mudanças do
meio urbano;
II - era música funcional sujeita à estética de uma comunidade,
cujos meios de preservação são representados principalmente pela
transmissão oral;
III - por isso mesmo, o seu intérprete tem uma interação profunda
com a audiência, que chega a confundir-se com solidariedade. A
arte dos cantadores é, como toda criação artesanal, comunitária,
diz Dulce Lamas Martins;
IV - a rítmica da cantoria é oratória, provém diretamente da prosódia;
e
V - o seu intérprete, o cantador, muitas vezes de vida errante,
tem um papel múltiplo comparável ao seu congênere europeu: ele
canta, declama, toca a rabeca, viola ou pandeiro, compõe os versos,
imprime o folheto, vende suas produções na feira.
Tais características não correspondem em sua totalidade à realidade do sertão de hoje, ligado ao Brasil e ao mundo pelos meios de comunicação, mas foram bem concretas até algumas dezenas de anos atrás. Foi justamente nesta época a Idade de Ouro da cantoria e da literatura de cordel nordestinas, com representantes que se tornaram legendários (alguns sempre o foram, já que nunca existiram), como por exemplo Romano Caluête, Inácio da Catingueira, Riachão, o cego Aderaldo, o cego Sinfrônio, Rio Preto, Antônio Marinho e Pinto do Monteiro, entre os cantadores, e Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde, Francisco das Chagas Batista e José Pacheco, entre os autores de cordel. No caso destes últimos, note-se que viviam quase sempre na cidade grande, sobretudo no Recife, mas sua formação havia ocorrido inteiramente no meio rural.
Não é de se estranhar que, nesse contexto, se façam tão presentes no repertório desses intérpretes narrativas e estórias da Idade Média européia, das quais a que possui o ciclo mais recorrente é a de Carlos Magno e os Doze Pares de França, mas não somente. Os folhetos de cordel mais antigos, recitados na feira pelos cantadores, e alguns motivos das cantorias parecem indicar a nostalgia de um passado dalém mar, oral, estranho ao Novo Mundo, e profundamente europeu.
Não chegaremos ao ponto de afirmar que os cantadores nordestinos são herdeiros diretos dos intérpretes musicais da Idade Média, até mesmo porque estes se subdividiam em uma plêiade de variações, todas com as suas particularidades: troubadours, trouvères, Minnersingern, juglares, jongleurs, skops, scaldes, goliards, etc. O que parece existir, no entanto, é uma comunhão de características, tanto sociais quanto ecológicas, que aproxima os dois fenômenos, o europeu e o sertanejo. É bem verdade que a cantoria e a literatura de cordel somente ganharam força e notoriedade a partir da segunda metade do século passado, período já bem distante dos primórdios da colonização brasileira, quando teria havido esta "recepção" da cultura oral européia anterior ao Renascimento. Mas quem poderá negar que, numa sociedade isolada e conservadora (no sentido etimológico da palavra) como a sertaneja, estaria presente aquele elemento apontado por Paul Zumthor como indício de uma "cultura de oralidade predominante", a "teatralidade ambiente", o sentido de "jogo", de "festa" (conforme Bakhtin) expresso sobretudo na festa popular por definição, o carnaval, mas também nas procissões, nas cantorias, e em outros fenômenos"
Com esta indagação, que estimo também seja considerada uma "provocação", encerramos este trabalho, na esperança de que possa ter contribuído para o debate, multidisciplinar, sobre tema tão amplo e interessante quanto o "Brasil/Europa 500 anos: Música e Visões".
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