Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 22 (1993: 2)


 

Luís Heitor Correa de Azevedo
e a institucionalização universitária da disciplina Folclore

No dia 25 de maio desse ano (1938), Luiz Heitor Correa de Azevedo proferiu a sua aula inaugural da cadeira de Folclore na Universidade do Brasil. Mário de Andrade salientou a importância do fato: "Porque é uma coisa bastante dolorosa a historia do folclore scientifico, sem amadorismo, em nosso paiz. (...) Já no Instituto de Artes, da Universidade do Districto Federal, tinhamos iniciado essas pesquisas, sob a direcção do professor Brasilio Itiberê. Mas fecharam a universidade, quebraram mais uma vez as nossas asas. Esta cathedra nova da Universidade do Brasil fora incluida por Luciano Gallet, Sá Pereira e por mim, faz já bastantes annos, quando foi da reforma pedagogica da Escola Nacional de Musica. Mas, interpretaram a cadeira como de composição (...) Por isso foi posta de lado durante todos estes annos de espera (...) ."

Cit. A. A. Bispo, Martin Braunwieser (...),261-262

 

MATERIAIS PARA A REMEMORAÇÃO DE UMA DISCUSSÃO

Mário de Andrade

(Trechos)

"O recente concurso para provimento da cadeira de Folclore Nacional, na Escola Nacional de Música, poz violentamente na ordem do dia o problema da existência do quarto-de-tom na música brasileira. Aliás o problema se estendeu á musica em geral. O candidato inscripto para o concurso era o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, um nome que mesmo os que não se dedicam á musicologia devem guardar, como umd dos excellentes valores novos do Brasil. Já no Congresso da Lingua Nacional Cantada, o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo se destacara pala sua importantissima contribuição, de pesquisa historica, sobre as manifestações do canto em portuguez no theatro de opera nacional do seculo dezenove. E tambem os seus trabalhos de realisação dos baixos cifrados de algumas obras do padre José Mauricio, bem como o recenseamento geral dos operistas nacionaes, publicado recentemente pelo Ministerio da Educação, representam trabalho de pesquisa consideravel e do maior interesse.

Ora, como these de concurso, o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo teve uma dessas audacias proprias dos temperamentos jovens e realisadores, lembrou-se de codificar o que se sabe sobre "Escala, Rhythmo e Melodia na Musica dos Indios Brasileiros", tirando naturalmente algumas conclusões de ordem geral. Estudarei essa interessantissima these noutro artigo futuro. Mas, depois de estudar e pesar mais ou menos tudo quanto se tem escripto sobre a melodica e os systemas escalares dos amerindios do Brasil, o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo concluiu que os nossos indios não empregam o quarto de tom nas suas musicas, indo, pois, assim, directamente de encontro á supposição muito affirmativa do extincto musicologo Luciano Gallet. Este pesquisador, tendo ouvido os ultimos phonogrammas não estragados, colhidos por Roquette Pinto durante a sua viagem pela "Rondonia", apesar da deficiencia da audição, affirmou que os indios cujo canto fôra registado nos ditos phonogrammas, empregavam escalas que lhe pareceram differentes das nossas, com a interferencia "talvez" de quartos de tom.

O sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, com boa argumentação, negou a possibilidade de existencia da supposicão de Luciano Gallet, e foi mesmo bem mais longe. Escudado nos admiraveis estudos de Curt Sachs sobre a musica oriental e da Antiguidade, e ainda nas affirmativas bastante levianas de Julien Tiersot, demonstrou, sem affirmar, clara propensão para negar a existencia do quarto de tom na musica dos gregos antigos, e em outros systemas musicaes existentes fóra da Europa. Isso provocou, na defesa da these, forte discussão entre candidato e examinadores, discussão absolutamente excepcional no Brasil, pois que se conservou espantosamente dentro dos limites da boa educação. Parece mentira, mas juro que não se escutou a menor grosseria.

Na verdade, ha primeiramente que nos entendermos sobre a conceituação do quarto de tom. Aos leigos e a muito musico mesmo, a primeira idéa e mais constante que se faz do quarto de tom é que ella seja a divisão do semitom em duas metades. Ora isso não se pode praticamente dar, e nem mesmo se dá com o semitom que jamais foi a divisão do tom em duas metades. (...) O systema temperado, para os que não são technicos, consiste em desafinar levemente, emperceptivelmente ao ouvido commum, a afinação por quintas, de forma a fazer com que os dois semitons existentes pela entoação natural, dentro de cada tom, coincidissem. Foi o que permittiu a afinação actual dos instrumentos de teclado, que de outra forma não poderiam attribuir a uma só tecla os dois sons naturalmente distinctos que são, por exemplo, o dó sustenido e o ré bemol, os dois semitons existentes entre o som dó e o som ré.

(...)

Em todos os povos em que se tem registado a existencia de sons intermediarios dentro do semitom, estes quartos de tom são sempre floreios de virtuosidade, "chromatismos", no sentido grego da palavra, colorações episodicas de enfeite. Neste conceito, de som fixo usado exclusivamente como enfeite, creio que o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo foi longe demais esposando de alguma forma a these de Curt Sachs, e pondo em duvida a existencia de quarto de tom na musica grega da Antiguidade classica. These, aliás, tanto mais infecunda, que hoje não poderemos mais provar coisa nenhuma. Nesse passo poderiamos até destruir em maxima parte a rhythmica de Aristóxeno, e negar aos gregos, por exemplo, a eliminação dos accentos, coisa que a nós nos parece impossivel.

 João Itiberê da Cunha

"Compunham a mesa examinadora: a professora Joanídia Sodré, na qualidade de presidente; e os professores Mário de Andrade, Brasílio Itiberé, Renato Almeida e Assuero Garritano.
Sorteado o último ponto, coube ao candidato dissertar sobre: Escalas musicais empregadas no folclore.
(...) Luiz Heitor sentiu-se à vontade nesse emaranhado histórico, pré-histórico e anti-diluviano. Parecia ter vivido com as várias tribos de índios, com os jesuítas, os catequistas da era colonial, os vários folcloristas de todos os tempos."

Rio de Janeiro, 26 de março de 1939

E quanto aos amerindios do Brasil, terão elles usado o quarto de tom, como suppoz Luciano Gallet, ou não o conhecem, como affirma o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo? Aqui, minha opinião pende francamente para a negativa, embora minha argumentação se escude no argumento a que o sr. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo deu menos importancia em toda a sua these, não tendo propriamente se servido delle para negar a existencia do quarto de tom. Quem quer escute algum canto dos nossos indios menos influenciados pelo contacto com o branco, logo tem aquella mesma sensação de estranheza que Luciano Gallet teve, e eu tive, escutando os phonogrammas existentes no Museu Nacional. Fica-se, ao primeiro contacto, completamente despaisado; tem-se a sensação immediata de que os indios estão cantando em sons differentes dos nossos. É que a caracteristica principal, e talvez mais generalisada, da maneira de cantar dos nossos indios consiste numa oscillação constante dentro dos sons universalmente usados. O canto se desenvolve por aproximações destes sons reconheciveis, inteiramente envolvidos numa nasalação confusionista, empregando systematicamente portamentos arrastados, voluntarias indecisões de entoação, uma verdadeira nevoa sonora, dentro da qual difficilmente se destaca o perfil da melodia. Quem quer deseje ter uma sensação, um conhecimento aproximado do que seja a maneira de entoar dos nossos indios, vá escutar certos cantos collectivos dos nossos caipiras de São Paulo, as dansas de Santa Cruz, em Carapicuiba, respostas de muchirão, inicios vocaes de sambas ruraes ou do bailado "Moçambique". Estas manifestações, em que a indecisão sonora da melodia é systematica, dão uma sensação aproximada, do processo de entoar dos amerindios do Brasil.

Aliás parece que este processo de entoação, verificado por quantos viajantes, ethnographos e musicologos escutaram o canto dos nossos indios, se estende a todos os amerindios de uma e outra America. O professor Hornbostel, que estudou, no Phonogramm-Archiv de Berlim, os phonogrammas recolhidos por Koch-Gruenberg no Brasil, tem a respeito uma affirmação categorica. Dos ésquimos do extremo norte aos habitantes do extremo sul, affirma elle, os primitivos americanos manifestam uma unidade estilistica em musica, perceptivel a qualquer profano. Unidade que distingue os amerindios de quaesquer outros habitantes dos outros continentes. E a principal caracteristica dessa unidade, segundo o professor Hornbostel está justamente nessa maneira oscillante de entoar, que em todos os amerindios é systematica, e consiste em cantar os sons eternos por aproximações apenas, envolvendo-os de portamentos e indecisões sonoras. É verdade que Izikowitz põe em duvida estas affirmativas de Hornbostel e promette argumentar contra ellas. Mas por emquanto prometteu apenas.

Diante, pois, do conceito que se póde ter de quarto de tom, não é possivel acceitar, como tal, os sons emittidos pelos amerindios em sua maneira de cantar. A infixidez sendo systematica entre estes, até para os sete sons da escala diatonica, este caracter geral impede a fixação de sons chromaticos menores que o semitom. E, ainda mais, o que é caracter geral e constante, não póde ser tomado como elemento de enfeite, como "chromatismo". Assim se uma ou outra vez os nossos indios da America, no estado actual dos nossos conhecimentos sobre a sua melodica, attingirem algum quarto de tom fixado, supponhamos, por Alois Haba, este som será uma coincidencia méramente occasional, e não o resultado de um systema."

(Quarto de Tom, O Estado de São Paulo, 16 de abril de 1939)

 

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