Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 22 (1993: 2)


 

VÍNCULOS ENTRE A HISTÓRIA E A ETNOLOGIA
NA CONSIDERAÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO INDÍGENA À CULTURA MUSICAL DO BRASIL

(Homenagem a L.H.Correa de Azevedo, H. Cameu e J.Baptista Siqueira)

Antonio Alexandre Bispo

 

Na sessão do II° Congresso Brasileiro de Musicologia dedicada às investigações e hipóteses acerca da contribuição musical indígena à cultura musical brasileira - no contexto geral constituído por tradições de diversas origens - foram salientados nomes de alguns estudiosos que se destacaram na área e de compositores que procuraram basear-se em material de proveniência indígena. Nessa sessão não poderia faltar o nome de Luís Heitor Correa de Azevedo e a lembrança da sua defesa de tese no concurso para provimento da cadeira de Folclore Nacional na Escola Nacional de Música, em 1939. Por motivos de saúde, o Professor L. Heitor Correa de Azevedo(†1992), que muito colaborou com o editor na organização do evento, não pôde estar presente no congresso. A presidente da sessão, Profa. Dra. Dulce Martins Lamas († " 1992) homenageou-o na abertura dos trabalhos.

A seguir, rememorou-se a personalidade de Helza Cameu, membro da Sociedade Brasileira de Musicologia desde a sua fundação e colaboradora do editor à época de institucionalização do primeiro curso superior de Etnomusicologia indígena no Brasil, em São Paulo, em 1972/3. Tendo realizado estudos com renomados professores e compositores, como Alberto Nepomuceno, João Nunes, Agnelo França, Francisco Braga, Lorenzo Fernandez e Heitor Villa-Lobos, Helza Cameu desenvolveu, ao lado de sua atuação como pianista e compositora, intensa atividade como conferencista, aquí abordando sobretudo temas indígenas. Seus estudos etnomusicológicos tiveram início em 1930, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, então dirigido por E. Roquette Pinto. Esses estudos foram continuados na Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Indios, chefiado pelo Dr. Herbert Serpa. A principal influência nos seus conceitos e interpretações recebeu Helza Cameu de Darcy Ribeiro, de 1948 a 1951. De 1962 a 1964, Helza Cameu realizou novamente um estágio no Museu Nacional, cuja seção de Antropologia era então dirigida por Luiz de Castro Faria. Com base nesses seus estudos e também em contactos realizados no Museu do Indio, dirigido por Ney Land, a pesquisadora pôde terminar, em 1972, a sua grande obra dedicada a Andrade Muricy, Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. (Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1977.)

Na introdução dessa obra, Helza Cameu manifesta a sua preocupação por questões fundamentais de cunho teórico no tratamento do tema. Para ela, no estudo etnomusicológico, o mais importante seria investigar a razão pela qual o índio pratica música e como a compreende. Segundo a autora, muito do que teria sido observado até então não resultaria da própria informação do índio. Sempre fora o observador que se colocara em primeiro plano. A crítica fundamental de Helza Cameu dirigia-se à interpretação dos documentos históricos e de dados obtidos em relatos, lamentando a existência de comparações impossíveis e de suposições absurdas.

Abordando a questão da influência missionária na transformação das culturas indígenas, Helza Cameu defendia a convincente opinião de que muito mais penetrante, mais duradoura e, por isso mesmo muito mais significativa teria sido e seria a aproximação e o convívio dos indígenas com indivíduos ou grupos. A sua atenção concentrava-se na tentativa de explicar as manifestações musicais de hoje de maneira a provar que a música indígena existe de fato, atravessando estágios desiguais, todos, entretanto, possivelmente enquadrados numa fase do desenvolvimento da música em sí. Esse intuito levaria obrigatoriamente, segundo a pesquisadora, à revisão de toda a documentação nesse sentido, desde a época dos Descobrimentos até as pesquisas mais recentes.

Parte considerável da Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira de Helza Cameu pertence, portanto, ao domínio da História e é com base em métodos rigorosos de crítica histórica que necessitaria ser considerada e eventualmente revista em suas interpretações e conclusões. Essa necessária tarefa somente pode ser efetuada, porém, com o conhecimento aprofundado dos pressupostos histórico-culturais e músico-terminológicos dos autores dos relatos. Em vários casos, na tendência a minimizar o grau de influência externa no desenvolvimento próprio das culturas indígenas, a consideração histórica desses documentos por parte de Helza Cameu é infelizmente pouco exata, levando a hipóteses tão insustentáveis como aquelas que já tinham sido alvo de advertência por parte da autora. Este é o caso, por exemplo, do Toré, que está a exigir até hoje estudos mais aprofundados e, sobretudo, da dança do Bate-pau dos índios Terena do Mato Grosso. Já a fotografia do etnólogo Roberto Cardoso de Oliveira, de 1957, incluída na obra, demonstra insofismavelmente que aquí se trata de assimilação indígena de práticas tradicionais de danças de combates comuns à Idade Média européia e já estudadas em muitos de seus aspectos.

A obra de Helza Cameu, constituindo marco no estudo sintético das referências históricas a respeito das culturas musicais indígenas, em função do presente, constitui também obra que deve ser considerada como ponto de partida para novos estudos da Musicologia Histórica no tratamento de documentos e que devem ser investigados através de métodos científicos apropriados.

Particular atenção foi dada, no âmbito do Congresso, à obra do Prof. Dr.João Baptista Siqueira. Embora não fazendo parte dos quadros sociais da Sociedade Brasileira de Musicologia e até mesmo não desejando ser homenageado, a organização do Congresso entendeu ser uma questão de justiça e de obrigação moral e científica considerar pelo menos em poucas palavras os trabalhos musicológicos de um maestro, compositor e professor intimamente vinculado com a história da Escola de Música da U.F.R.J., da qual foi diretor (1971-1975), e que como ninguém poderia ser mais indicado para tratar com conhecimento de causa do tema da sessão.

Baptista Siqueira, Nordeste: Sinfonia com solo de piano e Jandaia, poema sinfônico. Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, reg. Henrique Morelenbaum. Discos Uirapuru
Nascido no Estado da Paraíba, João Baptista Siqueira teve a sua formação no âmbito tradicional das bandas de música nordestinas, atuando como mestre e compositor em várias cidades do interior e visitando Pernambuco e o Ceará. Desde 1928 no Rio de Janeiro, Baptista Siqueira passou a atuar em conceituada banda militar e em orquestras populares. Após fazer estudos no então Instituto Nacional de Música e posteriormente Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, Baptista Siqueira tornou-se, em 1938, assistente da cadeira de harmonia da instituição. A sua carreira de compositor foi particularmente marcada pela execução de duas obras de maior envergadura e de inspiração indígena: o poema sinfônico Guriatã, executado em 1943 pela Orquestra Sinfônica Brasileira, fundada pelo seu irmão, Mtro. José Siqueira, e o bailado Muiraquitãs, apresentado no ano seguinte. De sua obra como compositor dedicado a assuntos de cunho indígena cumpre salientar o poema sinfônico Jandaia, de 1947, e Boiúna, de 1948.

Neste contexto não cabe considerar a sua atuação e a sua obra como professor de matérias teóricas. Importante, no caso, é reconhecer que a atenção a questões teórico-musicais próprias a suas atividades como professor de harmonia uniu-se ao fascínio pelas culturas indígenas e ao conhecimento das tradições musicais de sua região natal. Partindo da convicção de que o indígena constituiria ainda a base étnica da população de estados do Nordeste, o interesse musicológico de Baptista Siqueira dirigiu-se à demonstração da importância da contribuição indígena à cultura musical de sua região através de um prisma teórico-musical. Essa tendência de natureza sistemática na investigação de questões históricas concernentes ao folclore musical, compreendida como expressão de método propriamente científico por Baptista Siqueira, manifestou-se no seu ensaio Influência ameríndia na música folclórica do Nordeste, de 1951, trabalho oferecido a Joaquim Ribeiro, debatido e aprovado no I Congresso Brasileiro de Folclore.

O parecer de Mariza Lira a respeito deste trabalho deixa transparecer a boa vontade dos estudiosos na aceitação de hipóteses que possibilitariam reconhecer uma maior importância à influência indígena no folclore musical:
"Antes de mais nada não é justo chamar-se a esse trabalho de Baptista Siqueira de tese, caberia com mais acerto denominá-lo Monografia científica, porque se trata, na realidade de uma observação em tôrno de um fato científico.
Era, até então ponto pacífico entre os folcloristas que versaram o problema musical, a negação da influência amerindia em nossa música folclórica, talvez porque não levassem em conta a vastidão do nosso país.
Baptista Siqueira contesta essa afirmativa, e procura demonstrar, através de documentação paralelística, o influxo da música ameríndia na música popular da região chamada por Euclides da Cunha de Tapuiretama.
Do simples exame dessa monografia percebe-se que seu autor procurou primeiro observar nas melodias da região citada, certas particularidades diferentes das que ocorrem em outras regiões do país. Experimentou, de várias maneiras, as linhas melódicas desses cantois do povo, descobrindo neles, finalmente, características gerais (...).
De fato há um limitado número de exemplos, mas não é a quantidade que revela o fenômeno científico, mas o fato de sua confirmação, quando submetido à análise e comparação.
(...) Não é possível negar que a monografia de Baptista Siqueira vem abrir no folclore musical brasileiro uma insofismável polêmica." (Cit. em Baptista Siqueira, Influência Indígena na Música Folclórica do Nordeste, Rio de Janeiro 1951)

Esta polêmica citada por Mariza Lira é aberta pelo próprio Baptista Siqueira, intitulando o primeiro ítem de seu ensaio de "A suposta contribuição jesuítica" e concluindo-o com a relativação da importância dada à contribuição modal do Canto Gregoriano para a formação da música brasileira. Tal relevância dada ao canto litúrgico parecia improvável a Baptista Siqueira. Apesar das citações de autores do passado, a demonstração de suas convicções é feita não apenas através da análise de melodias como também através de conjecturas a respeito da teoria medieval. E aquí reside o ponto cientificamente mais vulnerável dos esforços de Baptista Siqueira em provar uma maior importância da contribuição indígena no folclore musical do Nordeste. Ao invés de criticar as limitações de uma consideração histórica que apenas partia do Canto Gregoriano como portador de linguagem modal, Baptista Siqueira entrou em considerações a respeito do próprio canto litúrgico. O estado geral deficiente da investigação das tradições populares dos fins da Idade Média e da época do Descobrimento e a pouca divulgação de estudos correspondentes no Brasil foram a causa também do mal-entendido que levou Baptista Siqueira a considerar o conjunto instrumental do Cabaçal como "um marco tradicional de nossa raça" no contexto de um ensaio dedicado à influência indígena, hipótese esta que a Musicologia Histórica tem hoje que considerar como insustentável.

Os esforços sistematizantes e musicológico-comparativos de Baptista Siqueira tiveram continuidade sobretudo com a publicação de seu ensaio, em 1956, intitulado "Pentamodelismo nordestino", também baseado em dados folclóricos.

A sua grande obra referente ao tema foi "Os Cariris do Nordeste", publicada em 1978. Sempre preocupado com a verdade histórica a ser desvendada através de estudos de cunho analítico, Baptista Siqueira procurou neste ensaio também estudar fundamentos linguísticos que pudessem auxiliar a compreensão de fatos culturais de áreas dos Estados da Paraíba, Ceará e Pernambuco. Cumpre aquí citá-lo expressamente:


"Certas concepções pessoais, baseadas no prestígio dos sábios, precisam ser reexaminadas - através da comparação de elementos objetivos e sensíveis dos vocábulos grafados pelos missionários. É preciso, antes de tudo, bastante independência e comedimento, além de espírito de renúncia às vaidosas intenções, próprias da sabedoria, para que o resultado da análise possa atingir as realidades culturais e etnológicas necessárias, sem referir enganos sobre origens e tradições, em benefício da ética. São esses os traços de vida - indispensáveis à configuração dos fatos que acabam dando substância às prerrogativas da história." (Baptista Siqueira, Os Cariris do Nordeste, Rio de Janeiro 1978, 17)

A grande erudição que se manifesta nesta obra e a quantidade de hipóteses e demonstrações de vínculos terminológicos, folclóricos e históricos nela contidos tornaram difícil até o momento a sua consideração justa. O seu estudo crítico representa, em todo o caso, ponto de partida para todos os intuitos musicológicos futuros relativos às tradições musicais da área considerada.

O relacionamento entre a História e a Etnologia foi uma preocupação constante na obra de Baptista Siqueira voltada à influência indígena na música folclórica do Nordeste. A tendência básica de seu entendimento do processo científico levou-o muitas vezes à interpretação de fatos e documentos históricos a partir de análises musicais e estudos linguísticos. Marcando uma significativa fase histórica do pensamento musicológico voltado à contribuição indígena na formação da cultura musical do Brasil, cumpriu, no contexto do Congresso, que fosse manifestado ao Prof. Baptista Siqueira a alta consideração e gratidão dos participantes.

Hoje, a interpretação apropriada de documentos históricos com base no próprio desenvolvimento dos conhecimentos histórico-musicais da Idade Média exigem a revisão de muitas hipóteses a respeito de origens derivadas de métodos a-históricos. A questão do relacionamento entre a História e a Etnologia deve permanecer, porém, necessária preocupação da Musicologia no Brasil.

 

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