Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 21 (1993: 1)


 

QUESTÕES RELATIVAS À AUTOCTONIA NAS CULTURAS MUSICAIS INDÍGENAS DA ATUALIDADE, CONSIDERADAS NO EXEMPLO MBYÁ-GUARANI

Profa. Dra. Kilza Setti

 

Pode-se dizer que os princípios da antropologia estão no Velho Testamento. Em nosso continente, surgiram nos séculos XV e XVI, com os escritos de Bartolomé de Las Casas, ao posicionar-se diante das políticas colonialistas de conquista e dominação dos autóctones da América hispânica, e no caso do Brasil, com as descrições de Anchieta, Nóbrega, Staden, Léry e tantos outros, sobre nossos indígenas. Há uma literatura empenhada em compreender o outro, sobretudo quando esse outro é o habitante "exótico" de terras recém descobertas, ou difere de alguma forma do modelo fixado como ideal.

A história da ocupação e da conquista de novos territórios tem mostrado também a história dos confrontos daí resultantes (África, Américas, Ásia, Oceania). Como conciliar interesses antagônicos dentro de cosmovisões diferentes e desprovidas reciprocamente de significados? E como fica a autoctonia, diante dos programas colonialistas? No Brasil, com as articulacões que precederam a criação do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, e, apesar da tardia legislação pelo decreto n° 426 de 1845 orientar para que "as populações indígenas fossem civilizadas através de métodos brandos" (Gagliardi, 1989:32), politicamente sabemos que foram os perdedores. Entretanto, se olharmos a questão às avessas, ou seja, do ponto de vista de uma hipotética "autoctonia" do colonizador, ou melhor, de sua aloctonia, vemos que recentes estudos antropológicos inspirados na psicologia analítica, nos dão conta de que não foram poucos na América, os mecanismos de projeção que permearam as relações entre jesuitas e índios, sendo estes, verdadeiros espelhos da representação interior daqueles (Gambini, 1988).

Refletir sobre a autoctonia nas culturas musicais indígenas da atualidade nos faz lembrar, antes de tudo, nosso passado indígena e o presente das populações autóctones remanescentes - hoje ignoradas, ou tidas como entrave ao desenvolvimento do país. Leva-nos também a imaginar o engenho dessas culturas em elaborar estratégias de salvaguarda de suas identidades. No caso da música, sabemos que o processo de percepção de um novo universo sonoro deu-se pela somatória dos mais variados estímulos, da prática da polifonia coral até o trato com requintados instrumentos europeus da época. Os povos do grupo TUPI-GUARANI que ocuparam o litoral desde a bacia amazônica até Cananeia, foram postos à prova no início do século XVI, e dois séculos após, já não restava nenhuma dessas tribos na faixa costeira (H. Clastres, 1978:9). No Brasil sudeste, esse foi o caso dos desaparecidos grupos TAMOIO-TUPINIQUIM, TUPINAMBÁ, bem como os chamados GUAIANA (GÊ), os MAIAMUMI ou MARAMUMIM (ARUAQUE), os extintos CARIJÓ (GUARANI). Já a marcha da colonizacão pelo interior deu-se mais lentamente - daí algumas etnias do Brasil norte e centro oeste terem sido preservadas por mais tempo.

Dos grupos contatados, ainda que não classificados sob o rótulo de "aculturados", inúmeros foram os que experimentaram interferências, e, confinados nas reservas, já não praticam guerras inter-tribais, abandonaram parcialmente tradições relacionadas à ocupacão do espaço, práticas construtivas, técnicas de plantio, rituais religiosos. Mas apesar das vicissitudes advindas do contato com o branco, algumas etnias não abriram mão de suas tradições mais significativas. Os BORORO, do grupo linguístico GÊ do Mato Grosso, contam com 260 anos de contato desde o primeiro massacre, e ainda que com visível depopulação, mantém certa autonomia de seu sistema cultural, com atividades sociais importantes que funcionam como elementos de integração e coesão (Viertler, 1991: 11-13). O "interesse cultural dos BORORO está centrado no funeral" (Viertler, 1991: 14), e nas suas conhecidas cerimônias fúnebres, a música desempenha papel inprescindível em todas as fases: há cantos associados à presença do morto, para comunicar-se com o cadáver coberto por esteiras; cantos associados à pintura e amarração do morto com embira; cantos considerados de alta periculosidade na fase do enterro primário, e inúmeros outros, cuja utilização é definida em cada sequência ritual, incluindo-se também o uso de instrumentos de grande relevância como os zunidores. A organização da música obedece portanto, a um sofisticado esquema de significados dentro da cosmovisão BORORO, e de sua organização social, já que determinados cantos relacionam-se ainda com o clã ao qual pertencia o finado, e com seu grau de prestígio na sociedade (Viertler, 1991: 142-146).

A manutenção de atividades como essa, que duram meses, praticadas por grupos submetidos a contínuos ou intermitentes contatos com a sociedade envolvente é um dos muitos exemplos da tenacidade em manter padrões culturais - talvez a única forma de não serem absorvidos completamente. Do mesmo modo, outros grupos como os XETÁ do Paraná e os XAVANTE do Mato Grosso (de língua GÊ), revelam práticas musicais complexas, tendo elaborado sistemas autóctones de classificação das diversas categorias de cantos e critérios de avaliação de repertórios ou do desempenho dos músicos (Aytai, 1991: 189-204 e Aytai, 1985).

Os GUARANI: centro desta reflexão

Mas, deixando para os especialistas a análise de culturas musicais de grupos linguísticos como GÊ, ARUAQUE, CARIBE e outros, reservo para esta reflexão o exame de um caso do Brasil sudeste e sul e do qual estou mais perto desde 1985. Refiro-me aos GUARANI-MBYÁ, ÑANDEVA-XIRIPÁ, do grupo TUPI, que ocupam áreas do litoral e do planalto paulista. Num e noutro caso, acham-se embrenhados na Mata Atlântica da Serra do Mar ou suas proximidades; no litoral fixam-se perto do mar, mas sem tê-lo sob sua vista e sem tocar as praias. Embora esses índios não tenham revelado a trágica cifra dos suicídios KAIOWÁ-GUARNAI de Dourados no Mato Grosso do Sul, os MBYÁ do estado de São Paulo têm a experiência de um doloroso convívio com os grandes centros urbanos e constante assédio de visitantes curiosos em suas aldeias. Como os BORORO, têm uma "concepção trágica do mundo" (Viveiros de Castro, In: Nimuendaju, 1988: XXVI), tendência a crer nos cataclismas (Schaden, 1974) e persistem nas andanças e perigrinações em busca da "Terra Sem Mal". Têm a consciência de que sua situação de desagregação e perda de território devem-se ao fato de seus chefes religiosos terem revelado aos brancos, segredos míticos e valores culturais mais caros (cf. Schaden, 1974); isso tem ficado claro nas entrelinhas dos atuais discursos e preleções dos pajés, e de queixas que ouço de indivíduos nas aldeias paulistas. Tal situação de aparente inferioridade é compensada por uma superestima de seus valores tribais, que chega a caracterizar certo etnocentrismo - fato já observado por alguns especialistas (ver Schaden, 1969). Trata-se de um jogo sutil de toma lá, dá cá, uma supervalorizacão de sua cultura, dentro de aparente anomia, esta última, aliás acentuando-se cada vez mais pela intromissão de indivíduos estranhos às aldeias (religiosos, estudantes, políticos, pretensos índios, forasteiros) e causando desordens no ameaçado universo GUARANI.

Em compensação, ao acompanharmos os porãhey noturnos (as rezas sagradas) ou as festas anuais do batismo, vemos transparecer sua consciência cultural pelo fervor devotado às práticas mágico-religiosas, alimentadas sobretudo pela música e com a participação de toda a comunidade - dos idosos aos bebês. Aos homens cabe o uso do violão, mbaracá, clavas (ywyra'i), rabeca, o comando das rezas, os recitativos iniciais, os discursos introdutórios e de entremeio (em geral pelo cacique ou pajé). As mulheres dividem as tarefas de marcar as pulsações com o takwapú, acompanhar em coro as melodias do pajé à 8a. acima, reforçando com exclamações os discursos e cantos dos chefes, marcando vigorosa presença. As meninas cantam, dançam e batem o takwapu. Os meninos e adolescentes acompanham os homens e manejam o mbaracá, encarregados da manutenção do rítmo, percutindo as clavas, seja nos trilos de introdução e final, seja marcando as pulsações nos cantos. Parece que o sentido da vida e de sua continuação no paraíso concentra-se nessas ocasiões musicais, tal o empenho da comunidade em partilhar delas. E como disse Schaden, "tanto dos dotes espirituais e de conduta do rezador, como do fervor de seus fiéis depende o êxito da comunidade que almeja entrar na 'Terra Sem Males' (Schaden, 1974, 1974: 165)". Conclue-se portanto que com uma prática musical sacralizada, que recruta toda a aldeia, está assegurada a continuidade da música tradicional entre os GUARANI, e sedimentada assim parte importante de sua cultura.

Aquí está, pois, uma primeira questão a ser considerada: descrevê-los como uma população em estado de pré-anomia, assimilados à cultura urbana, combalidos, depauperados? Essa seria a tendência de qualquer observador que os visse apenas na aparência. Mas conhecendo-os mais profundamente, sabemos com que artifícios guardam seu "saber esotérico" (cf. P. Clastres, 1990:15), com que cuidados reservam seus segredos dentro de uma linguagem metafórica, inacessível a estranhos, com que persistência tentam preservar seu nhande rekó (nosso modo de ser Guarani), com que arrebatamento (para usar uma expressão de Schaden) cantam e dançam na busca contínua do aguidjé (estado de perfeicão, de plenitude). Fui procurada por um jovem amigo MBYÁ que me solicitou ajuda na restauração do espaço de sua aldeia (do Jaraguá), alterado por uma ocupação desordenada, advinda de casamentos mistos e pela proximidade de uma estrada aberta posteriormente ao assentamento da aldeia. (A pedido dos índios, propuz e estou assessorando, juntamente com a antropóloga Maria Inêz Ladeira, a equipe coordenada pelo arquiteto Carlos Zibel Costa, num projeto de redesenho dessa aldeia). Ora, a busca desse jovem em restabelecer a paisagem perdida, indica forte sentimento de salvaguarda do que chamam tekohá (o lugar ideal do modo de ser GUARANI, o espaço GUARANI), e reação a uma indesejada assimilação da organização social e espacial do mundo dito civilizado.

Sobre a persistência cultural das populações TUPI-GUARANI desde a época da conquista, e mais precisamente dos MBYÁ há vasta literatura etnográfica e antropológica (Montoya, Müller, Nimuendaju, Métraux, Melià, Cadogan, Schaden, P. e H. Clastres, Chase-Sardi, Irma Ruiz entre outros). Ao pinçarmos, nessa literatura, dados sobre música e dança, verificamos que apesar de apenas descritivos (com exceção de Ruiz), esses dados constituem-se em valiosos subsídios para os estudos musicológicos, uma vez que as descrições sobre prática instrumental são comprovadas em vários autores, reforçando a idéia de coerência quanto à seleção e uso de instrumentos, consolidando como que uma sistematização de procedimentos (A mesma coerência tem sido confirmada nas práticas construtivas, em estudo de arquitetura tradicional MBYA-GUARANI, Zibel Costa, HAbitação Guarani - tradição construtiva e mitologia, FAU/USP, 1989. Quanto à prática instrumental, as notícias sobre o violão industrializado são mais recentes, enquanto que trabalhos mais antigos como o de P. Müller, embora sem mencionar os tipos de afinação, referem-se à guitarra artesanal de cinco cordas com o nome que os Guarani atuais ainda atribuem ao violão: mbaracá-guaçú, Müller 1989:59 e 120).

Passando à música vocal, nota-se a importância dada à eloquência na fala dos pajés, transmissores das "Belas Palavras" (Ñe'eng porã), considerados por especialistas como vestígio do profetismo TUPI-GUARANI dos Karaí pré-colombianos (H. Clastres, 1978: /4-60). Nas preleções e recitativos cantados, que tenho ouvido dos pajés, palavras falada e cantada fundem-se num único bloco sonoro.

A surpreendente unidade das práticas musicais verificada nas aldeias do Paraguai, Argentina e Brasil levou-me a admitir a hipótese de um sistema musical GUARANI (Setti, 1988). Os mesmos procedimentos musicais por mim verificados em algumas aldeias de São Paulo, são confirmados nas do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Espírito Santo (registros sonoros a mim cedidos por M. Ines Ladeira); no território paraguaio pelas descrições de Cadogan, Meliá; e em Misiones, pelos estudos mais recentes de Irma Ruiz.

Quanto à dificuldade em desvendar o mundo GUARANI, sempre senti certa perplexidade ao anotar as pálidas e cautelosíssimas explicações que me dão os MBYÁ sobre seus instrumentos musicais, sobre o processo de criação e origem dos cantos sagrados, ou sobre a música da rabeca que acompanha o sondaro - imitação do canto dos pássaros, como dizem. Cada vez que participo da cerimônia de Ñemongara'í, descubro pontos antes ocultos e inversamente passo a não mais entender outros que me pareciam claros. Geertz sugere que "a análise cultural é ou deveria ser uma adivinhação de significados" (Geertz, 1989:39). A mim parece-me que o etnógrafo corre grandes riscos ao anotar dados inexpressivos numa dada cultura, ao descrever fatos desvinculados de sentido, do ponto de vista êmico, ao confundir significados, e, ao contrário do que recomenda o autor, ao desconectar a análise das formas simbólicas, cas ocasiões concretas (Geertz, 1989: 40-41). Com os GUARANI, corre-se sempre esses riscos. Mas de qualquer modo, é preciso reconhecer que dados empíricos passam sempre por uma intermediação científica.

Entre as várias questões aquí tomadas, coloca-se também o dilema da ausência de critérios que permitam determinar a precedente cultura musical dos antigos TUPI-GUARANI. Quais recursos nos poderiam devolver o passado musical desses grupos? Pela escassês de trabalhos em arqueomusicologia, sabemos que isso é impossível. Esse passado dilue-se nos relatos dos primeiros viajantes. As notícias disponíveis despontam com a colonização e os subsídios contidos na literatura da época são úteis mas pouco precisos. Apesar da farta etnografia sobre os TUPI-GUARANI, a atividade musical tem sido considerada apenas como um dado auxiliar na compreensão dos rituais sagrados. As referências à música são em geral de caráter descritivo e muitas vezes sob a ótica eurocentrista. Há relatos sobre a música ritual dos TUPI (Staden, 1974, Métraux, 1979) e acerca do talento musical dos GUARANI (Sepp, 1972) - Léry, por exemplo, fala nas "interjeições de encorajamento" (Léry, 1972:162) que penso serem praticados ainda hoje se as identificar aos silabismos que encontro entre os MBYÁ de São Paulo. Entretanto, não dispomos de vasta bibliografia musicológica, cujo rigor científico nos permitisse avaliar a música dos GUARANI dos séculos anteriores e compreendê-la hoje, na perspectiva da musicologia histórica.

Outra questão seria a de se indagar como esses grupos indígenas consolidam ou reconstroem suas identidades. Nimuendaju já observara a semelhança das cerimônias, cantos e danças nos diversos grupos GUARANI "desde o mar até a serra de MARACAJU", e atribuiu a pouca variedade de sua cultura musical às constantes andanças e peregrinações dos grandes pajés que levavam consigo procedimentos, melodias, de região para região (Nimuendaju, 1987:90). Esse hábito poderia ser considerado como motivo de empobrecimento, ou menor potencial inovador na música religiosa, mas inversamente, pode ser visto como estratégia de consolidação pela repetição e busca de unidade de um universo musical provavelmente carregado de significados, a nós não totalmente acessíveis ou decodificáveis.

Quanto à difícil questão dos "aculturados" sabe-se que maior atenção vem sendo dedicada às etnias que ocupam o Brasil central e norte: os povos do Xingu e de reservas, como os YANOMAMI - estes últimos até mesmo associados a programas repassados pela mídia (Sting, Milton Nascimento, Gilberto Gil, e outros artistas que ocuparam-se dos chamados "povos da floresta"). Menos ênfase tem-se dado aos grupos ditos "aculturados", integrados, assimilados, menos exóticos, como por exemplo os KAINGANG (GÊ), associados a projetos de agricultura e os TERENA (ARUAKE), à sericultura (Carvalho, 1978).

Pelo fato de serem também considerados "aculturados" e de incorporarem ao seu repertório sagrado instrumentos europeus de corda, os GUARANI têm merecido menor atenção. Mas parece-me que é justamente aí que reside o interesse, seja pela oportunidade de sentir-lhes os critérios de percepção seletiva ao pinçar e adotar este ou aquele elemento da cultura dominante, seja pelo engenho mesmo da reinterpretação, da redefinição de usos, a artefatos culturais impostos, como é o caso do uso ritual do violão. (Sobre a época de adoção do violão nas rezas, Irma Ruiz supõe ter sido aadotado entre 1650 e 1750 entre os Mbyá do Paraguai e conforme Strelnikov, transmitida pelos Xiripá cristianizados. Ela lembra também o interesse da sobrevivência entre os Mbyá da guitarra de 5 cordas e do rabel de 3 cordas, coexistindo com o popular violão ou guitarra de 6 cordas e com o violino de 4 cordas, Ruiz, 1984: 76-78) Se dispõem do mbaracá - instrumento sagrado já conhecido do TUPI antes da colonização - por que razão continuariam usando o violão com uso percussivo? Teriam mantido, como resíduo da herança jesuítica, preferência por instrumentos que levam à conformação de melodias construidas dentro de determinado clima ou ambiente tonal? A firmeza com que mulheres e crianças acompanham as sequências intervalares entoadas pelo rezador solista leva a crer que se trate de padrões melódicos sempre repetidos, mas quando ocorrem cantos supostamente novos ou inovadores, estes são também facilmente acompanhados pelo grupo coral. É viável pensar-se que isso se dê em virtude do sistema único de afinação dos violões e que possa esse ser visto como nivelador na condução das linhas melódicas dos porãhey. O canto assim submetido ao uso sistemático do bordão das cordas tende a limitar o elenco de sons da melodia, e consequentemente, propiciar maior adestramento do grupo coral em acompanhar responsorialmente os cantos na pajelança. Estas são hipóteses ainda sujeitas à verificação.

Quanto à questão da identidade dos sistemas musicais, o que é que nos permite distinguir, por exemplo, logo aos primeiros minutos de escuta, a música dos BORORO da música dos GUARANI? Ambos foram "pacificados", tiveram contatos seculares com a sociedade nacional, foram catequizados e ainda hoje experimentam práticas de doutrinação por missionários católicos, protestantes históricos, e sobretudo pentecostais. Ambos têm acesso aos meios de comunicação e, ainda que vivam em aldeias, estão familiarizados com os valores urbanos. Afinal que poder é esse, tão fortemente caracterizador, que vem garantindo, apesar de tudo, a manutenção de suas identidades?

Viveiros de Castro observa que na Etnologia sobre os GUARANI os estudos concentram-se principalmente nos textos e cantos sagrados e nas tradições orais, enquanto que menor atenção tem sido dada à sua morfologia e estrutura sociais. Ele atribue esse fato à natureza da cultura GUARANI, na qual há predominância do discurso sobre o emblema, da representação sobre a instituição, da teologia sobre a sociologia (V. de Castro, In: Nimuendaju, 1987: XXX).

Para mim, a música sagrada dos GUARANI permanece como uma construção enigmática, ainda a ser decifrada. Os materiais, a forma, o conteúdo mítico foram sentidos, mas não desvendados na totalidade. A mitologia que permeia o sistema musical, como permeia o sistema de habitação (Zibel Costa, 1989), não é completamente revelada. Na música, ainda não me foi dado saber como articulam cada elemento, como são presididas as decisões, por quais meios chega-se a um consenso. Os silêncios pontilhados pelos sons dos grilos, as intermináveis conversas entremeadas de risadas sonoras - absolutamente alheias à nossa presença - o choro das crianças, as exclamações de apoio dos velhos ao pajé: esses sons compõe o todo sonoro que incorpora também os cantos coletivos. Lembrar aquí alguns traços dessa música, subjetivamente classificados através de parâmetros da minha própria cultura, seria dizer muito pouco. Que poderia eu destacar? As insistentes progressões melódicas descendentes; o coro feminino que retoma as melodias à 8a. acima da voz solista do pajé; a frequente repetição de sequências melódicas, transpostas a intervalos de 3a, 4a e 6a abaixo; o uso de "som pedal"; o afrouxamento do andamento nos finais de frase... Estes traços, entretanto não são prerrogativas da música dos GUARANI e podem ser observadas em inúmeras culturas musicais (Nettl, 1972). Há porém outros que permitem melhor desenhar seu perfil, como o uso ritual do violão, o modo como o afinam e como afinam a rabeca, os discursos de entremeio, os recitativos introdutórios (que Cadogan chamou de endechas), o obstinado bordão do violão, simultaneamente fixador do som padrão e das pulsações, o tipo de emissão da voz fortemente expirada, as sibilações associadas às curas pelo tabagismo, e mais do que tudo, as matrizes melódicas dos porãhey construidas numa extraordinária simetria.

Posso dizer que o exame dos repertórios sagrados deixa claro que nenhum procedimento vocal/instrumental processa-se gratuitamente, mas pertence a um sistema construido e consolidado.

Discutir sobre as culturas musicais autóctones da atualidade, supõe conhecer razoavelmente essas culturas. Receio que, apesar de algumas excessões de competentes musicólogos no Brasil, com trabalhos de abnegação e muita ciência, mas tendo em vista a diversidade de etnias que ocupam nosso extenso território, permanecemos ainda no âmbito das hipóteses, a partir dos primeiros relatos e mais recentemente, dos trabalhos científicos e anotações de campo de antropólogos, empenhados em registrar documentos sonoros da vida tribal. Estas anotações porém padecerão sempre da ausência de assessoria de etnomusicólogos nos momentos de recolha e posterior possibilidade de compreensão - ideal somente obtido quanto tivermos programados e concretizados modelos para recolha, classificação e arquivo da música tribal no Brasil. Ainda assim, parece difícil e penoso o caminho para a percepção da autoctonia dos nossos índios, pelo acesso a um "discurso social bruto" (Cf. Geertz) e consequentemente dos sistemas musicais inseridos nesse discurso.

Quanto aos GUARANI supostamente "aculturados", carregam um profetismo que os caracteriza, e indica que têm sido invulneráveis aos quase cinco séculos de bombardeio contra-cultural, o que os faz, ainda hoje serem considerados "homens-deuses" (Melià, 1989:334), os "teólogos da América do Sul" (H. Clastres, 1978:8). Mostram simultaneamente um pessimismo incomparável, a par com uma determinação apaixonada em consolidar suas crenças e caminhar rumo à perfeição, buscada pelo exercício dos cantos e danças, que crêem - através da levitação - levar ao estado mais próximo do ywy marane'y ("a Terra Sem Males"). Dentro dessa aparente contradição, como captar a essência de sua autoctonia?

Resta lembrar, - nesta situação de ambivalência -, o fato de coexistirem repertórios tradicionais sagrados MBYÁ e repertórios profanos de modelo ocidental. Cito o exemplo de jovens GUARANI, que simultaneamente participam das rezas noturnas nas aldeias, e atuam em ocasiões musicais junto à sociedade nacional, como a dupla VERÁ e KARAÍ da aldeia MBYÁ Boa vista, apresentando-se nos encontros de viola promovidos pela Prefeitura Municipal de Ubatuba (litoral norte de São Paulo), ou ainda como os grupos CURUMIM e TXE TEÍ de Peruibe (São Paulo) que entraram no mercado do disco, aderindo à mídia eletrônica, enfrentando estúdios de gravação, com variados gêneros: sambas, baladas, marchas, rock. Seus repertórios, ainda que inspirados em construções e clichês da música popular brasileira - MPB -, utilizam textos mistos (MBYÁ e português), cuja mensagem temática mescla certo romantismo (os clássicos temas de amor) a duas questões cruciais do índio brasileiro: identidade cultural e perda de território. Esse fato demonstra que não apenas nós, cientistas, nos reunimos para debater questões relacionadas à autoctonia das culturas indígenas, mas os próprios autóctones mobilizam-se e vêm atuando nesse sentido, por meio de variados e criativos recursos. Em junho próximo, espera-se que cerca de 700 índios de todo o mundo estejam reunidos na RIO-92, nesta cidade, num Comité intertribal 500 anos de resistência, para a CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS.


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ÍNDIOS NO ESTADO DE SÃO PAULO: RESISTÊNCIA E TRANSFIGURAÇÃO. Co- Edição de Yankatu Editora e Comissão Pró Indio de São Paulo
VIERTLER, Renate. 1991
A REFEIÇÃO DAS ALMAS. - Uma interpretação etnológica do funeral dos índios Bororo- Mato Grosso. São Paulo, Hucitec, Edusp, Ciências Sociais, 27


Discografia
- MÚSICA INDÍGENA: A ARTE VOCAL DOS SUYÁ DO RIO XINGU. ANTHONY SEEGER, 1982. Ed. Tacape. Série Etno-musicologia. Estéreo T007. São João del Rey. Brasil
- THE BORORO WORLD OF SOUND. MUSIC AND MUSICIANS OF THE WORLD. BRAZIL. RICCARDO CANZIO, 1989. Audiovis-UNESCO. D. 58201 AD 040. International Council of Music. Paris.
- DOCUMENTOS MUSICAIS EM CASSETES - gravados em aldeias MBYÁ-GUARANI de Misiones (Argentinas), gentilmente cedidos por Irma Ruiz. Arquivo particular, 1973 e 1979
-DOCUMENTOS MUSICAIS EM CASSETES - gravados em aldeias MBYÁ-GUARANI de alguns estados do Brasil sudeste, gentilmente cedidos por Maria Inês Ladeira. Arquivo particular, 1981-1985
- DOCUMENTOS MUSICAIS EM CASSETES - gravados em aldeias MBYÁ-GUARANI de São Paulo (litoral e planalto). Kilza Setti. Arquivo particular, 1985-1991.

 

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