Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 19 (1992: 5)


 

II° Congresso Brasileiro de Musicologia

FUNDAMENTOS DA CULTURA MUSICAL NO BRASIL

e
III°Simpósio Internacional
"Música Sacra e Cultura Brasileira"

Rio de Janeiro
22 a 25 de abril de 1992

DESCOBRIMENTO E ESPIRITUALIDADE DA ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS:
DA VENERAÇÃO DA CRUZ E DA ADORAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO


CORREÇÃO DAS INTERPRETAÇÕES SIMBÓLICAS
A CONSTELAÇÃO DO BRASIL - "TERRA DE SANTA CRUZ" - NÃO É A DO CRUZEIRO DO SUL (CENTAURO),
MAS SIM A DA CRUZ DO NORTE (CISNE)

Brasil: Terra de Santa Cruz, cantada em Os Lusíadas:

"Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co'o pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota" (Canto X, CXL)

Colombo e a Terra de Vera Cruz, M. de Araújo Porto-Alegre (1806-1879)

"Permite, ó meu Senhor, que agora mesmo,
Como primícias dêste santo empenho,
A teu Filho Divino humilde of'reça
Esta terra, e que o mundo sempre a chame
Terra de Vera-Cruz! E que assim seja."

 

Antonio Alexandre Bispo

(Partes)

 

Card. D. Eugenio de Araujo Sales
Arcebispo do Rio de Janeiro

(...) Em relação ao plano do Dr. Bispo para um congresso em comemoração aos 500 anos de Descoberta da América, de minha parte a iniciativa tem plena aprovação. (...) Caso o Dr. Bispo consiga realizá-lo (...) certamente participarei de alguma solenidade para manifestar apoio à iniciativa.

Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1991

Um dos contextos culturais-religiosos que mereceram particular atenção no congresso foi aquele que diz respeito às tradições de interesse musicológico concernentes à veneração da Cruz.

Uma das razões desta escolha residiu no fato de ser a Dança de Santa Cruz uma das raras tradições do Brasil à qual os estudiosos emprestam uma importância especial à contribuição indígena na sua formação.

Já pelo fato de ser cultivada em locais de antiga missão indígena, ou por poder ser relacionada com descrições em documentos do século XVI, essa dança foi até mesmo considerada como de origem "índio-jesuítica". Com base nos documentos históricos e nas características demonstradas pela tradição, essa dança surge indubitavelmente como exemplo do trabalho acomodativo realizado pelos missionários. A questão da origem, porém, que traz implicações para a consideração especificamente musicológica, por exemplo a respeito da simbologia dos instrumentos e de práticas de execução vocal e instrumental, não pode ser tratada sem um estudo de seus fundamentos históricos e conceituais.
 Obra do compositor Eduardo Escalante sobre tema da "Dança de Santa Cruz" apresentada no II Congresso Brasileiro de Musicologia

Correspondentes práticas religiosas concernentes à Cruz de Maio eram largamente difundidas na Península Ibérica na época dos Descobrimentos, sobretudo em Portugal e na Galícia. A elas se relacionam intimamente as festas de maio ou as maias. Menções a respeito remontam ao século XIII, transmitidas em um cantar do Cancionero português da Vaticana; o jogral português Pero Barroso o citou, e o seu senhor, Alfonso X de Castela, dedicou-se ao cantar das maias. Também D. Dinis referiu-se ao desabrochar da arte dos trovadores no tempo das flores. O poema do Cerco de Zamora, descrevendo o aprisionamento do rei D. Garcia em Santarém pelo seu irmão, o rei Sancho de Castela, e o seu transporte à Coimbra, documenta a alegria do canto dos cavaleiros às voltas com as portuguesas nas maias. Já em 1385 tem-se uma proibição da Câmara de Lisboa concernente ao canto das janeiras e das maias, o que indica a origem considerada pagã de tais tradições.

A vinculação dessas práticas com o mês de maio, ou a primavera no ano natural do hemisfério norte, é essencial para a compreensão da visão do mundo e da antropologia teológica a elas inerentes. No Brasil, o fato de haver um deslocamento do ano litúrgico com o ano natural parece ter impedido, - como em muitos outros casos -, a consideração apropriada do sentido religioso da Dança de Santa Cruz. Ela não pode ser considerada no conjunto de tradições relacionadas com o solstício de inverno, pelo contrário, ela pertence ao contexto simbólico do equinócio primaveril. A inquirição do seu significado espiritual-religioso exige a consideração do processo de cristianização, através dos séculos, de práticas e conceitos herdados da Antiguidade. A simbologia mística da Cruz nessas tradições fundamenta-se na antiga concepção da árvore da vida e reflete a imagem da árvore do amor da poesia medieval.

A literatura especializada já salientou há muito a importância das tradições de maio para o florescimento da lírica medieval. A Santa Cruz de Maio, - fato significativo sobretudo na Terra de Santa Cruz, o Brasil - , prende-se metaforicamente à alma lírica e cantora da primavera. Deve-se ressaltar o significado desse contexto para o estudo mais aprofundado dos romances cantados e da própria arte trovadoresca. A persistência de conceitos antigos nas práticas medievais e transmitidos por tradição até o presente não diz respeito apenas a enfeites florais ou à participação preferencial de moças, mas sim também a aspectos de relevância musicológica. Assim, justamente a parte considerada por muitos como sendo indígena da Dança de Santa Cruz, a Roda, de natureza profana, exige ser considerada no contexto das rodas das festas de maio e sugere um estudo histórico-musicológico mais aprofundado.

À direita: Prof. Hélio Damante, Comissão Paulista de Folclore, especialista em estudos relacionados com a Dança de Santa Cruz em São Paulo. À esquerda, Profa. Lea Maria da Rocha, Universidade do Planalto, UNESP
Os documentos do século XVI provam os esforços acomodativos realizados pelos missionários, que procuraram não só aprender a língua dos indígenas como também utilizar de seus instrumentos e cantos. A Dança de Santa Cruz indica, porém, que esse método acomodativo desenvolveu-se sobretudo através do uso acessório de elementos das culturas indígenas em práticas tradicionais herdadas da Antiguidade e cristianizadas através dos séculos. Também no mundo hispano-americano desenvolveram-se cedo tradições correspondentes. Os indígenas -como também os africanos - transformaram-se também aquí nos principais cultores de práticas seculares muitas vezes combatidas na Europa como resquícios pagãos.

O estudo aprofundado do significado religioso, da visão do mundo e da antropologia inerentes às festas de Santa Cruz de Maio exige que se considere sobretudo o complexo sincretístico relacionado com Maia, filha de Atlante e mãe de Mercúrio e que importante posição ocupou na história sincretística de Portugal e da Espanha, ainda repetida na historiografia insular-atlântica do século XIX. Tem-se aquí sobrevivências de interpretações gnosticistas da Alma e do amor místico que nela desabrocha e com o qual a música está intimamente relacionada.

O estudo das tradições e dos conceitos relacionados com a veneração da Cruz assumem, portanto, significado fundamental para o estudo musicológico, não só no Brasil. Somente através do estudo de seus fundamentos é que se poderá cogitar possíveis medidas pragmáticas de revitalização e/ou reinterpretação não desintegradora das respectivas tradições.

Diversamente da Dança de Santa Cruz, a origem européia das tradições relacionadas com a Adoração do Espírito Santo foi, pela sua evidência, reconhecida pela grande maioria dos estudiosos. Prendendo-se segundo a tradição à memória da rainha santa D. Isabel, as tradições paralitúrgicas do Espírito Santo remontam a importante fase histórica de Portugal medieval. Já na época dos Descobrimentos consistiam tais práticas traço religioso-cultural dos Açores e foram de lá transplantadas para a Índia e, posteriormente, para o Brasil. A importância musicológica fundamental de tais tradições prendem-se aos conceitos teológicos e heterodoxos concernentes ao Espírito Santo e justificaram a sua inclusão no congresso. Os estudos voltados à prática de execução musical e sobretudo à simbologia dos instrumentos (entre estes, em primeiro lugar, a viola) não devem ser efetuados simplesmente através de uma consideração superficial das referências documentais que permitem traçar a história secular das respectivas tradições. O estudo dos seus fundamentos conceituais leva obrigatóriamente ao âmago de concepções relacionadas com a música desde a Antiguidade tardia e que remontam provavelmente a ainda mais antigas correntes do pensamento religioso e filosófico-natural. A ação do fator pneumático, - metaforicamente do "vento quente de fogo"-, na movimentação frutificadora das águas foi tema central da própria definição da música por séculos. O estudo dos fundamentos musicológicos e espirituais da cultura musical no Brasil deve considerar portanto a definição da música como "ciência aquática", concepção ainda vigente na época dos Descobrimentos e que foi também a dos grandes feitos marítimos e a do apogeu de uma ciência e sabedoria do Mar.

(...)

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 19)/ao indice deste volume (n° 19)
zur Startseite / à página inicial