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N° 17 (1992: 3)


 

MARTIN BRAUNWIESER (†)
Salzburg, 6-VI-1901 - São Paulo, 1-XII-1991

Dr.José da Veiga Oliveira
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
Sociedade Brasileira de Musicologia
Sociedade Brasileira de Filosofia
Associação Brasileira de Críticos Teatrais

 

Martin Braunwieser (1950)
Acervo A.A.Bispo/ISMPS
Em 1928 apareceu em São Paulo uma figura esguia, alta de um músico estrangeiro, que aqui vinha exercer a profissão, munido de credenciais de incontestável relevância e autoridade. Nascera nos albores do século, na cidade natal de W.A.Mozart, Salzburg. Em 1938, naturalizou-se brasileiro. Durante anos, Martin Braunwieser ministrou aulas no Conservatório Odeion-Atenas (Grécia).

Para o flautista, violista, pedagogo, regente, compositor iniciava-se uma carreira que se extenderia ao longo de décadas, até o final de sua admirável e fecunda existência.

Discípulo do famoso mestre prof. Bernhard Paumgartner (1887-1971) no Mozarteum de Salzburg, dotado de sólida cultura humanística e musical, entre 1930 e 1935, Braunwieser lecionou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, o mesmo acontecendo com o Instituto Musical de São Paulo, do qual foi Diretor (1970). De 1948 a 1951 regeu as classes de Harmonia Superior, Contraponto e Composição no Conservatório Santa Marcelina. Ensinou Regência no Conservatório Estadual de Canto Orfeônico, posteriormente Faculdade de Música "Maestro Julião", hoje Instituto de Artes da UNESP.

Concomitantemente, Braunwieser ganhava a vida (1928-1935) tocando em serões de música de câmara e nas estantes da Orquestra da Sociedade de Concertos Symphonicos, nos teatros Municipal, Sant'Ana, Santa Helena, sob a regência dos maestros Lamberto Baldi, Torquato Amore e outros.

Fundado (1935) o Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, Mário de Andrade, seu primeiro diretor, convocou Braunwieser a estruturar e dirigir o Coral Popular. Em 1938 foi novamente chamado para compor a Missão de Pesquisas Folclóricas, enviada ao Norte e Nordeste. Como assinalou o prof. Caldeira Filho, "mostrou-se pesquisador eficiente e dos brilhantes resultados da Missão parte substancial lhe é devida." (O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1958; A Aventura da música, São Paulo s/d, I, 128)

É absolutamente inquestionável que a mais importante realização do casal Braunwieser (Tatiana e Martin) consistiu na fundação da Sociedade Bach, que durou de 1935 a 1977. A esse tempo, a obra do mestre de Eisenach circunscrevia-se à música de teclado, com parcas incursões no repertório camerístico, orquestral e vocal, às mais das vezes de forma inadequada quanto ao estilo, aos rigores organológicos. O pianoforte se substituia ao cravo, ao clavicórdio, porquanto não havia sequer um instrumento congênere na cidade de São Paulo. Cantatas, quer as de igreja quer as profanas, eram presenças esporádicas nas salas de concerto. A Sociedade Bach modificou em parte esse lamentável estado de coisas. Sem auxílio dos poderes públicos e contando com exclusividade com as parcas contribuições dos sócios, a entidade, numa admirável regularidade, realizou audições públicas mensais, de obras vocais e instrumentais, não apenas de Johann Sebastian como também de seus filhos Wilhelm Friedemann, Carl Philipp Emmanuel, John Christian; Telemann, Händel, Pachelbel, Johann Gottfried Walther e muitos outros. Com o intuito de tornar compreensível ao público o sentido textual da obra, cantatas, motetes, árias, oratórios eram interpretados em vernáculo. Porém, como quer que seja, a presença da Sociedade Bach nos 42 anos de sua existência, com um saldo positivo de 500 audições, representou um esplêndido esforço artístico de Braunwieser e sua esposa Tatiana, pianista, professora, dotada de esplêndida voz de contralto.

Enquanto compositor, a presença de Braunwieser na vida musical paulistana ficou assinalada por várias importantes realizações, como por exemplo, o Quarteto para dois violinos, viola e violoncelo, em primeira audição absoluta em maio de 1956, pelo Quarteto de Cordas Municipal (Gino Alfonsi, Alexandre Schaffman, Johannes Oelsner, Calixto Corazza), merecendo do crítico Caldeira Filho a seguinte apreciação:
"Toda a obra é tratada em linguagem muito moderna, atonal, com predominância da pesquisa harmônica, campo em que o autor chega a efeitos realmente interessantes e inéditos. Claro é que a preocupação harmônica se entrelaça com a exploração dos recursos oferecidos pelo ritmo e pela polifonia, o que dá à composição grande equilíbrio técnico. A harmonia moderna da qual estão ausentes a unidade tonal e a distinção entre consonância e dissonância é por vezes chocante para os ouvidos tradicionalmente educados. A essa assertiva objetam os compositores declarando que a música não foi feita para agradar necessariamente. É justa, portanto, a pergunta: Será que ela foi feita necessàriamente para desagradar? Com esse Quarteto n°1 Martin Braunwieser responde categoricamente: não. Sua música é moderna, é avançada porque o ouvinte apreende imediatamente a integridade da composição, a unidade que a obra apresenta: ele sente a presença constante de um pensamento que vê claramente aonde quer chegar e que não se perde a divagar pelo caminho. A concisão do discurso e a nitidez dos contornos temáticos contribuem poderosamente para tal impressão." (op.cit. I, 124-126)

Por outro lado, o Coral Paulistano, do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, por largos anos dirigido pelo maestro Miguel Arqueróns Verdaguer, de gratificante e nunca assás louvada memória, celebrou repetidas vezes em audições públicas as exímias harmonizações de cantigas e temas populares brasileiros, que Braunwieser realizou com muita felicidade, - "que atestam a afeição pela gente e pela terra que adotara como sua" (Caldeira Filho). Pela editora Irmãos Vitale, promoveu a publicação da coletânea 40 Cânones para duas a oito vozes - peças vocais para uso da cadeira de Canto Orfeônico nos cursos secundários. Conforme explica o autor, "Cánon (do grego, que significa "regra"), é a exata repetição de uma melodia por outras vozes. Difere, pois, da imitação, que consiste em repetir a melodia ou partes de uma melodia por outras vozes, mas com liberdade, modificações melódicas ou rítmicas." Nas poucas composições de Braunwieser estão a Sonata para violino e piano (1932) e o poema Praiá para grande orquestra.

Martin Braunwieser à frente do coral de futuros professores de Canto Orfeônico, 1961
(Acervo A.A.Bispo/ISMPS)
Foi um homem modesto, retraído ao extremo, de poucas palavras e poucos amigos, mas de extrema competência e uma ética impecável de conduta - qualidades que o tornaram "queridíssimo de toda uma população da qual nem sempre tomamos conhecimento, mas que é sensibilíssima às qualidades humanas e infalível nas suas reações afetivas: aludimos à variegada população de crianças que freqüentavam os parques infantís da cidade e que tinham pelo seu orientador musical - o maestro Martin Braunwieser - verdadeira veneração. Vimo-lo ser recebido com excepcional alegria ao chegar para as aulas comuns, ser abraçado carinhosamente por garotos brancos e pretos, louros e morenos, e sensibilizar-se ao contemplar naquelas carinhas brasileiras, italianas, japonesas, espanholas, o sorriso luminoso de satisfação pela sua presença e, principalmente, pelo que iria seguir-se: jogos, cantos, brinquedos, aprendizagem de cantigas infantís folclóricas e populares, dramatizações, folias, todo um mundo de prazer e de auto-expressão vinculado à arte socializante por excelência, a música. (...) Mais do que músico, mais do que professor, ele era um soberbo exemplar humano, dotado daquelas virtudes pelas quais o ser se dignifica ao mesmo tempo que dignifica os seus semelhantes. Seu coração se desmanchava em ternura por aquela criançada humilde dos bairros proletários, cuja sinceridade de reações profundamente o tocava." (op.cit. I, 128)

Ao fundar a Academia Brasileira de Música, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) convidou o maestro Braunwieser a integrar o sodalício, na qualidade de acadêmico fundador. O mesmo gesto teve o prof. Roberto Schnorrenberg, ao qualificar seu egrégio colega na categoria de sócio honorário da Sociedade Brasileira de Musicologia, aquando da sua fundação.

Esse eminente musicólogo, artista, pedagogo, maestro, a quem o Brasil e São Paulo mui especialmente, deve uma soma incalculável de trabalhos, incentivos, realizações de alto nivel musical, desapareceu tão silenciosamente como sua própria existência.

 

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