Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006
nova edição by ISMPS e.V.
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N° 17 (1992: 3)
1822-1992: 170 anos da Independência do Brasil Educação musical nas relações culturais DA EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL-IMPÉRIO: Dedicados a S.A.I. a Senhora D. Isabel Regente do Imperio. Precedidos
de 30 lições elementares graduadas de solfejo e seguidos de um
compendio de musica. Lithographia e Typographia Universal de Laemmert
& C. RIO DE JANEIRO, 1888
GYMNASIO BAHIANO E COLÉGIOS ABÍLIOS
CANTOS EM PORTUGUEZ, FRANCEZ, INGLEZ E ALLEMÃO PARA USO DAS ESCOLAS,
COLLEGIOS E FAMÍLIAS COLLIGIDOS, ARRANJADOS E PUBLICADOS PELO
BARÃO DE MACAHUBAS
Antonio Alexandre Bispo
Em 1982, a Prefeitura, a Secretaria de Educação e Cultura e o Conselho Municipal de Cultura de Recife publicaram, como número 24 da Coleção Recife, o livro O Mestre-Escola Brasileiro, de José Rafael de Menezes. O autor trata, no capítulo V dessa obra, de título "Um Mestre-Escola Imperial", do vulto de Abilio Cezar Borges, o Barão de Macahubas, a personalidade mais destacada do ensino no Império, diretor do Gymnasio Bahiano (desde 1858) e criador de uma rede de estabelecimentos de ensino. Os colégios dirigidos pelo Barão de Macahubas tornaram-se conhecidos no Exterior e foram comparados por especialistas norte-americanos com as melhores instituições do mesmo grau nos Estados Unidos:"A rede escolar dos Collegios Abilios, cumprirá até o final do século o mais importante programa do ensino secundário brasileiro nesses decênios [...]." (J. R. de Menezes, op.cit. 99)
J. Rafael de Menezes salienta a importância de Antonio Feliciano
de Castilho na História da Educação no Brasil do século XIX e
nas concepções de Abílio Cezar Borges: "O Método Portuguez, de A. Feliciano de Castilho, ingressou em
nossas escolas, na mesma época em que se oficializava em Portugal
[...] Antonio Feliciano de Castilho, pela sua competência e devoção,
de educador, fez escola no Brasil, por todo século XIX." (op.cit.
200) Em Portugal, A. F. de Castilho foi procurado por A. Gonçalves
Dias (1823-1864), em 1854, encarregado pelo Imperador de estudar
a situação do ensino. Em 1855, o próprio A. F. de Castilho veio
ao Rio de Janeiro apresentar o seu método, em curso de grande
repercussão. (op.cit. 66-67) "Convém retomar a análise, para garantir a tese do mestre-harmonioso,
que (...) pela musicalidade, amadureciam gramáticos e artistas,
combinavam estudos, aulas e associações. José Rafael de Menezes, O Mestre-escola brasileiro, op.cit. 122
Gramáticos e músicos
Assim (...), letras e notas, textos gramaticais e partituras,
harmonizam-se numa escolarização, singularizando-se em Humanidades
mais criativas e mais ajustadas (...)"
Como educador musical, o Barão de Macahubas não recebeu, até o
presente, a atenção que mereceria. Já em 1856, no seu relatório
sobre a instrução pública da Província da Bahia, referiu-se ele
à necessidade de apoio oficial ao ensino da música:
"Ha na provincia uma só cadeira publica de musica, a qual tem
sido sempre frequentada por numerosos alumnos.
Entendo que convém não só conserva-la e protege-la, (fallava-se
em supprimi-la), senão que outras se devem crear em todas as cidades
e villas da provincia; pois estou convencido de que taes cadeiras
serão muito proveitosas ao espirito e ao coração do povo.
Ninguem desconhece hoje a benefica influencia da musica para suavisar os costumes, tornar sensiveis os corações, activar a imaginação, e exaltar os sentimentos patrioticos. Deve, pois, ser muito protegido e generalisado o respectivo ensino."(Relatorio sobre a instrucção publica da Provincia da Bahia em 1856)
José Rafael de Menezes, op.cit. 109
No seu relatório de 1857, voltou ele a ressaltar a necessidade
de criação de novos cursos públicos de música:
"Em obra de 1946, uma equipe (...) assume a responsabilidade
de indicar o Barão de Macahubas como precursor de uma escolarização
amena, combatendo os castigos e introduzindo procedimentos didáticos
complementares: jogos, banhos, ginástica, música, além de estímulos
nobres; pelo que se solidariza a equipe com a fama do Dr. Abilio
tido como o 'maior educador brasileiro', para os redatores do
Dicionário Biobibliográfico Brasileiro."
"Nos paizes mais adiantados que o nosso é tida a musica como parte
essencial da educação de ambos os sexos; porque, como já tive
occasião de dizer no meu relatorio passado, goza ella do magico
poder de suavisar os costumes, mover os corações, e exaltar a
imaginação, inspirando aos homens a practica de acções nobres.
Continuo, pois, a julgar de grande utilidade a creação de cadeiras
publicas de musica em todas as cidades e villas da provincia,
si não com ordenados fixos, pelo menos com gratificações, que
despertem o interesse dos habilitados a ensinal-a.
Acredito deste modo, com sacrificio pequeno, e sem futuros encargos
de aposentadorias ou jubilações, seria o conhecimento da musica
generalisado, como é mister." (Relatorio sobre a instrucção publica
da Provincia da Bahia em 1857, 54)
No prólogo do seu Segundo Livro de Leitura, publicado em 1869,
o Barão de Macahubas entrou em considerações mais detalhadas a
respeito do valor do canto. Dentre os hinos escolares entoados
nas suas escolas, dois deles pareciam-lhe particularmente importantes:
os hinos para o começo e para o encerramento das aulas:
"Estes hymnos são diariamente cantados no Gymnasio Bahiano, desde
que o fundei. E sobremodo grato me seria que fossem tambem cantados
em todas as escolas brazileiras, em vez da monotona, prosaica
e desenxabida toada, em que fazem geralmente os meninos as orações
do principio e fim dos trabalhos diarios da escola.
Têm estes cantos o poder de dar á escola um certo ar de festa,
que impressiona mui agradavelmente aos meninos, ao mesmo tempo
que deleitam aos mestres, inspiram-lhes uma certa doçura de sentimento,
e poem-nos portanto em uma disposição favoravel de espirito.
As fracas e innocentes creanças, cantando, semelham côros de anjos
de magico effeito, que infundem ternura até nos corações mais
duros."
Durante toda a segunda década do século XIX, o Barão de Macahubas dedicou-se ininterruptamente ao incentivo do ensino musical no Gymnasio Bahiano e nos colégios Abilio, onde, como por ele próprio assegurado, nunca deixou de haver aulas diárias de canto e solfejo, assim como de música instrumental.
Em 1888, publicou o Barão de Macahubas uma coleção de cantos em várias línguas para o uso das escolas, colégios e famílias. O livro foi expressamente destinado à propagação da música em todas as classes sociais. No prefácio da obra, o Barão de Macahubas renovou a sua convicção de que a música deveria entrar no número das principais disciplinas do ensino primário:
"Estes cantos, que ora publico, tenho-os eu vindo de longa data
colleccionando e arranjando paciente e amorosamente com o intuito
de serem cantados nas escolas e familias brazileiras.
Precedi-os de 30 pequenas lições de solfejo facilimas e agradaveis,
nas quaes adquirirão os meninos promptamente os elementos da theoria
musical, habilitando-se assim a solfejar sem custo a musica dos
cantos, que, já pelas melodias, já pelas lettras, hãode forçosamente
interessal-os.
Estou persuadido, (e isto me dá satisfação intima), de que, além
do serviço que vai prestar este livro nas escolas, hade ás familias
proporcionar horas de bons entretenimentos, ao mesmo passo que
nos meninos e meninas creará o gosto pela musica.
Possa eu, nas paginas que seguem, convencer aos legisladores,
aos governos, aos directores do ensino publico e particular, aos
pais de familia, e emfim ao povo, das vantagens da generalisação
do ensino da musica, que bem compensado me reputarei do tempo
e dos cuidados, que me custou a elaboração deste livro."
Se o livro comentado de A.F. de Castilho fora dedicado à rainha Maria II, a coleção do Barão de Macahubas traz o nome da Princesa Isabel:
"A um espirito altamente illustrado reune V.A.I. uma natureza
profundamente artistica, revelada assaz, já na paixão com que
cultiva a pintura e a musica, já na protecção magnanima, com que
não cessa de animar e honrar aos artistas distinctos pelo talento
e pelo trabalho.
Quando, ao findar o anno de 1870, fui á regia quinta de Bushi-Park
(Residencia do Sr. Duque de Nours, pai de S.A.R. o Sr. Conde d'Eu)
perto de Londres, para ter a honra de beijar a mão de V.A.I.,
como e onde a encontrei?
Solitaria, em um pittoresco sitio do magestoso parque, sentada,
qual simples artista, a reproduzir na tela uma paysagem lindissima,
que V.A.I. offereceu depois em favor dos francezes, victimas da
fome subsequente á calamitosa guerra franco-prussiana.
Eu e os numerosos brazileiros, que naquella cidade nos achavamos
então, (entre os quaes foi rifada aquella preciosa tela para tão
humanitario fim, produzindo avultada somma), tivemos occasião
de apreciar na mesma o talento e o gosto artistico de V.A.I.
Quanto á musica, estamos todos, nacionaes e estrangeiros, acostumados
a vêr em V.A.I. uma eximia cultora e amadora da arte divina, levando
por ella o seu amor até a ponto de, para nobilital-a, descer das
alturas de sua jerarchia social e nivelar-se com os artistas.
Tambem nenhum grande artista vem a esta Côrte, que deixe de levar
consigo valiosos testemunhos da munificencia de V.A.I.
Nisto, como em tudo mais, é V.A.I. digna filha de seus augustos
progenitores.
E nas visitas que V.A.I. tão graciosamente ha feito aos Collegios
Abilio, honrando os meus e os esforços de meus filhos no serviço
da educação da mocidade, não tem manifestado sempre sua viva satisfação
ao ouvir os canticos e concertos, com que costumam nossos discipulos
festejar a augusta presença de V.A.I.?
Creio, portanto, que, si dependesse somente da vontade de V.A.I.,
realizar-se-iam os meus votos para que seja comprehendida a musica
entre as disciplinas obrigatorias do ensino primario.
Foi por todas estas razões que me animei a pedir a V. A.I. a graça
de ornar o frontispicio deste livro com o seu augusto nome, o
qual ser-lhe-á amparo e talisman para que attinja o fim a que
o destino.
Com profundo respeito
De V.A.I.
Subidto o mais reverente e dedicado
Barão de Macahubas
Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1888.
O autor inicia a exposição de seus conceitos pedagógico-musicais com considerações a respeito da ação da música sobre as emoções, fundamentando assim o seu valor educativo:
"O canto póde ser considerado uma linguagem especial, angelica
linguagem, com que exprimimos harmoniosamente os sentimentos doces
e ternos, elevados e nobres, alegres ou tristes, do nosso coração.
É um poderoso auxiliar da palavra para acalmar ou adormecer as
paixões nos espiritos agitados.
Mesmo os homens mais ignorantes e rudes sentem sua doçura, e se
deixam dominar pela sua magia.
É por isso que a musica vocal deve fazer parte essencial do ensino
popular, constituindo uma disciplina obrigatoria nas escolas primarias.
Se reflectissem as familias no quanto póde concorrer a musica
para a felicidade do lar domestico, certamente nenhuma, podendo,
deixaria de mandar logo desde muito cedo ensinar a seus filhos
e filhas o canto e um instrumento qualquer.
Uma casa de familia, onde se não toca ou canta, é uma casa sem
poesia, uma casa triste; e dessa tristeza se resentem as relações
entre os membros della.
Ainda durante o dia, estando cada qual entregue aos seus respectivos
misteres, não se faz quasi sentir a falta da musica, supposto
que sejam sempre agradaveis para toda a casa as horas, em que
os meninos, ou meninas, dão ou estudam suas lições de canto, piano
ou outro instrumento, particularmente para as mãis.
Porém chegada a noite?!
Esgotados os assumptos da conversação, tendo havido, como aliás
com tanta frequencia succede, alguma desintelligencia entre os
chefes da familia, entre estes e os filhos, ou entre os proprios
irmãos, ou contrariedades por motivo de mau serviço de famulos,
se não ha na casa quem toque ou cante, em vez de se reunirem os
membros da familia para ouvirem cantar ou tocar, o que adoçaria
e mesmo dissiparia as impressões penosas do dia, toma cada um
para seu lado, e conservam-se todos silenciosos e amuados até
a hora de se recolherem a seus aposentos, levando nos corações
um peso, que, não raro, lhes afugenta o somno.
Quaesquer sacrificios portanto que façam as familias, para darem
a seus filhos o ensino da musica, serão largamente compensados
em gozos e consolações intimas.
Tão incomprehensivel quanto irresistivel é o poder da musica.
Assim como é um mysterioso calmante das paixões, é igualmente
um miraculoso estimulante dos sentimentos nobres. Ora arranca
lagrimas de ternura, ora faz marchar o homem para a morte com
enthusiasmo.
A musica só é impotente para exprimir ou inspirar sentimentos
baixos.
A fabula, creando os mythos de Orpheu e Amphião, não teve por
fim senão exaltar o poder da musica, fazendo-a capaz de enternecer
as furias infernaes, aos animaes, e até ás plantas e ás pedras.
As lendas da antiguidade nos apresentam David acalmando com os
accordes de sua lyra os furores de Saúl; e com seus cantos, Therpandro
suffocando uma revolta em Spartha, e Tyrtheu impellindo os lacedemonios
ao combate e á gloria.
Pythagoras, o grande e bondoso philosopho da antiguidade, ensinava
a seus discipulos que o conhecimento da musica era indispensavel
a todos os homens, porque servia para dispôr os corações á pratica
das boas acções, e para inflammal-os no amor da virtude.
E qual a religião do mundo, que se não aproveite dos encantos
da musica para afervorar os crentes na contemplação dos seus mysterios,
e para cantar os louvores das grandezas do céo!
Aos encantos da musica deve sem duvida em parte o christianismo
sua influencia sobre o coração e o espirito dos fieis.
Madame de Stael disse em uma das suas obras:
'Parece que, escutando-se os sons puros e deliciosos do canto,
se está prestes a surprehender os segredos do Creador, e a penetrar
nos arcanos da vida.'
É bem conhecido o facto de no exercito suisso haver sido, sob
pena de morte, prohibido o canto 'Ranz des vaches', porque tamanha
influencia exercia no animo dos soldados, que os levava a desertar
em grupos com saudade das suas queridas montanhas.
Na Allemanha, onde, mais do que em nenhum outro paiz, se acha
generalisado o conhecimento da musica, constitue ella uma parte
essencial da educação da infancia.
Mainzer, tratando do ensino da musica na Allemanha, escreveu o
seguinte:
'Nas escolas allemãs aprendem a cantar todos sem excepção, tanto
meninos como meninas. Ha por consequencia na Allemanha tantos
pequenos cantores quantos são os meninos.
Ao lado de seus abecedarios trazem sempre todos seu pequeno methodo
de musica, seus exercicios, e sua collecção de canções a uma e
duas vozes.
Depois de entrarem para a escola, levantam-se todos a um signal
do mestre, abrem seu livrinho de cantos, e buscam a canção intitulada
-'Antes da abertura da aula'.
Lembra-lhes esta canção seus deveres para com Deus, para com seus
pais e mestres. ...
E assim dispostos, tanto pela belleza dos versos, como pela verdade
dos preceitos, que encerram, e pelo encanto da melodia simples
e expressiva, cantada por 40, 50 e muitas vezes por mais de 100
vozes, julgai do ardor de que seus jovens corações se penetram!
Aquella multidão de vozes unisonas, aquella attenção com que todos
pronunciam ao mesmo tempo, como por uma só bocca, as mesmas palavras,
com que cantam a mesma melodia, com que se preoccupam do mesmo
pensamento, - tudo isso tem um encanto inexprimivel, - tudo isso
influe favoravelmente sobre sua imaginação, elevando sua sensibilidade
a um tal grau, que não é raro vêr-se correr lagrimas de enternecimento,
tanto dos olhos dos discipulos, como dos olhos dos mestres.'
Considerado, além disto, sob o ponto de vista puramente physico,
é o canto de vantagem inquestionavel para o desenvolvimento dos
orgãos da voz e do ouvido, e para dar mais sonoridade e mais expressão
á falla.
Os sons roucos, surdos e imperfeitos de uma voz que não tem sido
cultivada, a propria gagueira, podem ser consideravelmente modificados
pelo uso frequente do canto.
Póde ainda a pratica do canto corrigir um outro defeito da falla.
Certos meninos, e mesmo adultos, fallam, lêm, e recitam baixo
de mais; defeito este que desapparece, ou se attenua em breve
tempo pelo canto.
Para conseguil-o, basta fazer os meninos percorrerem ascendentemente
a gamma das 7 notas da musica, repetindo um certo numero de vezes
unisonamente a nota, em cujo tom se quer que elles fallem, recitem
ou declamem, terminando-se por mandal-os recitar algumas palavras
e phrases na elevação de voz correspondente.
Chega-se por tal modo a combater esse defeito assaz commum entre
os meninos.
É além d'isto proclamada pela medicina a vantagem do exercicio
moderado dos instrumentos de sopro e do canto para fortalecer
os pulmões, e prevenir as molestias dos orgãos da respiração.
A estatistica medica raros casos apresenta de tisica pulmonar
entre os cantores e instrumentistas de sopro.
Em summa, não tivesse outra vantagem mais do que a de proporcionar
uma diversão agradavel á monotonia dos trabalhos escolares, tornando
alegre a escola, e portanto sympathica e attractiva, só por isso
mereceria a musica entrar na educação da infância, como disciplina
principal." (op.cit. XII-XIV)
O Barão de Macahubas procurou demonstrar no seu prólogo conhecer o desenvolvimento pedagógico do Exterior, admirando sobretudo o pragmatismo da educação musical nos Estados Unidos. Foi com base em usos norte-americanos que defendeu um ensino musical fundamentado na prática, no 'canto de ouvido', dando relativamente pouco valor à transmissão de conhecimentos teóricos. Sob este aspecto, passível de crítica, torna-se evidente a noção errônea que se tem até hoje do ensino musical nas escolas do Império, caracterizado que foi não por excesso de teoria, mas sim pelo domínio quase que absoluto da prática viva do canto. Tal repetitiva crítica de um suposto caráter excessivamente teórico do ensino da música no Brasil representa, na verdade, desde o século XIX até o presente, uma constante no pensamento pedagógico de influência externa, sobretudo norte-americana, no país, cumprindo à pesquisa musicológica comprovar a veracidade de tais afirmações:
"Quasi como na Allemanha é o ensino do canto dado desde muito
tempo nas escolas da Suecia, Suissa e Austria. José Rafael de Menezes, op.cit. 65
A Inglaterra se tem assaz esforçado para tornar popular o canto:
porém, depois da Allemanha, nenhum paiz ha feito tanto como os
Estados Unidos da America do Norte para generalisar a musica vocal.
Em quasi todos os Estados (provincias) daquelle admiravel paiz,
é actualmente obrigatorio o ensino do canto nos diversos graus
do ensino primario.
As mestras americanas, encarregadas em geral das classes inferiores
das escolas, começam por ensinar aos meninos cançõesinhas muito
curtas e muito simples, não exigindo delles mais do que uma repetição
por assim dizer, instinctiva, um mero canto de orelha; isto é,
cantam as mestras e repetem as creanças.
"O Método Portuguez é apresentado pelo seu Autor, Antônio Feliciano
de Castilho como 'essencial e eminentemente analytico'; a pretender
'estudar a palavra falada em si mesmo, e antes da escrita'. Há
uma predominância de exercícios de leitura, a partir da ênfase
às sílabas; 'leitura auricular, e leitura auricular alternada',
(...) 'tudo ordenado e secundado por ritmo'. O erudito mestre
Castilho é cego, e a audição se apura com a musicalidade que no
Brasil já vinga por inclinações étnicas intuídas pelos Jesuítas.
Castilho recorre à repetição, em sonoridade de pronúncia dos 'ledores
animados', que depois se habituarão para suas atividades privadas.
Daí nascerem os corais didáticos, das aulas brasileiras, e os
estudos em voz alta, (...) Para concluir em credenciar ao Método
Portuguez, êxitos estéticos e éticos, em exercícios corporais,
em alegrias dos ambientes: 'afaz o coração de sentimentos benignos
e humanos, ao amor mútuo, e à nobre cubiça do bem'."
Um pouco mais tarde dão-lhes conhecimentos muito rudimentares
da arte musical; a saber - Os nomes e valores das notas, escriptas
em caracteres grandes nos quadros negros. E, em seguida, ensinam-lhes
a bater o compasso, fazem-nas sentir o rythmo, contar os tempos
e apreciar o valor comparativo das mesmas notas.
Começam então os meninos a tomar gosto pela musica, uma vez que
sejam breves as lições; gosto que se desenvolve e augmenta, quando
têm de applicar sua pequena sciencia musical, solfejando cançõesinhas
singelas e ternas, cujos dizeres comprehendem.
Ensinem pois os mestres, (e muito lhes recommendo isto), primeiro
os canticos deste livro praticamente, isto é, de orelha, para
depois passarem ás lições de solfejo, que os precedem.
Essas lições de solfejo vão desacompanhadas de noções theoricas,
que se encontram no compendio de musica addicionado a este livro,
mais para uso dos mestres do que para instrucção dos meninos,
aos quaes as explicações escriptas, em logar de aproveitarem,
confundem.
Compete aos mestres e mestras, servindo-se da pauta musical traçada
no quadro negro, explicar concisamente os nomes e valores das
notas, ensinando ao mesmo tempo a marcar ou bater o compasso,
e passando immediatamente á applicação pratica nos solfejos do
livro."(op.cit. XVIII-XIX)
(...)
Assim como aprendem os meninos a fallar sómente pela pratica de
ouvir e imitar a falla, assim tambem aprendem a cantar sem conhecer
nada absolutamente da theoria da arte musical, que com facilidade
aprendem depois.
Esta é que é a marcha natural: e este é o methodo pelo qual tenho
sempre ensinado o canto e a musica aos meus pequenos discipulos,
os quaes todos sem excepção entram para a aula pratica de canto
no mesmo dia, em que entram para o collegio, passando depois para
o estudo de solfejo escripto, que aprendem com rapidez surprehendedora.
E, aprendido o solfejo, aptos ficam logo todos para aprender qualquer
instrumento, e com uma facilidade que a elles proprios maravilha.
Dahi se origina o gosto dos meus discipulos pela musica; dahi
o haver sempre nos meus collegios bandas de musica instrumental
excellentes, as quaes dão á vida collegial uma cordial animação,
que influe assaz para o bom espirito da corporação.
E tal é a minha convicção de que a musica concorre poderosamente
para abrandar as asperezas de genio dos meninos, e para dispol-os
ao bem, que, a menos que algum motivo extraordinario m'o impeça,
nunca deixo de comparecer á aula de canto, que, como já disse,
é diaria, empunhando eu proprio a batuta, e cantando juntamente
com os alumnos.
E quantas vezes para animal-os, e dar-lhes exemplo, não tenho
para elles, e com seu applauso, cantado em solo algumas lições!
Tambem nos meus collegios não deixou de haver jamais professores
de canto e solfejo, de piano e de banda instrumental." (op.cit.
XVIII-XIX)
Outro ponto que é constantemente repetido na argumentação pedagógica de reformadores do ensino no Brasil diz respeito ao uso errôneo da voz, que seria característico do ensino musical no passado. Já para o Barão de Macahubas, porém, o essencial seria a entoação suave dos cantos. Os mestres deveriam dar grande atenção à impostação natural da voz:
"Quando cantam em coro, e sobretudo acompanhados por um harmonium,
piano, ou outro qualquer instrumento, experimentam os meninos
uma impressão muito agradavel, que lhes transparece nos ingenuos
semblantes; impressão que se communica a quem os ouve, e de que
elles proprios se sentem enlevados. Mas para isso é esssencial
que cantem docemente, á meia voz, depois de ouvirem cantar o mestre,
que tambem cantará sempre juntamente com elles.
Si o professor os deixar cantar, como se diz 'a quebrar ouvidos',
não adquirirão jamais o sentimento musical, desgostar-se-hão do
canto, ou o executarão apenas machinalmente, por sobre damnificarem
os orgãos vocaes.
Quando os meninos cantam gritando, em breve se lhes irrita a garganta,
enrouquecem, perdem a voz, e começam a tossir.
É o que tenho observado na minha longa e constante pratica de
mais de 30 annos. Digo constante, por que nunca deixou de ser
cultivada methodica e diariamente a musica nos collegios, que
tenho fundado e dirigido.
E com a autoridade que me vem dessa longa e constante pratica,
affirmo que o dom do canto é universal nos brasileiros.
Raros meninos, rarissimos, tenho encontrado, a quem houvesse negado
a natureza o uso harmonico deste admiravel instrumento - a voz;
- nunca mais de 2 a 3 por cento.
E mesmo estes, pela continuação do exercicio do solfejo em commum,
e dos cantos em coro, chegaram quasi todos a adquirir um timbre
de voz supportavel." (op.cit. XVI-XVII)
Segundo os conceitos do Barão de Macahubas, a iniciação musical deveria começar cedo. O ensino do canto aos meninos deveria ser particularmente incentivado:
"Ha entre nós uma opinião erronea, que convém ser combatida; e
é que não se deve ensinar o canto aos meninos, e sobretudo ás
meninas, senão depois de uma certa idade; erro grosseiro e prejudicial,
que só póde ser partilhado por quem se esquece de que os orgãos
do corpo humano, sem exceptuar um só, tanto mais se desenvolvem
e aperfeiçoam em suas funcções, quanto mais se exercitam ou funccionam,
uma vez que seja o exercicio moderado, graduado e constante.
Nenhum mal ha portanto em começarem os meninos e meninas a aprender
o canto desde a mais tenra idade, sob condição, porém, de cantarem
sem esforço, á meia voz, exactamente como fazem os passarinhos
cantores, quando ainda novinhos, cujo canto é quasi imperceptivel,
si bem que já com certa melodia.
Devem cantar assim os meninos, emquanto os orgãos da voz estão
em via de desenvolvimento."
Segundo o Barão de Macahubas, o objetivo da Educação Musical não deveria ser, primordialmente, a formação de cantores e músicos profissionais, mas sim de apreciadores e amadores bem formados. Esta também deveria vir a ser uma idéia continuamente repetida como renovadora na História da Educação Musical no Brasil:
"E si, como asseverei, é universal nos brasileiros o dom do canto,
por que razão temos nós tão poucos cantores e cantoras?
Quanto a cantores, é simplesmente porque o canto não é ensinado
aos meninos; mas quanto a cantoras, é por causa daquelle erro
de que fallei - de só começarem as nossas meninas a tomar lições
de canto, (bem entendido aquellas que as tomam, que não são muitas),
aos 14 annos de idade, justamente quando os orgãos vocaes têm
já adquirido, sem o minimo exercicio ou cultivo, seu desenvolvimento
completo; - justamente quando têm chegado a seu maior grau os
sentimentos de modestia e pudor feminil, que, unidos á natural
timidez das donzellas, além de impedirem as ousadias, levam-nas
a recuar ou desanimar, a menor difficuldade, com uma vergonha,
até certo ponto desculpavel, de fazerem má figura, cantando mal,
ou desentoando.
De modo que só as moças de grande talento musical, e de excepcionaes
disposições de animo, ousam affrontar as difficuldades, tornando-se
cantoras distinctas.
Mas a sociedade não precisa sómente, nem principalmente, de cantoras
de primeira ordem: - precisa pelo contrario mais de cantoras modestas
de segunda e de terceira ordem.
Caiba ás cantoras de alto cothurno a gloria de extasiarem o publico,
exhibindo-se nos theatros, nos concertos, e nos córos religiosos
dos templos do Senhor: - ás cantoras medianas, de talento mediocre,
fique reservada a missão intima de alegrar o interior das familias
com suas simples, mas suaves modulações de voz despretenciosa,
si bem que cultivada." (op.cit. XVIII)
Servindo ao objetivo último da Educação Musical, que, segundo o Barão de Macahubas deveria ser a propagação do gosto pela música por todas as classes sociais, introduziu ele o uso de meios pedagógicos para facilitar o ensino, como o uso do quadro negro com pautas:
"O empenho que ponho em propagar o meu methodo de leitura rapida
e facil, que ha de eliminar os analphabetos dentre o povo brazileiro,
é quasi o mesmo de propagar o conhecimento da musica por todas
as classes da sociedade.
E não foi com outro fim que no meu Apparelho Escolar Multiplo
aggreguei á imprensa escolar um quadro negro com a pauta musical,
que facilita immenso o ensino simultaneo do solfejo nas escolas."
(op.cit.XIX-XX)
Dada a importância da prática na sua concepção de ensino musical, os professores de música deveriam ser bem formados musicalmente:
"Nenhuma lição de canto, de orelha ou escripto, (canto ou solfejo)
deve ser cantada pelos meninos sem que o mestre a cante previamente,
ou a execute em algum instrumento, uma, duas e mais vezes, a fim
de se penetrarem elles da melodia, e poderem imital-a.
O ensino do canto e da musica, para ser proveitoso deve começar
pelo exemplo, continuar pela pratica e terminar pela theoria.
- Do exemplo nasce a imitação, o gosto e a expressão do canto
ou da execução de uma peça musical em qualquer instrumento.
- Da pratica vem a fluencia e a correcção da execução.
- Da theoria vem o conhecimento da arte, o poder de lêr e interpretar
a musica escripta, e a faculdade de transmittil-a.
Para cantar sómente não se precisa de saber musica.
O mestre, deve pois, e sempre, cantar ou executar o canto ou peça
de musica antes da lição, afim de mostrar aos discipulos como
devem cantar ou tocar.
Si o mestre não canta, nem toca um instrumento, que se não metta
a ensinar o canto ou o instrumento.
Nos Estados-Unidos da America, onde o canto é ensinado em todas
as escolas, exige-se como condicão impreterivel, que os candidatos
ao exercicio do magisterio primario, se mostrem habilitados a
ensinar pelo menos os elementos da musica praticamente, isto é,
o solfejo. E, em igualdade de habilitações em todas as materias
exigidas, são preferidos os pretendentes que podem dar o ensino
do canto.
Mrs. James Currie, em sua obra - Common School Education, - tratando
do ensino da musica, recommenda aos mestres a estricta observação
dos seguintes preceitos:
'1. Exigir dos discipulos uma postura conveniente, quando cantam
ou tocam um instrumento.
2. Não consentir absolutamente que cantem alto, ou que, em vez
de cantar, gritem.
3. Exigir delles uma pronunciacão distincta das palavras do canto.
4. Inspirar-lhes, desde as primeiras lições, o bom estylo, como
base da boa execução.
Não esqueçam os mestres que o aperfeiçoamento da voz e a educação
do ouvido, assim como o desenvolvimento do gosto pela musica,
são os pontos principaes da instrucção musical nas escolas e nas
familias.'
O mesmo autor remata as recommendações acima exaradas, aconselhando
aos mestres, como cousa de muita vantagem, que façam os discipulos
aprenderem de cór, não só as poesias, sinão tambem as melodias
dos cantos, o que lhes permittirá dar mais attenção a uma execução
expressiva.
Não é simplesmente pelo cantar ou tocar que se desenvolve e apura
o gosto musical, mas pela expressão com que se canta ou toca."
(op.cit. XXI)
O principal anelo do Barão de Macahubas dizia respeito à inclusão obrigatória do ensino musical nas escolas primárias do Brasil:
"A musica não é ainda, infelizmente, uma disciplina obrigatoria em nossas escolas; - mas deve ser o mais vivo desejo dos mestres dedicados e amigos do progresso, e o objecto especial dos generosos esforços de todos aquelles que tomam a peito o desenvolvimento e a elevação do ensino nacional - incluil-a no nosso ensino primario, de modo que seja uma disciplina inseparavel deste, em razão da sua acção directa e profundamente benefica sobre os sentimentos, e da sua influencia para elevar e purificar as almas." (op.cit.XXI)
Digno de nota é a inclusão - sem indicação de autor - do "Hino da Lei Nova do ensino infantil (partitura ao lado) e da Invocação a Deus - Hymno para o começo da aula - de A. F. de Castilho. Esse hino foi, portanto, embora com diferentes melodias, cantado em escolas dos Açores, de Portugal e do Brasil no século XIX. Também sem indicação de compositor aparece o Hymno A Mocidade Academica, de A. Carlos Gomes (1836-1896).
Somente um hino pátrio encontra-se na coleção: o Hymno da Independencia,
de Marcos Portugal (1762-1830).
Com indicação de compositor, tem-se o Hymno da Mocidade, de Norberto
de Carvalho, professor do Collegio Abilio do Rio de Janeiro.
A coleção inclui canções em francês (Hymne à Sainte Marie, L'Ange Gardien, Hymne de la jeunesse, Entrée en Classe, L'Adieu des Collégiens, Pimponette, Le petit Tambour, Pas de course); em inglês (Baby's ship, Loud raise the peal of gladness, Morning Song, Evening Song, The Moon, Childhood Pleasures, Hosanna, Good-Night) e em alemão (Morgenlied, Heidenröslein, Die Lilien auf dem Felde, Freiheit).
O estudo dos conceitos do Barão de Macahubas demonstra, por um lado, um nível considerável da reflexão relativa à Educação Musical no Império e a influência do pragmatismo norte americano no ensino; por outro lado, demonstra a precedência de vários conceitos que, no futuro, seriam continuamente apresentados como inovadores. Os esforços destinados ao estabelecimento de uma Educação Musical fundamentada musicológicamente devem considerar tais pressupostos, pois trata-se do sentido e da justificação da prática, assim como do valor dos conhecimentos teóricos daí decorrentes.