Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 14 (1991: 6)


 

DA CONCEITUAÇÃO DO CLÁSSICO E DO CLASSICISMO NO BRASIL (2)

Reflexões terminológicas: Estilo clássico, música clássica, classicismo

Antonio Alexandre Bispo

Termos como estilo clássico, música classica e Classicismo já foram tratados inúmeras vezes e sob diversos pontos de vista na literatura musicológica. Cumpre, porém, sobretudo no atual Ano Mozart, indagar se a conceituação já elaborada e determinadas conotações das concepções histórico-musicais resultantes são adequadas à consideração de desenvolvimentos e fatos em áreas distintas daquelas particularmente estudadas pela Musicologia européia.

Placa de W.A.Mozart em Veneza
Placa comemorativa a W.A.Mozart em Veneza. Visita-homenagem do ISMPS
Para a Europa do Norte e Central, a redescoberta do mundo antigo e a valorização de um Ideal Clássico no século XVIII uniram-se a um emocional fascínio pela atmosfera luminosa do Sul. Assim, significativos impulsos nasceram de viagens e estadias de artistas e eruditos centro-europeus na Itália. Também na música já foi salientado por várias vezes o fundamental papel exercido por esse país. Em vista desta orientação ao mundo meridional, parece ser estranho o fato que justamente a Historiografia Musical do Sul da Europa - e a da América Latina - encontre dificuldades no emprêgo de conceitos relacionados com o Clássico. Esse mal-estar manifesta-se na incongruência do uso do termo estilo clássico e na distinção de uma fase clássica em obras dedicadas à História da Música Especial e Geral. Fenômeno similar parece expressar-se também em certo receio do uso do termo Romantismo em considerações histórico-musicais do século XIX na América Latina. (a respeito, do editor, "O século XIX na pesquisa histórico-musical brasileira: necessidade de sua reconsideração", in Latin American Music Review 2/1, 1981, 130-142)

A principal razão dessa situação paradoxal parece residir no fato que muitos conceitos (recorde-se aquí Empfindsamkeit (Felix R. Bosonnet, "Die Bedeutung des Begriffs Empfindsamkeit für die deutsche Musik des 18. Jahrhunderts", in Bericht über den Internationalen Musikwissenschaftlichen Kongreß, Bonn 1970, Kassel 1971, 352-355) e Sturm und Drang-) foram definidos por uma musicologia desenvolvida sobretudo no mundo de idioma alemão e primordialmente em função da consideração histórico-musical da área correspondente. ("It was above all the Germans, with their passion for philosophizing, who sought to define the music of the time, and in doing so laid dangerous traps for historians of the present day", J.A.Westrup, "The paradox of eighteenth-century music", in Studies in Musicology: Essays in memory of Glen Haydon, J. W. Priett, ed., The University of Horth Carolina Press 1969, 118-132, 131)

Sendo, porém, os termos Klassik e Klassisch, mesmo com relação à música alemã, ainda de não inequívoca determinação (Carl Cahlhaus, "Historismus und Tradition" in Zum 70. Geburtstag von Joseph Müller-Blattau, Christoph-Hellmut Mahling ed., 1; Kassel 1966, 46-58, 52), pode-se esperar que esses conceitos venham a adquirir futuramente a dimensão que lhes compete com a gradual consideração global do desenvolvimento histórico-musical do mundo de cultura de cunho ocidental.

Neste contexto parece ser conveniente trazer à memória alguns significados do termo clássico. Que o conceito música clássica seja usado coloquialmente em distinção à música ligeira, popular, folclórica, etc. é um fato que merece apenas breve menção. Quanto ao uso do termo no sentido de designação de uma época histórica-estilística, tem-se aquí o mesmo problema de todas as tentativas de periodização histórica, que jamais podem abranger a multiplicidade de fenômenos e desenvolvimentos de determinado espaço de tempo. Assim como o termo Romantismo, também o termo Clássico é muitas vezes empregado inapropriadamente: "Uma categoria da história do pensamento, que necessitaria ser precisamente definida, a fim de ser útil historiográficamente, é gasta como superficial etiqueta". (Carl Dahlhaus, "Musik und romantik", in Musik-Edition-Interpretation: Gedenkschrift Günter Henle, Martin Bente, ed.; Berlim 1980, 133-141, 133)

Com relação à diversidade sempre implícita a um determinado período histórico-musical cumpre considerar que "em toda a época da História da Música tem-se de observar, ao lado do desenvolvimento musical condicionado pela época respectiva, a tradição e o patrimônio herdado do passado". (Karl Gustav Fellerer, "Zur Frage des musikalischen Erbes des 16. Jahrhunderts in der abendländischen Musik", in Convivium Musicorum, Festschrift Wolfgang Boetticher zum 60. Geburtstag, ed. H. Hüschen e Dietz-Rüdiger Moser, Berlim 1974, 254-263, 254 e 260).

Além do mais, a música de uma época histórica vive mais ou menos intensamente em períodos posteriores, mesmo quando "a tradição viva demonstre uma transformação de concepções que se distancia da realidade da época da composição e da primeira apresentação". (Karl Gustav Fellerer, "Zur Tradition, Fortschritt und Bild der Wiener Klassik in der ersten Hälfte des 19. Jahrhunderts", in Festschrift Georg von Dadelsen zum 60. Geburtstag, ed. Thomas Kohlhase e Volker Scherliess; Neuhausen-Stuttgart 1978, 130-147, 131)

Registra-se, assim, no mundo cultural de cunho ocidental do século XVIII e do início do século XIX, a sobrevivência de obras mais antigas no repertório, assim como a continuidade do cultivo do stile antico, como, por exemplo, nos Motetos de Procissão e de Enterro de Portugal, do Brasil e da India Portuguesa. Além do mais, fenômenos e desenvolvimentos em sí comparáveis podem ocorrer em não simultâneamente em diferentes regiões.

Mais produtiva do que reflexões a respeito do Clássico como definição de determinada época histórica parece ser a consideração diferenciada do termo clássico como adjetivo relacionado com uma conceituação a-temporal de valor e de estilo.

No sentido estético-normativo, o termo clássico designa obra modelar ou o apogeu de um gênero, de uma forma ou de um determinado contexto expressivo. (Karl Otto Conrady, Goethe: Leben und Werk, 2; Königstein/Ts. 1985, 224) Sob este aspecto, o termo pode ser aplicado a obras de todas as épocas e culturas. As dificuldades que aquí surgem dizem respeito ao uso adequado ou não de um conceito estético de valor e não se relaciona diretamente com a questão do "Europeu" ou "Não-Europeu". Assim, estabeleceu-se em diversos países,- e mesmo superando fronteiras-, um conjunto de obras consideradasclássicas, como composições de Palestrina no âmbito da música sacra. (Friedrich Blume, "Klassik", Die Musik in Geschichte und Gegenwart 7, 1028)

A vida musical da Itália, da Península Ibérica e da América Latina, com o cultivo de obras não só de Haydn, Mozart e Beethoven, mas também de J.S.Bach, Josquin des Prés e outros, demonstra que há uma difusão e uma aceitação tácita do valor clássico de determinados autores e obras, no sentido estético-normativo do termo.

Não se deve, porém, minimizar o fato que também os conceitos de valor estético estão sujeitos ao fluxo da história e ao condicionamento cultural: "o tentar compreender a modificação das idéias de valor das diferentes épocas possibilita um aprofundamento da investigação científica de acontecimentos históricos e obras artísticas."(Helmuth Christian Wolff, "Geschichte und Wertbegriff", in Festschrift Friedrich Blume zum 70. Geburtstag, ed. Anna Amalie Abert e W. Pfannkuch; Kassel 1963, 398-405, 398).

Sob este aspecto, poucas regiões apresentam comparável potencialidade a estudos e interpretações como os países do Mediterrâneo e da América Latina dos séculos XVIII e XIX. Aquí, obras de numerosos compositores, de valor reconhecido por várias gerações, foram somente desclassificadas a posteriori, no contexto da assimilação de critérios de valor centro-europeus, sendo finalmente relegadas ao esquecimento. Fazem-se necessários esforços de pesquisa e reflexão no sentido da recuperação dos critérios de valor de diferentes regiões e diferentes épocas a partir de seus próprios pressupostos, mesmo tendo-se consciência que uma "história estilística das qualidades estéticas" é acompanhada de sérias dificuldades, "pois a investigação deve apoiar-se aquí na 'impressão' ou na 'concepção' (....), devendo-se perguntar se tal impressão ou concepção pode ser subjetivamente variável ou passível de definição inequívoca". (Hans Zigerle, "Zum Problem einer Stilgeschichte der ästhetischen Qualitäten", in Festschrift Wilhelm Fischer zum 70. Geburtstag, Innsbruck 1956, 161-170, 161)

O carácter convincentemente modelar e a sua permanência no tempo no julgamento de uma obra ou estilo justificam-se como elementos imprescindíveis do Clássico, desde que se considere o contexto cultural respectivo. Parece ser questionável, porém, partir-se exclusivamente da idéia, muitas vezes hoje defendida, de que o termo clássico somente deva ser empregado para obras que lograram permanecer no repertório.(Carl Dahlhaus et alii, "The problem of value in music of the nineteenth centura", in Report of the 10th. Congress, Ljubljana 1967, ed. D. Cvetko; Kassel 1970, 380-404, 380) Essa permanência é por demais sujeita a fatores incidentais para que possa ser considerada suficiente. É inaceitável a possibilidade de que o conceito clássico, que exige sempre o emprêgo de um critério de valor, seja entregue às decisões de "mercado". Em consequência, torna-se necessário, nos esforços destinados à renovação e intensificação da vida musical e da educação nas diferentes regiões e localidades, partir-se de investigações científicas destinadas à recuperação de um repertório que chegou a ser, pela sua permanência local, clássico, sem que tal esforço diga respeito somente a obras que mereçam tal designação e sem cair-se em estéril historicismo.

Na consideração do termo clássico como designação de estilo, coloca-se particularmente o problema do relacionamento da música com as concepções de uma época da qual afirma-se ainda não ter possuído "uma disciplina estética com critérios terminológicos apropriados". (Walter Serauky, "W. A. Mozart und die Musikästhetik des ausklingenden 18.und frühen 19. Jahrhunderts" in Bericht über den Internationalen Musikwissenschaftlichen Kongreß Wien, Graz/Köln 1958, 579-589, 595)

A situação do pensamento desse período foi até mesmo considerada como paradoxal. (Carl Dahlhaus, "KArl Philipp Moritz und das Problem einer klassischen Musikästhetik", in International Review of the Aesthetics and Sociology of Music 9/2, 1978, 279-295, 292)

A música e a estética da música perderiam, porém, a aparência do paradoxo se fosse considerado que "uma estética musical define-se menos através da evolução da música, que é o seu objeto de estudo, do que através da tradição filosófica e literária que lhe fornece as categorias". (Carl Dahlhaus,"Romantische Musikästhetik und Wiener Klassik", in Archiv für Musikwissenschaft 29, 1972, 166-181, 171)

Tal afirmação, feita em função da situação centro-européia, não deixa de revelar-se problemática no caso da pesquisa histórico-musical nos países do Sul da Europa e da América Latina, onde o relacionamento da cultura musical com a história do pensamento ainda não foi suficientemente estudado. Dificilmente pode-se aquí fazer distinções entre as concepções gerais daquilo que foi considerado clássico e as características estilísticas a serem analisadas das próprias obras. Em todo o caso, merece particular cuidado o emprêgo de critérios próprios de um repertório de idéias estabelecido em função de outro contexto cultural, mesmo quando digam respeito a conceitos fundamentais para a caracterização de um espírito clássico, como no caso da "nobre simplicidade e grandeza silenciosa" (Johann Joachim Winclemann, "Gedanken über die Nachahumung der griechischen Werke in der Malerei und Bildhauerkunst", in Winclemanns Werke, Berlin/Weimar 1982, 1-36, 17) ou da "unidade na variedade e em simplicidade". (Gerhard Nestler, "Über den Begriff der Mannigfaltigkeit im Einfachen" (J.J. Winckelmann) in der Musik der Wiener Klassik", in Bericht über den Internationalen Musikwissenschaftlichen Kongreß Wien, op.cit. 443-446)

Só um cuidado no uso de interpretações daquilo a ser definido como clássico segundo correntes literárias e filosóficas possivelmente estranhas ao contexto cultural não é suficiente, porém, no esforço de elaboração de critérios estilísticos adequados. Os conceitos relativos ao estilo clássico parecem estar demasiadamente ligados à convicção de que este "é o estilo que se define através da sua expressão amadurecida nas obras instrumentais de Haydn e Mozart". (Jens Peter Larsen, "Traditionelle Vorurteile bei der Betrachtung der Wiener klassischen Musik", in Symbolae Historiae Musicae, Hellmut Federhofer zum 60. Geburtstag, ed. F. W. Riedel e H. Unverricht, Moguncia 1971, 194-203, 197)

Entretanto, a orientação sobretudo dirigida a critérios estilísticos resultantes de considerações da música instrumental (Georg Feder, "Bemerkungen über die Ausbildung der klassischen Tonsprache in der Instrumentalmusik Haydns", in Report of the Eighth Congress- International Musicological Society, New York 1961), 305-313) não parece ser adequada para os países do Sul da Europa e da América Latina, onde a música da época - embora com exceções - ainda fundamentava-se essencialmente na música vocal com acompanhamento instrumental, sobretudo na música sacra. Assimilar tais critérios - nos quais reside um julgamento de valor - significaria para tais países renegar praticamente todo o seu patrimônio musical ao mesmo papel secundário que se destina à música sacra em trabalhos centro-europeus sobre o estilo clássico.

O uso de critérios não adequados causaram 1) a desvalorização do passado histórico musical do século XVIII e início do XIX de países do Sul da Europa e da América Latina pela passagem do século, sobretudo no âmbito da música sacra; 2) o uso pouco diferenciado do conceito Barroco Musical e, principalmente, 3) a crítica atual deste último emprêgo, caracterizada por uma redução inadmissível do termo Barroco a aspectos técnico-estilísticos. Esses pontos deverão vir a ser objeto de particular consideração em futuros números desta publicação.

 

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