Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 11 (1991: 3)


 

DA SUPOSTA REMEMORAÇÃO DAS LUTAS DO QUILOMBO DOS PALMARES NO FOLGUEDO QUILOMBO DE ALAGOAS

Antonio Alexandre Bispo

(Excertos)

 

Palmares de Liberdade e EngenhosProblemática similar à discutida com relação às "Bandas de Couro" é aquela que diz respeito a certas tentativas de interpretação do folguedo natalino denominado "Quilombo", em Alagoas, no qual também tomam parte os conjuntos instrumentais citados. A questão foi já suficientemente discutida por vários pesquisadores; a discussão parece, porém, no presente, retroceder a um nível de politização na análise que já se supunha superado. Esse retrocesso coincide com a aparência de embasamento científico que se pretende dar a certas atividades político-sociais e político-religiosas aliadas ao conceito de Zumbi (cf. prefácio do bispo de Palmares no folheto Palmares de Liberdade e Engenhos de Escravidão, Caxias do Sul, 1985).

A romantização do correspondente episódio histórico já se manifesta no artigo "Narração de alguns successos relativos a Guerra dos Palmares de 1668 a 1680", de João Francisco Cabral, impresso na Revista do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano (N° 7, 1875, 175 ss.).

No I° Congresso Brasileiro de Geografia, em 1914, Alfredo Brandão tentou demonstrar a localização dos antigos quilombos; no I° Congresso Afro-Brasileiro de Recife, em 1934, Mario Mello afirmou:

"Em torno dos Palmares paira grande atmosphera de sympathia." ("A República dos Palmares", 1° vol., 183-185)

Alagoas distingüe-se, no presente, pela acentuada atenção que intelectuais e personalidades da vida pública e eclesiástica emprestam a questões relativas aos Palmares. Significativo foi, por exemplo, a ampla cobertura que a imprensa deu à visita do príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança a locais comemorativos dos Quilombos, em 1983.

Théo Brandão (Quilombo, Rio de Janeiro, 1978, Cadernos de Folclore, 28) já constatou, há muito, claramente:

"A coincidência do nome do auto ou dança com a do mais famoso e maior quilombo existente no Brasil, a grande difusão do auto no atual Estado de Alagoas, onde se deu o sucesso histórico, e, até certo ponto, a similitude do mesmo com o enredo do auto levaram muito naturalmente os estudiosos a deduzirem uma origem histórica para o Auto ou Dança dos Quilombos. A convicção, generalizada até pouco tempo, era de que o Auto representava uma sobrevivência histórica da célebre Tróia Negra (...)." (pág.4)

Essa seria a convicção, entre outros, de Guilherme Theodoro de Melo, de Alfredo Brandão e Arthur Ramos.

O especialista alagoano corrige porém essa suposição:

"A verdade, porém, é que tais populações não guardam a menor lembrança da república negra e da guerra que a ela foi movida, nem ligam de qualquer modo o folguedo que denominam Quilombo a tal sucesso histórico." (pág.5)

Segundo ele, poder-se-ia supor uma origem do folguedo nos autos europeus, uma "reinterpretação brasileira ou mesmo africana da antiga Mouriscada ou Mouros e Cristãos peninsulares e europeus". (pág. 10)

Abelardo Duarte, porém, no seu livro já citado, Folclore Negro das Alagoas (págs. 373ss.), tece reflexões a respeito e, sem dar argumentos convincentes, afirma peremptoriamente:

"Acredito que o auto dos Quilombos seja de inspiração histórica e não vale a pena tentar mais uma hipótese para explicá-los. Os fatos o demonstram sobejamente." (pág. 379)

Os fatos e os documentos porém não o demonstram e essa afirmação não pode ser aceita cientificamente. Trata-se de mais um mal-entendido histórico causado por uma obsessão de natureza antropológica de cunho biologístico. Trata-se, também, como já observou Théo Brandão, sobretudo de um mal-entendido criado pela denominação do folguedo. Por outro lado, trata-se, pelo que tudo indica, de uma insuficiente consideração do fenômeno de formação de quilombos em Alagoas no contexto mais amplo do mundo de influência portuguesa no Congo/Angola da época.

A palavra "quilombo" (kilombo) dizia respeito, em meados do século XVI, ao tipo de acampamento fortificado utilizado pelos jagas, povo africano de discutida origem e que, sempre em movimentação guerreira, constituiu sempre severa ameaça à existência do reino cristão do Congo. As notícias referentes a esse povo são misturadas com concepções possivelmente lendárias. Consta que possuiam um único líder, Zimbo; que seguiam uma determinada lei (Kigila) imposta por uma rainha proveniente de outra região; que matavam inicialmente os próprios filhos masculinos, adotando aqueles aprisionados dos povos atacados; com os restos de meninos queimados vivos faziam a pomada "Magi-a-Samba", com a qual ungiam os seus corpos. Mais tarde, a prática do assassínio dos próprios filhos masculinos teria sido substituída por uma cerimônia de resgate simbólico que lhes dava o direito de considerá-los como presa de guerra (Graziano Saccardo, Congo e Angola: con la storia dell‘antica missione dei Cappuccini 1, Venezia-Mestre, 1982, 60). Durante o grande ataque ao Reino do Congo (1571-1573), foram eles combatidos pelos congoleses com auxílio de exército português enviado por D. Sebastião. Os jagas, ao invés de retornarem a sua terra de origem, se refugiaram junto a povos afins ao Sul do Congo, ocupando Matamba e a região do alto Cuanza e penetrando no reino de Ndongo. Com isso, a história de Angola (Ngola, aqui vista na sua oposição ao reino do Congo, não como o futuro Estado) se mistura com a dos jagas, sobretudo sob a ação da rainha Njinga-Mbandi-Ngola (1582-1663). Batizada sob o nome de D. Ana de Sousa, essa guerreira "Senhora de Ndongo" passou posteriormente à lei dos jagas, também vivendo em "quilombos" e mantendo um corpo de jovens vestidos com saias.

Já esses dados provenientes da mesma época da formação dos quilombos em Alagoas, época de domínio da Espanha e de conflitos com holandeses em ambos os lados do Atlântico indicam que uma eventual interpretação histórica da tradição dos quilombos não pode ser procurada exclusivamente do lado brasileiro.

Vários aspectos dessa tradição parecem lembrar os fatos considerados, sobretudo a estrutura básica de luta dos "índios vencedores" com o seu rei trazendo roupas européias contra os negros nos quilombos; possuem uma rainha branca e o motivo é o do resgate de objetos e de meninos roubados pelos negros.

Lembrando da hipótese de uma vinculação com os Cucumbis levantada por Oneyda Alvarenga, poder-se-ia citar ainda a circuncisão de meninos e, aceitando-se a similaridade detectada por vários folcloristas com as tradições dos Congos e Congadas, o aparecimento, em alguns desses últimos grupos, da figura da Rainha Ginga, motivos porém não constatados no folguedo de Alagoas.

Tudo indica, portanto, que motivos históricos (não ligados diretamente com acontecimentos do Palmares) foram adaptados a uma estrutura herdada de tradições européias. Estas diziam respeito às muito divulgadas representações da Guerra de Troia com o rapto de Helena, jogos provenientes da Antiguidade (labirintos, caracóis e outros) e que receberam no decorrer dos séculos re-interpretação cristã, ligada sobretudo com as festas da Epifania. Por mais estranho que pareça aos intelectuais, a razão está com um dos representantes do próprio folguedo, citado por Théo Brandão:

"O brinquedo foi inventado por causa dos três Reis Magos: o Rei do Caboclo, o Rei Negro e o Rei de Nação." (pág.5)

Não se trata, nessa discussão, do problema da "ignorância" de fatos históricos alagoanos por parte dos participantes do Quilombo. Trata-se, antes de um problema dos estudiosos da cultura: do querer conscientemente ignorar tradições européias medievais já sobejamente estudadas.

(...)

 

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