Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 08 (1990: 6)
Debate: Epistemologia e sociologia do trabalho científico
(Excertos)
Ao lado do movimento de renovação vivenciado pelos países europeus, registra-se na atualidade um incremento preocupante de tendências extremistas, algumas delas de clara orientação totalitária. Essas tendências ainda não se revelaram abertamente na área do pensamento musical. Cumpre, porém, verificar se, inconscientemente ou por desconhecimento, aqui já não se introduzem idéias próprias do passado nacional-socialista alemão. Esse grave problema diz respeito principalmente à área etnomusicológica. Se bem que se repita continuamente em artigos e conferências os aspectos mais divulgados da origem da "Escola norte-americana" da disciplina em suas relações com a perseguição anti-semita do "Terceiro Império" alemão, pouco se conhece das concepções alemãs da época.
Cada vez mais se levanta hoje a necessidade de um estudo da música sob a perspectiva de uma ciência a ser denominada de Antropologia da Música. Aquí cumpre, porém, guardar um especial cuidado conceitual. Sem dúvida é da maior importância que sejam estudados os conceitos antropológicos de relevância musicológica próprios ao contexto cultural que é objeto de estudo. Ou seja, qual é a concepção do Homem e do Mundo nas suas relações com a música na cultura investigada. Esse é um interesse que leva quase que forçosamente ao estudo da fundamentação religiosa da visão da realidade e que exige cuidadosa consideração histórica, no caso de países que foram objeto de trabalho missionário, como nos países do mundo de língua portuguesa. Algumas vezes, porém, o termo "Antropologia da Música" parece incorrer no perigo de ser mal compreendido, no sentido de aplicação de um sistema antropológico artificialmente (a-historicamente) construído como referencial para a interpretação do fato estudado. Nesse caso corre-se o perigo de interpretações que contribuem para uma visão totalitária do mundo.
Muitos dos propagadores dessa ciência (Antropologia da Música) tomam como ponto de referência o conhecidíssimo livro de Alan P. Merriam, The Anthropology of Music (Northwestern University Press 1964), obra significativamente dedicada à memória de Melville J. Herskovits. No Brasil, essa obra já foi um dos textos básicos de ampla discussão nos cursos de Etnomusicologia do antigo Instituto Musical de São Paulo (1971-1974). É, de fato, quase que um compêndio introdutório em numerosas instituições em todo o mundo. Alguns especialistas parecem considerar inapropriadamente os aprendidos conceitos transmitidos por esse divulgado uso quase escolar do livro. O termo "Antropologia da Música" não pode, porém, ser visto primordialmente a partir da recepção de obras tão recentes. Tem de ser encarado na sua longa história. E a história das tentativas músico-antropológicas do século XX - pouco conhecida na atualidade - não é nada encorajadora. Liga-se ao Racismo e ao Totalitarismo. Aquí são lembrados apenas alguns de seus aspectos.
A partir de 1936, publicou-se a revista "Archiv für Musikforschung" da Sociedade Alemã de Musicologia, com o apoio do Instituto Estatal Alemão de Pesquisa da Música. Esse órgão veio substituir, sob o regime nazista, o anterior "Zeitschrift für Musikwissenschaft" da mesma sociedade e continuar o trabalho do antigo "Archiv für Musikforschung", antes publicado pelo Instituto de Pesquisas "Fürst Adolf" em Bückeburg. Junto com essa nova publicação, de natureza científica, lançava-se a revista "Deutsche Musikkultur", que agia mais do ponto de vista cultural-político. Mesmo assim, o Archiv entendia-se a serviço de um presente vivo e do futuro, já que toda a ciência - mesmo histórica - deveria ser orientada pelo presente ("Zum Beginn", I/1, 1936). E aquí está um ponto fundamental da concepção da Antropologia da Música: a orientação pelo hoje e o estudo histórico (se necessário) somente a partir de um referencial situado no presente. Não é de surpreender, portanto, que, em 1937, esse órgão, sob a orientação de Rudolf Steglich, tenha publicado o artigo de Siegfried Günther sobre "Aptidão musical e pesquisa racial na literatura do presente: Uma investigação metodológica" (pág. 308-339).
Nessa "investigação metodológica", o autor mostra o íntimo relacionamento de sua ciência com a psicologia. Ele faz questão de salientar que teve de basear-se na Psciologia norte-americana, pois nos Estados Unidos já se havia estudado muito mais os fundamentos raciais do fenômeno psíquico do que na Alemanha, embora muitos dos trabalhos negassem as diferenças raciais. E aquí tem-se outro dado de particular importância: o uso de um itneresse psicologista de raças principalmente enraizado na América do Norte. Ou seja: se a Etnomusicologia nos Estados Unidos teve um de seus principais incentivos na vinda de perseguidos alemães, a criação de uma Antropologia da Música nazista baseou-se em trabalhos norte-americanos!
O autor cita principalmente o trabalho de Thomas Russell Garth, Race Psychology (New York, 1931), no qual se trata, em especial capítulo, do "The musical talent of races". Essa obra ofereceu-lhe um panorama das investigações de ca. 50000 pessoas (negros, índios, portugueses, japoneses, chineses, etc.). Usando os dados de Garth, o autor os reinterpreta segundo os conceitos racistas. Faz uma crítica dos critérios de julgamento do autor americano e analisa as diferentes tipologias existentes. Assim, segundo êle, enquanto Müller-Freienfels derivaria os tipo da diferenciação do processo psíquico, Spranger partia do interrelacionamento vivo entre o Homem e a Cultura. Essa visão do Homem determinada pela cultura critica o autor, pois, segundo ele, não seria o Histórico o fator primordial, mas sim o aspecto racial. Eis aquí também um ponto de essencial importância para o entendimento das concepções antropológicas racistas: Também critica Kretschmer, que partiu do somático e negou igualar os seus tipos com as raças. Já vê com melhores olhos Jaensch, Jung, Jaspers e Klages. Ele ressalta que o Nazismo veria o "jôgo entre o Eu e o Mundo" não primariamente como algo determinado historicamente ou algo formado segundo um ideal da cultura. A doutrina do nacional-socialismo só consideraria o condicionamento pelo sangue e pela raça e somente no campo as mesmas idéias raciais reconheceria relações e descobriria os diferentes conteúdos de formas e fatos aparentemente iguais, isso porque os observaria da totalidade do homem e da cultura. Já Alfred Rosenberg havia, segundo êle, declarado no seu livro "Mito do Século 20": "Nós não desmentimos as diferentes influências, como da paisagem, do clima e da tradição política; tudo é porém superado pelo sangue e pelo caráter determinado pelo sangue. Trata-se de reconquistar essa ordem de valores."
Um dos principais autores dessa ideologia seria L.F. Clauß (Raça e Alma: Introdução no sentido da forma corpórea, 3a. ed., München, 1933; "Psico-Antropologia e Método Mímico", Zeitschrift für Rassenkunde, 1936, etc.).
Resumindo, uma ciência determinada pela concepção nazista de mundo
teria certas exigências fundamentais:
1) Ela veria o homem a partir da realidade política e do presente;
2. Ela poderia corrigir o retrato do homem que se teria desviado
do direcionamento típico determinado por fatores biológico-psíquicos;
a Antropologia seria uma ciência aplicada, uma "Antropologia aplicada";
3) Ela seria uma ciência "típicamente ariana", pois não separaria
o racional do construtivo, ou seja, criador e político; a atitude
típica dessa ciência não seria uma atitude racional com relação
ao mundo, mas sim uma atitude irracional baseada na vivência.
Ou seja, um outro ponto essencial da doutrina: a necessidade de
superação do racionalismo através de uma perspectiva irracional-totalizante
do cientista a partir da "experiência de vida", da recuperação
de uma "visão de dentro". E aquí tem-se um dos grandes mal-entendidos
no mundo de língua portuguesa: julga-se freqüentemente que uma
das características do pensamento alemão da época seria uma aberração
racionalista e tem-se orgulho de intelectuais que defendiam idéias
semelhantes às expostas! Um dos conceitos fundamentais era, principalmente,
o da determinação da posição ideológica do investigador em relação
ao objeto de estudo. Essa posição não era definida só racionalmente,
mas através da Vivência que possibilitaria uma visão globalizante
quase que de fundo místico próprio a "iniciados".
Também no terreno musical, diz o autor, dever-se-ia procurar as diferenças raciais nas camadas psicológicas profundas. E aquí ter-se-ia o relacionamento dessa "ciência" não só com a Psicologia da Música, mas também com a Musicologia Comparada. Mais um ponto essencial: A Antropologia da Música nazista entendia-se em estreito relacionamento com a Psicologia e com a disciplina que hoje se denomina Etnomusicologia. Via porém as grandes diferenças existentes entre ela e essas matérias. Distanciava-se sobretudo decididamente da Estética, principalmente da Estética "objetiva" e "relativista". O estabelecimento de critérios de valores de julgamento não seria jamais orientado por essa Estética, mas sim pelas determinações biológicas. Somente quanto ao material de estudo via-se certa similaridade com a Musicologia Comparada. Havia a seguinte diferença fundamental entre a "ciência" antropológica e a Musicologia Comparada: enquanto esta teria como objeto de seu trabalho o exame do desenvolvimento histórico e a comparação de culturas musicais, a ciência racista da música derivaria a interpretação de cada cultura musical da Totalidade de sua vida, no sentido de um reconhecimento "estilístico da raça", ou seja, dos fundamentos psíquico-biológicos. Essa diferença com relação à Musicologia Comparada, que procederia histórico-comparativamente, seria semelhante àquela existente entre as tipologias e a doutrina das raças. Enquanto a Musicologia Comparada limitar-se-ia ao seu âmbito disciplinar, a "ciência" apregoada olharia as coisas do ponto de vista total da vida e procederia fenomenologicamente. Ela consideraria tudo à luz da Fenomenologia (pág. 336)
Em 1938, o Archiv quis dar início à publicação de uma série de artigos raciais-musicológicos. Essas investigações deveriam esclarecer, entre outros pontos, problemas relativos ao "estilo musical" das várias raças e ao estilo da "personalidade racial". Publicou-se o trabalho de Siegfried Günther, de título "Contribuições psico-raciais para a investigação do estilo musical" (op.cit. págs. 385-427). O Homem, na sua Totalidade, devia estar no centro da pesquisa estilístico racial-musical, mesmo da obra de arte. O autor abre o seu trabalho com a seguinte frase: "Cada vez mais se reconhece que o aspecto racial na música se encontra em grande parte além das estruturas sonoras e formais perceptíveis. Ele deve ser procurado decididamente atrás dos fenômenos que são registrados pela notação, o que só pode vir a ser determinado a partir da compreensão do todo na existência viva de suas relações. Por conseguinte, hoje modifica-se o método de trabalho do musicólogo comparativo, que ao invés da mesa de trabalho e do trabalho de arquivo sai para o trabalho de campo" (aqui cita o autor Fritz Bose, "Tipos da Música Popular na Karelia", Archiv für Musikforschung, 1938, pág.96).
O trabalho de gabinete do investigador, assim como todo o trabalho de pesquisa histórico-documental passou portanto a ser menosprezado perante a primazia absoluta do trabalho de campo. Em todo o estudo de natureza formal perceber-se-ia cada vez mais a necessidade de começar-se a partir do fundo de vida comum, da esfera originária dos sentidos: tratar-se-ia "de um movimento fundamental originário e totalizante que estaria inerente à toda vida e forma como sustentáculo do fazer consciente e não-arbitrário" (cita R. Steglich, "Sobre o relacionamento essencial entre a música e as artes plásticas", Max-Seiffert-Festschrift, Kassel, 1938). Sendo o homem, em sí próprio, o criador e o portador da obra, a pesquisa tocaria na dinâmica da sua personalidade, tanto externamente, através da observação das expressões corporais, quanto internamente, através de observações de campo. O "estilo" da personalidade racial deveria ser derivado do tipo biológico (cita E. Ortner, Tipos biológicos do homem no seu relacionamento com a raça e com o valor, Leipzig, 1937, 62). O pesquisador deveria dirigir a sua atenção à forma do corpo e ao tipo de movimentos da raça, no terreno psíquico aos fenômenos sensoriais-psicológicos (experiências de forma e cor), ao tipo das atitudes que nasceriam das camadas psíquicas mais profundas e, finalmente, ao direcionamento social da raça em questão. O interrelacionamento e o paralelismo entre processos psíquicos e físicos se fundamentariam na unidade Corpo-Psique que, embora quase que sufocados no homem adulto, estariam sempre ativos e poderiam vir a ser recuperados. Para a descrição e o reconhecimento das forças formativas, também ativas na obra de arte, dever-se-ia ter um certo sentido pelo Típico, o que exigiria quase que um "olhar de artista". Assim, não haveria tanta necessidade, na investigação científica, de coleta de numerosos fatos. Encontrar a força típica do paradigma seria a exigência primordial. Não a quantidade de exemplos individuais é que seria decisiva, mas a escolha do representante puro do tipo. Eis aqui um ponto que distingue a concepção nazista fundamentalmente da ciência do Folclore da forma tradicionalmente estabelecida em vários países, preocupado com o estudo dos fatos na sua inumerável diversidade. Ou seja, a Antropologia deveria basear-se não em resultados de estudos de gabinete, mas no trabalho de campo, aqui, porém, deveria superar os limites da metodologia empírica para alcançar uma visão totalizante. "Ciência da raça" seria Conhecimento, "Psicologia da raça", Arte. Importante seria realmente não o jogo de forças das adoções culturais, mas sim a forma fundamental racial que sempre permaneceria e que tudo orientaria. Por isso seria um êrro dar a primazia às considerações do meio e da força da personalidade individual. As forças da raça, ou seja, as constantes psíquico-biológicas é que determinaram o destino (aqui o autor cita Hitler, Minha Luta, Capítulo 11, "Povo e Raça").
Não seria possível modificar povos por meio de colonização ou conquista, ou seja transmitir um determinado "estilo racial" a uma raça estranha. E aqui tem-se novos aspectos importantes da concepção antropológico-musical nazista: o não interesse por processos culturais resultantes de contactos e misturas, do aprendizado, do meio e da ação de personalidades criadoras. Pouco interesse, portanto, pelo estudo de vultos da história e de obras de arte como criações de personalidades individuais.
Digno de nota é o fato de o Archiv publicar, em 1942, ou seja, em época já crucial da Guerra, um trabalho crítico dessa teoria, da pena de Hans Engels: "O significado das tipologias constitutivas e psicológicas na musicologia" (Archiv für Musikforschung VII/3, pág. 129-153). O autor abre o seu trabalho com a seguinte frase: "A situação científica de nossos dias caracteriza-se pela entrada das ciências naturais no campo das ciências humanas. Em todos os terrenos, se filologia, história ou filosofia da cultura, colocam-se novas exigências. Personalidade e obra, estilo e história exigem investigações sob uma perspectiva mais ampla, sobretudo biológica. Uma nova ciência está se desenvolvendo, que se pode denominar 'Antropologia' (...)"
O autor acentua expressamente o fato de que a Musicologia ainda não considerara seriamente essa nova ciência, pois tinha percebido, e com razão, que a Teoria e a Psicologia das Raças ainda não haviam fornecidos resultados convincentes que poderiam justificar o seu uso. Eis aqui outro aspecto digno de nota: uma certa reserva da Musicologia Histórica para a assimilação da Antropologia racista. Já Friedrich Blume (O problema da raça na música, Wolfenbüttel, 1939) havia dito que esse tipo de aproximação não poderia ter sucesso, pois os estilos sonoros seriam passíveis de serem transmitidos. Um exemplo desse fato poderia ser encontrado na música do Oriente Próximo. Também no Mundo Mediterrâneo haveria por todo o lado misturas estilísticas de diferentes povos ou de diferentes camadas históricas do mesmo povo. Na canção italiana haveria - não só no extremo Sul - um estilo de canto arcaico, semelhante ao oriental da parte sul do Mediterrâneo e que seria aplicável a novas melodias. Na música egípcia haveria o estilo de Jazz europeu-norte-americano misturado com melodia árabe. Muito popular na música egípcia seria, na época, rítmos de dança espanhola. Apesar de todas essas reservas - ato de coragem na época - o autor finaliza o seu estudo dizendo que a pesquisa da música, no futuro, não mais iria se restringir tanto à Filologia e à História, mas sim tentaria aplicar a Tipologia psicológica científica, o que exigiria porém comprovações a serem feitas pela Psicologia da Música. Mais uma vez surge aqui, como cuidadosa concessão, o ponto essencial do pensamento antropológico racista: a antipatia pela História ou a sua referenciação pelo presente.
O desprêzo pela personalidade individual do homem como criador e a visão orientada exclusivamente pelo "tipo" determinado racialmente e reconstruído ideologicamente é claramente expressa no "Léxico dos Judeus na Música" publicado por ordem da direção do Partido Nacional-Socialista pelo Instituto da NSDAP para a Pesquisa da Questão Judaica (Berlim: B. Hahnefeld, 1941). Nesse léxico, que pretendia contribuir para que a vida musical alemã continuasse "limpa", não interessaria o fato de que músicos judeus houvessem deixado grande obra criadora, como se lê na introdução escrita por Herbert Gerigk, comissário do "Führer" para a guarda total da formação e educação do partido. Somente a origem biológica é que contaria. Assim, as obras dos autores citados no léxico não mais deveriam ser executadas. Quando não se teve certeza da origem racial exata dos compositores e músicos marcou-se o nome com uma cruz, o que bastava para a sua difamação. Este foi o caso do compositor paulista Alexandre Levy, incluído nesse dicionário, cujas obras deveriam vir a ser, portanto, evitadas na Alemanha nazista (pág. 157: Levy, Alexander, São Paulo, Brasilien, *10.11.1864 - São Paulo, 17.1.1892, Komp.).
E o que dizer da preocupação pela luta de reconquista da originária e/ou inerente "pureza de raça" na cultura musical? A respeito, Béla Bartók escrevia muito bem as seguintes palavras em artigo de 1942, um artigo que tinha o título "Pureza da Raça na Música" (Béla Bartók, Weg und Werk, Schriften und Briefe. Ed. B. Szabolcsi. Budapest, 1957, 201-203):
"Se quisermos ter esperanças para uma sobrevivência da música folclórica em futuro próximo ou distante (uma esperança bastante duvidosa, à vista da rápida entrada de cultura mais alta mesmo nas regiões mais distantes do mundo), então é muito negativo, para o desenvolvimento da música do povo, erigir muros chineses artificiais para a separação de um povo de outro. Uma separação perfeita contra influências externas significa decadência; incentivos estranhos bem assimilados oferecme possibilidades de enriquecimento."
Hoje já não se usa expressamente o termo "raça" na discussão etnomusicológica, substituído há muito por "etnia". Já Paulo Prado escrevia a Mário de Andrade, a 7 de março de 1942:
"Li com atenção o seu programa pra a Escolinha e sôbre a História da Poesia Popular Brasileira. Achei uma tolice nele. É o titulo II - As constâncias psico-raciais. Isso deve ser: 'As constâncias psico-étnicas'. É muito perigoso a gente falar em raça. (...) O mesmo no título III, n.2. letra b, onde você deve corrigir 'Os contactos raciais', por 'Contactos étnicos'." (Paulo Duarte, Mário de Andrade por ele mesmo, São Paulo, 1985, 225)
O uso do termo Etnomusicologia pode, portanto, aproximar a matéria inconscientemente de lamentáveis correntes de pensamento do século XX. O termo pode vir a servir de camuflagem para a sobrevivência de concepções cuja perniciosidade foi comprovada pela Humanidade. Substituí-lo por "Antropologia da Música" - o que além do mais não pode ser considerado como mera substituição - parece ser razoável, exige porém cuidadosíssima conceituação. Essa precisão conceitual deve ser expressa no título, ou seja, a palavra Antropologia não deve vir sem uma adjetivação que qualifique mais de perto o contexto e que implique uma consideração histórico e cultural. O menos pretencioso, o menos perigoso e aquele que menos está manchado de sangue desse ramo do conhecimento que já tanto mal fêz à Humanidade é, apesar de tudo, o termo "Musicologia Comparada".
Mesmo que já não se fale em raça, muitas das idéias relatadas acima devem parecer familiares aos estudiosos de certo tipo de literatura sobre cultura musical, principalmente concernete ao Brasil e à África. E ao Afro-Americanismo. Portanto: todo o cuidado é pouco!
(A.A.B.)