Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 08 (1990: 6)


 

IDEOLOGIA DA HISTÓRIA E HISTÓRIA DA MÚSICA NO MUNDO DE LÍNGUA PORTUGUESA

(Debates do ISMPS motivados pela queda do muro de Berlim)

(Excertos)

Um exemplo a ser considerado é o livro de Georg Knepler, História como caminho à compreensão musical: da teoria, do método e da história da historiografia musical, um livro que ainda em 1982 foi lançado, em segunda edição, em Leipzig. O autor qualifica como "grotesco" o fato que somente nos últimos anos tenha-se chegado à conclusão que os "tipos de música" que são objeto de estudo da Etnomusicologia façam parte da História da Música. Não naturalmente porque o autor defenda a necessária procura de fontes documentais que possam justificar tal evidência. Para o autor só é a pesquisa empírica o caminho metodológico possível para se demonstrar a Historicidade de produtos culturais. O objetivo da Etnomusicologia passa a ser o estudo das mais "antigas culturas musicais recentes" que se tem notícia. Ele espera que a Bio-Acústica e a Etnomusicologia esclareçam um grande período de tempo, por assim dizer a partir de "duas aberturas de um túnel" . O autor - embora eminente representante da matéria da antiga Alemanha do Leste - louva expressamente a Etnomusicologia Norte-Americana, em especial Charles Seeger (autor, entre outros trabalhos de "Folk music as a source of Social History", C. F. Ware (ed.), The cultural approach to History, New York 1940; "The folkness of the nonfolk and the nonfolkness of the folk", Studies in Musicology 1935-1975, Berkeley e Los Angeles 1977). Knepler reconhece a íntima afinidade conceitual existente entre certas correntes da Etnomusicologia norte-americana e a então ideologia oficial da Alemanha do Leste (cf. pág. 65).

Knepler também não podia deixar de mostrar a importância para a conceituação da História de certas idéias defendidas pelo investigador austríaco G. Kubik, que diz ter descoberto inerentes "patterns" na música africana. E aqui atinge-se uma área na qual a história levou às mais abstrusas distorções e que é de grande relevância para o mundo de língua portuguesa. Uma área que mostra como é absolutamente necessária uma verdadeira revisão de divulgadas visões históricas da África.

Como exemplo, deve-se lembrar aqui certas posições de J.H. Kwabena Nketia. Esse pesquisador, em conferência feita ao Congresso "O histórico na música européia e extra-européia" realizado pela Sociedade Alemã de Musicologia de 20 a 26 de setembro de 1981, em Bayreuth (Tradução para o espanhol na Revista Musical Chilena 35/156, 1981, 34-52) acha, por exemplo, que a história da música da África deve partir de uma percepção presente, porque o presente em grande parte abrange o passado com validade atual, de modo que o histórico, que também pode ser considerado como o presente etnográfico, torna-se história quando da análise resultam fases estilísticas. Teorias desse tipo levaram às mais questionáveis concepções de origens, o que pode ser também facilmente verificado na assim chamada literatura afro-brasileira. Tudo indica, porém, que tais teorias somente se justificam pelo desconhecimento quase que absoluto das fontes documentais.

Essa lamentável situação da Historiografia da África na atualidade foi discutida em simpósio realizado nesse mesmo ano na cidade alemã de Bad Homburg (15-18 de julho de 1986), de tema "Fontes européias para a África sub-saariana antes de 1900: Usos e abusos" . "A historiografia desse continente baseia-se em grande parte em fontes européias, árabes e alguns outros documentos. (...) Assim, o fato de se não ter documentação escrita para longos períodos de tempo e vastas regiões levou os pesquisadores à procura de outras fontes (por exemplo arqueológicas, etnológicas ou de natureza lingística). Tinha-se sobretudo a esperança de que certas tradições orais pudessem preencher a falha documental, e discutiu-se, por isso, durante os dois últimos decênios, quase sempre de forma polêmica e controversa, o seu conteúdo em informações históricas. com isso, as fontes escritas ficaram um pouco de lado (...). A discussão porém deixou claro que o antagonismo entre fontes externas e internas não deve ser exagerado. Existe uma série de graus intermediários que foram até agora não considerados ou até mesmo desconsiderados. Aqui devem ser estudados, por exemplo, sobretudo os europeus que se integraram na África e os mestiços culturais." (Beatrx Heintze e Adam Jones, "Die afrikanische Geschichtsschreibung und ihre Quellenprobleme", Anthropos 82, 1987, 242-244.

O aspecto mais problemático da "ideologia científica" da história é, porém, o seu inerente eurocentrismo, embora sejam os seus representantes aqueles que primeiro acusam de "etnocentristas" os cientistas que consideram as fontes históricas. Já em 1926, Anatolij Lunacarskij, no seu estudo "Uma Revolution: Schrift zur Musik" (Leipzig), declarava:

" O sistema musical europeu é algo parecido como a geometria de Euclides, ao lado do qual podem existir outras geometrias. Mas assim como se concebeu muitas dessas outras geometrias, tem-se que reconhecer que a geometria euclidiana não alcançou acidentalmente tal difusão. Ela trazia em sí os pressupostos para dominar na vida quotidiana e na ciência. Algo semelhante acontece provavelmente com a música. As formas rígidas da música ocidental chegam hoje ao fim e vive muitas transformações. Elas se tornam elásticas e dessa forma traçam o caminho que foi várias vezes delineado por Asaf'ev no seu artigo, ou seja, o caminho da assimilação de certos elementos na nossa concepção que antigamente não podiam ser integrados (...)." (pág. 177)

O livro de A. Soriano representa uma das contribuições mais refletidas e fundamentadas referentes à música e ao homem no continente americano. Entretanto, os pressupostos em que se baseia torna-o altamente questionável e praticamente inaplicável no estudo das manifestações de música e dança da nossa cultura popular tradicional. Sendo essa cultura intimamente ligada com as festas religiosas e sendo os nossos folguedos resultado da catequese dos primeiros séculos e da influência de colonos cristãos, estão eles indissoluvelmente ligados àquela visão do mundo de natureza filosófico-teológica que o autor critica. Se quisermos portanto entender realmente o sentido de nossas tradições e analisar as suas expressões musicais e coreológicas de maneira adequada, precisamos partir das concepções a ela intrínsecas. O que o autor entende por 'imanências' não representa, portanto, verdadeiramente o que se deve entender por 'imanências' nessas tradições.

A.A.Bispo, "A questão das imanências etnomusicológicas",
Curso de Etnomusicologia, São Paulo, 1973

O eurocentrismo científico se revela sobretudo nos pressupostos antropológicos da idéia de se escrever uma História da Música do Mundo não como um aperfeiçoamente metodológico, com novas bases documentais, de antigas tentativas feitas, mas sobretudo como reconstrução a partir da análise empírica e de conceitos psicologistas e biológicos. Já em 1967, Alberto Soriano, no seu questionável livro "Algunas de las inmanencias etnomusicologicas", 1 (Montevideo), demonstrava a incompatibilidade de uma ideologia baseada nas "imanências" (físicas) com concepções científicas da história, já que nessa antropologia se tratava de um ato especial de "objetivação", para o qual análises teriam sido feitas, porém sem a preocupação de se não superar o plano da metodologia com o objetivo de alcançar-se a problemática do Conhecimento (pág.10). Cada vez mais sobe à tona da consciência o perigo representado pelas estruturas fundamentais eurocêntricas de etnomusicólogos, dos musicólogos defensores da música popular de sabor ethno e dos filósofos de uma "música global":

"Quando se fala de Eurocentrismo no processo receptivo da música, então se acha que ele já está superado. Quem não criticaria hoje o tom superior de antigos musicólogos, que falavam da música fora do círculo de cultura ocidental como música de primitivos e selvagens? (...) Não, hoje nós temos os ouvidos abertos para a música das diferentes culturas do mundo, ouvimos os cantos fascinantes dos Inouit do Canadá com o mesmo interesse que um tocador de oud da área árabe ou um instrumentista de didjeridoo dos nativos australianos, nós admiramos essa música não como sons "exóticos" de qualquer "primitivo", mas nós a reconhecemos como obra cultural, que não é a priori inferior à nossa. Eurocentrismo? Parece não mais existir, dada tanta tolerância. Só que tolerância também pode ser usurpatória." (Peter Niklas Wilson, "Zwischen 'Etno-pop' und 'WeltMusik': Eurozentrische Grundstrukturen im Umgang mit außereuropäischer Musik", Neue Zeitschrift für Musik 148/5, 5-8)

Os antropólogos e historiadores que defendem idéias de cunho ideológico preocupam-se naturalmente com o conceito de "tradição", conceito que pretendem redefinir para uma interpretação e uso de fatos tradicionais de forma apropriada para fins extra-científicos. Ess preocupação torna-se comprensível quando se considera que na "ideologia científica" procura-se principalmente criar condições sob as quais o "homem real" gradualmente possa aproximar-se de um tipo que seja imanente a todo o processo - como tipo-original e meio - e não como um ideal antecipadamente colocado à imitação Esta foi uma exigência de natureza política do materialismo ideológico defendida por Claus Träger no seu artigo "História do Mundo - Literatura Nacional. - História Nacional - Literatura do Mundo", publicado no livro "Estudos sobre a Teoria do Patrimônio e da Apropriação do Patrimônio", em Leipzig, em 1981 (" Weltgeschichte Nationalliteratur, Nationalgeschichte - Weltliteratur", Studien zur Erbetheorie und Erbeaneignung).

(...)

Qual é a posição que se deve tomar nesta complexa situação? Em primeiro lugar, não se trata, em absoluto, do desmerecimento do trabalho de intelectuais ou instituições. Precisa-se do trabalho de todos para o desenvolvimento da disciplina. Sem deixar, porém, de mostrar-lhes claramente que uma nova época se abre e que agora necessitam reformular conhecimentos e conceitos, que precisam fazer auto-exame, acostumar-se com a idéia da existência de uma necessária pluralidade de opiniões e de correntes no trabalho científico.Trata-se, em geral, da necessidade do reconhecimento da situação existente e da visualização da sua mudança, sobretudo da necessidade de superação de certos impasses causados por concepções de fundo extra-científico. Trata-se também de tomar consciência da necessidade da existência de instituições científicas independentes do sistema universitário e não filiadas a organizações estatais e a certos organismos internacionais, apesar de todas as dificuldades então decorrentes, das desigualdades de meios, de forças e de poder de influência. Trata-se da necessária ação junto a órgãos ministeriais no sentido de abrir-lhes os olhos quanto à política exercida em algumas universidades, assim como do não-reconhecimento de sistemas criados por determinados líderes e seus seguidores. Trata-se da não consideração ou da crítica consciente de literatura produzida por esses grupos.

(A.A.B.)

 

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