Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 03 (1990: 1)


 

Sabara Programa dir. A.A.Bispo

Oriente/Ocidente & Brasil:
Cultura Musical e Espírito


Um programa permanente de estudos
do ISMPS
20 anos do seu início: Sabará (1970)

MACAU: FRANCISCO DE CARVALHO E REGO E A REFLEXÃO SOBRE QUESTÕES MUSICOLÓGICAS NO EXTREMO ORIENTE PORTUGUÊS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

Sabará
(Foto: A.A.Bispo/Acervo ISMPS)

 

 

Antonio Alexandre Bispo

 

Francisco de Carvalho e RegoDurante as primeiras décadas do século XX, a cidade de Macau, capital da região ultramarina portuguesa do mesmo nome, sede de bispado e localidade com todas as características ambientais de uma cidade do Sul europeu, conheceu singular florescimento de atividades artísticas e crescente interesse por questões relacionadas com a cultura musical.

Foi principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, no tempo da ocupação japonesa da China e de Hongkong, que a cidade se transformou em centro de refugiados europeus e chineses provenientes de outras regiões, um fenômeno que se repetiria após a revolução comunista na China. Isolada do resto do mundo, ameaçada pela proximidade das tropas japonesas e na expectativa de vir a ser, se invadida, alvo de generalizada carnificina, a cidade vivenciou anos de febril incerteza e de estranha agitação intelectual.

Francisco de Carvalho e Rêgo foi uma das personalidades que mais se destacaram nas "iniciastivas tendentes a criar vida espiritual, tão necessária num momento em que o futuro era uma incerteza e o presente um constante sobressalto", segundo as suas próprias palavras.

Foi F. de Carvalho e Rêgo o primeiro diretor artístico e de locução da "Rádio Clube de Macau", fundada em 1941 sob a presidência do Dr. Evaristo Fernandes Mascarenhas (Vice-Presidente, Pe. Fernando H. Leal Maciel; Secretário, Tenente Alberto Ribeiro da Cunha; Tesoureiro, Bernardino de Sena Fernandes; Vogal, Tenente engenheiro-maquinista Virgílio Abrantes Pereira, José de Sousa Lourenço e Eng. Carlos Lun Chou).

Essa emissora irradiou ininterruptamente, apesar de todas as dificuldades impostas pela situação da guerra, programas de música ao vivo e em gravações, assim como noticiário em seis línguas (português, inglês, francês, chinês, alemão e japonês) que se fez ouvir em todo o Extremo Oriente, alcançando também o Alasca e a Nova Zelândia. Sob a sua direção foram transmitidas pela Rádio Clube de Macau mais de duas centenas de palestras e recitais de piano e outros instrumentos, e a emissora tornou-se organizadora de concertos que mereceram a atenção de círculos governamentais.

Maria Amalia de Carvalho e RegoO próprio diretor da emissora escreveu e proferiu várias conferências que foram ilustradas ao piano por sua mulher, Maria Amália de Carvalho e Rêgo, intérprete que recebeu da crítica os mais lisongeiros comentários. A intenção de F. de Carvalho e Rêgo era dar "um exemplo de trabalho, exemplo que foi seguido com entusiasmo e valor apreciável". Sob a sua presidência, um grupo de aficcionados fundou a Academia de Amadores de Teatro e Música, entidade que levou à cena peças teatrais, organizou saraus, promoveu conferências e trouxe ao Extremo Oriente intérpretes de renome internacional, violoncelistas, pianistas, violinistas e cantores, estabelecendo um singular intercâmbio artístico-cultural com as cidades circunvizinhas, nomeadamente Hongkong e Cantão.

No primeiro corpo gerente da Academia de Amadores de Teatro e Música, a família Rêgo desempenhou papel preponderante. Essa sociedade apresentava interessante constituição estatutária:
Direção (1. Efetivos: Presidente, Francisco de Carvalho e Rêgo; Vice-Presidente, Dr. D. João Vila Franca; Secretário, Fernando de Lara Reis; Tesoureiro, Henrique Viseu Pinheiro; Vogal, José de Carvalho e Rego. 2. Suplentes: Presidente, Dr. Pedro Guimarães Lobo; Vice-Presidente, Henrique Teixeira Machado; Secretário, Mário Rangel de Campos Néry; Tesoureiro, Maria Carlos de Sena Fernandes; Vogal, Maria Amélia de Meneses).
Assembléia Geral (1. Efetivos: Presidente, Bernardino de Sena Fernandes; Secretário, Eugénio Albano Ferro de Beça; Escrutinador, Maria Amália de Carvalho e Rego; 2. Suplentes: Presidente, José de Arede e Soveral; Secretário, Lucília Lopes Néry; Escrutinador, Maria Guilhermina Machado).

Momentos Musicais MacauFrancisco de Carvalho e Rêgo, que havia editado a Revista do Rádio, dedicou a seu sucessor na presidência dessa entidade de curta mas produtiva duração, Brigadeiro Temudo de Vera, a publicação de quatro de seus estudos, reunidos em volume de título "Momentos musicais" (Macau: Imprensa Nacional de Macau, 1949).

Das conferências proferidas por F. de Carvalho e Rêgo, as três últimas incluidas nessa publicação tiveram especial ressonância, sendo repetidas, a convite de entidades oficiais, no Salão Nobre do Leal Senado e retransmitidas pela Rádio Clube.

Essas palestras foram:

1) " Os Grandes Cravistas" , na qual o autor, perante numerosa assistência, que contava com a presença do Governador da Colonia, Artur Tamagnini de Sousa Barbosa, discorreu sobre a história da música para teclado e sobre a história das formas musicais, ilustrando o discurso com as seguintes obras, citadas segundo os dados do programa: Purcel, Minueto em ré menor; Lully, Minueto; Rameau, Tambourin; Scarlatti/Tausig, Pastoral e Capricho; Händel, Gavota; J.S.Bach, Prelúdio e Fuga N° 2; Haydn, Sonata N° 2 e Mozart, Sonata N° 11.

2) " Chopin e a Alma da Polonia" , ilustrada com várias obras do compositor (Polonaise op. 26 N° 1; Mazurca op. 7 N° 2; Estudo op. 10 N° 12; Nocturno op. 13 N° 3; Valsa op. 34 N° 2; Balada op. 47 N° 3; Prelúdio op. 28 N° 6 e op. 28 N° 4). Nessa conferência, o autor, já apresentado como Professor de História da Música da Academia, entrou em considerações sobre o problema do nacionalismo musical, tema de seu principal interesse e de relevância para a situação particular de Macau como enclave português no Oriente. As idéias de Francisco de Carvalho e Rêgo a respeito denotam a enraizada consciência cultural de significativa parte da população local que considerava a defesa de sua cultura de cunho europeu como expressão de autêntico nacionalismo:

"Há certamente duas causas accionantes de todo o movimento nacionalista musical. São elas: o sentimento nacional, ou patriotismo, e o primitivismo, ou regresso " à Terra-Mãe. Estas duas causas conduzem, inconscientemente, à oposição ao estrangeirismo, e à revolta contra a supercivilização (...). Todo o país que não se deixe penetrar por influências estranhas, resistindo a todas as tentativas e, mais ainda, opondo a força de suas características às alheias, é país onde o sentimento nacionalista se encontra bem arreigado, onde a verdade histórica soube criar indestrutível espírito nacional."

3) " O Nacionalismo Musical, em Espanha, e os Discípulos de Pedrell" . Francisco de Carvalho e Rêgo aprofundou o tema do nacionalismo apontando, nesta palestra, às fontes de origem espanhola de suas convicções estéticas. Os exemplos oferecidos foram: I. Albeniz, Cordoba, Granada e Zambra-Granadina; E. Granados, Danza Espanhola, Moresque; J. Turina, Danzas fantásticas, La Andaluzia, La Gitana enamorada; M. de Falla, Cubana, Danza ritual del fuego. Francisco de Carvalho e Rêgo defendia idéias próprias a respeito das origens da música popular portuguesa:

"Se bem que não nos repugne admitir, como a Jeonroy, que a lírica galega é das mais arcaicas da Europa e a mais antiga das Espanhas, aceitando e ajuntando, à sua, a nossa modesta opinião de que o nosso cancioneiro afonsino não foi sujeito a qualquer influência transpirenaica, não cremos nem poderemos aceitar que a lírica galega seja responsável pelas características da lírica andaluza, que dela nada reflecte. Antes cremos, como consagrados catedráticos afirmam, na existência duma lírica Galaica-Lusitana independente e própria, despida de influência de quaisquer espécies, mesmo das provençais, isto a par da lírica andaluza onde brilharam estrelas como Abencuzman, lírica de facetas absolutamente independentes das clássicas árabes, a qual, em remota era da dominação muçulmana da península, contou representantes como Abengayats, na região de Beja, Elcamit na Estremadura da fronteira, e Abenhabid no Algarve." (pág. 72)

Nessa palestra, o autor repudiou toda hipótese de uma origem norte-africana da música popular ibérica, opinião que ficou registrada na crítica local:

"Procurando a faceta mais típica e curiosa da música da Espanha - nossa vizinha e irmã, o Sr. Carvalho e Rêgo fez-nos compreender a música das regiões outrora ocupadas pelos mouros, de modo que não nos deixou qualquer dúvida sobre o assunto. As nossas províncias do Alentejo e do Algarve foram também lembradas. Tratou as líricas várias e os folclores, fez um estudo comparativo curiosíssimo, convencendo que a origem se encontrava na Península e não no Norte de África, como vulgarmente se julga." (Macau, 4 de julho de 1944)

Tais considerações gerais, que constituíram a primeira parte dessa palestra, foi republicada pelo autor em artigo intitulado " Brevíssimas considerações sobre nacionalismo musical e ligeiras referências à grandeza da música em Portugal" no Boletim do Instituto Português de Hongkong.

4) " Claude de France e o Impressionismo" , palestra ilustrada com várias obras do compositor (Claire de lune, La soirée dans Grenade; Reflets dans l‘eau; The little shepherd; Golliwogg‘s cake walk; La plus que lente; La fille aux cheveux de lin; La cathédrale engloutie).

Francisco de Carvalho e Rêgo foi, portanto, um estudioso e idealista que se dedicou à difusão e ao cultivo de uma cultura musical ocidental enraizada há séculos na região em período difícil da história do território.

Nas suas palavras:

"Macau, esta linda cidade do Santo Nome de Deus, que não pode deixar de reflectir o materialismo característico das cidades cosmopolitas orientais, tem tido, na sua vida calma e até monótona, momentos de elevada espiritualidade em manifestações de arte, que têm sucumbido por falta de continuidade, fenecido ante o desinteresse de uma maioria esmagadora, que nunca conheceu um ambiente de emoção e se rende ante as necessidade de um cómodo presente, ou as aspirações de um próspero futuro. (...) Macau foi invejada e aclamada nos jornais de Hongkong e Cantão como o meio do Extremo Oriente onde a actividade artística assentava em mais sólidos alicerces."

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 03)/ao indice deste volume (n° 03)
zur Startseite / à página inicial